Deu-se então um colapso nos mercados
bancários, que perdura até o momento. Apavoradas com a onda de falências, as
instituições financeiras bloquearam a concessão de empréstimos – inclusive
entre si mesmas. Este movimento, por sua vez, multiplicou a sensação de
insegurança, corroendo o próprio sentido da palavra crédito, base de
todo o sistema. A crise alastrou-se dos Estados Unidos para a Europa. Em dois
dias, cinco importantes bancos do Velho Continente naufragaram [2].
Muito rapidamente, o terremoto
financeiro começou a atingir também a chamada “economia real”. Por falta de
financiamento, as vendas de veículos caíram 27% (comparadas com o ano anterior)
em setembro, recuando para o nível mais baixo nos últimos 15 anos. Em 3 de
outubro, a General Motors brasileira colocou em férias compulsórias os
trabalhadores de duas de suas fábricas (que produzem para exportação), num
sinal dos enormes riscos de contágio internacional. Diante do risco de recessão
profunda, até os preços do petróleo cederam, caindo neste 6/10 a 90 dólares por
barril – uma baixa de 10% em apenas uma semana. A tempestade afeta também o
setor público. Ao longo da semana, os governantes de diversos condados
norte-americanos mostraram-se intranqüilos diante da falta de caixa. O
governador da poderosa Califórnia, Arnold Schwazenegger, anunciou em 2 de
outubro que não poderia fazer frente ao pagamento de policiais e bombeiros se
não obtivesse, do governo federal, um empréstimo imediato de ao menos 7 bilhões
de dólares.
Desconfiados da solidez dos bancos,
os correntistas podem sacar seus depósitos, o que provocaria nova onda de quebras
e devastaria a confiança na própria moeda. Em tempos de globalização, seria “a
mãe de todas as corridas contra os bancos”
Nos últimos dias, alastrou-se o pavor
de algo nunca visto, desde 1929: desconfiados da solidez dos bancos, os
correntistas poderiam sacar seus depósitos, o que provocaria nova onda de
quebras e devastaria a confiança na própria moeda. Em tempos de globalização,
seria “a mãe de todas as corridas contra os bancos”, segundo a descreveu o
economista Nouriel Roubini, que se tornou conhecido por prever há meses, com
notável precisão, todos os desdobramentos da crise atual.
Os primeiros sinais deste enorme
desastre já estão visíveis. Em 2 de outubro, o Banco Central (BC) da Irlanda
sentiu-se forçado a tranqüilizar o público, anunciando aumento no seguro
estatal sobre 100% dos depósitos confiados a seis bancos. Na noite de domingo,
foi a vez de o governo alemão tomar atitude semelhante. Mas as medidas foram
tomadas de modo descoordenado, porque terminou sem resultados concretos, no
fim-de-semana, uma reunião dos “quatro grandes” europeus [3],
convocada pelo presidente francês, para buscar ações comuns contra a crise.
Teme-se, por isso, que as iniciativas da Irlanda e Alemanha provoquem pressão
contra os bancos dos demais países europeus, onde não há a mesma garantia. Além
disso, suspeita-se que as autoridades estejam passando um cheque sem fundos. Na
Irlanda, o valor total do seguro oferecido pelo BC equivale a mais do dobro do
PIB do país...
Também neste caso, os riscos de
contágio internacional são enormes. Roubini chama atenção, em especial, para as
linhas de crédito no valor de quase 1 trilhão de dólares entre os bancos
norte-americanos e instituições de outros países. É por meio deste canal, hoje
bloqueado, que o risco de quebradeira bancária se espalha pelo mundo. Mesmo em
países menos próximos do epicentro da crise, como o Brasil, as conseqüências já
são sentidas. Na semana passada, o Banco Central viu-se obrigado a estimular os
grandes bancos, por meio de duas resoluções sucessivas, a comprar as carteiras
de crédito dos médios e pequenos – que já enfrentam dificuldades para captar
recursos.
Em conseqüência de tantas tensões, as
bolsas de valores da Ásia e Europa estão vivendo, hoje (6/10), mais um dia de
quedas abruptas. Na primeira sessão após a aprovação do pacote de resgate
norte-americano, Tóquio perdeu 4,2% e Hong Kong, 3,4%. Quedas entre 7% e 9%
ocorreram também em Londres, Paris e Frankfurt. Em Moscou, a bolsa despencou
19%. Em todos estes casos, as quedas foram puxadas pelo desabamento das
ações de bancos importantes. Em São Paulo, onde o pregão ainda está em
andamento, os negócios foram interrompidos duas vezes, quando quedas drásticas
acionaram as regras que mandam suspender os negócios em caso de instabilidade
extrema. Apesar da intervenção do Banco Central, o dólar acumulava alta de mais
de 5% às 13h, subindo a R$ 2,13.
Até o momento, tem prevalecido, entre
os governos, uma postura um tanto curiosa: eles abandonam às pressas o discurso
da excelência dos mercados, apenas para... desviar rios de dinheiro público às
instituições dominantes destes mesmos mercados
A esta altura, todas as análises sérias
coincidem em que não é possível prever nem a duração, nem a profundidade, nem
as conseqüências da crise. Nos próximos meses, vai se abrir um período de
fortes turbulências: econômicas, sociais e políticas. As montanhas de dinheiro
despejadas pelos bancos centrais sepultaram, em poucas semanas, um dogma
cultuado pelos teóricos neoliberais durante três décadas. Como argumentar,
agora, que os mercados são capazes de se auto-regular, e que toda intervenção
estatal sobre eles é contra-producente?
Mas, há uma imensa distância entre a
queda do dogma e a construção de políticas de sentido inverso. Até o momento,
tem prevalecido, entre os governos, uma postura um tanto curiosa: eles
abandonam às pressas o discurso da excelência dos mercados, apenas para... desviar
rios de dinheiro público às instituições dominantes destes mesmos mercados.
O pacote de 700 bilhões de dólares
costurado pela Casa Branca é o exemplo mais acabado deste viés. Nouriel Roubini
considerou-o não apenas “injusto”, mas também “ineficaz e ineficiente”. Injusto
porque socializa prejuízos, oferecendo dinheiro às instituições financeiras (ao
permitir que o Estado assuma seus “títulos podres”) sem assumir, em troca,
parte de seu capital. Ineficaz porque, ao não oferecer ajuda às famílias endividadas
— e ameaçadas de perder seus imóveis —, deixa intocada a causa do
problema (o empobrecimento e perda de capacidade aquisitiva da população),
atuando apenas sobre seus efeitos superficiais. Ineficiente porque nada
assegura (como estão demonstrando os fatos dos últimos dias) que os bancos,
recapitalizados em meio à crise, disponham-se a reabrir as torneiras de crédito
que poderiam irrigar a economia. Num artigo para o Financial Times
(reproduzido pela Folha de São Paulo), até mesmo o mega-investidor George
Soros defendeu ponto-de-vista muito semelhantes, e chegou a desenhar as bases
de um plano alternativo.
Outras análises vão além. Num texto
publicado há alguns meses no Le Monde Diplomatique, o economista francês
François Chesnais chama atenção para algo mais profundo por trás da
financeirização e do culto à auto-suficiência dos mercados. Ele mostra que as
décadas neoliberais foram marcadas por um enorme aumento na acumulação
capitalista e nas desigualdades internacionais. Fenômenos como a automação, a
deslocalização das empresas (para países e regiões onde os salários e direitos
sociais são mais deprimidos) e a emergência da China e Índia como grandes
centros produtivos rebaixaram o poder relativo de compra dos salários. O
movimento aprofundou-se quando o mundo empresarial passou a ser regido pela
chamada “ditadura dos acionistas”, que leva os administradores a perseguir
taxas de lucros cada vez mais altas. O resultado é um enorme abismo entre a a
capacidade de produção da economia e o poder de compra das sociedades. Na base
da crise financeira estaria, portanto, uma crise de superprodução semelhante às
que foram estudadas por Marx, no século retrasado. Ao liquidar os mecanismos de
regulação dos mercados e redistribuição de renda introduzidos após a crise de
1929, o capitalismo neoliberal teria
Wallerstein vê nos sistemas públicos
de Saúde, Educação e Previdência algo que pode ser multiplicado, e que gera
relações sociais anti-sistêmicas. Se todos tivermos direito a uma vida digna,
quem se preocupará em acumular dinheiro?
Marx via nas crises financeiras os
momentos dramáticos em que o proletariado reuniria forças para conquistar o
poder e iniciar a construção do socialismo. Tal perspectiva parece distante,
125 anos após sua morte. A China, que se converteu na grande fábrica do mundo,
é governada por um partido comunista. Mas, longe de ameaçarem o capitalismo,
tanto os dirigentes quanto o proletariado chinês empenham-se em conquistar um
lugar ao sol, na luta por poder e riqueza que a lógica do sistema estimula
permanentemente.
Ao invés de disputar poder e riqueza
com os capitalistas, não será possível desafiar sua lógica? O sociólogo
Immanuel Wallerstein, uma espécie de profeta do declínio norte-americano,
defendeu esta hipótese corajosamente no Fórum Social Mundial de 2003 - quando
George Bush preparava-se para invadir o Iraque e muitos acreditavam na
perenidade do poder imperial dos EUA. Em outro artigo,
publicado recentemente no Le Monde Diplomatique Brasil, Wallerstein
sugere que a crise tornará o futuro imediato turbulento e perigoso. Mas destaca
que certas conquistas sociais das últimas décadas criaram uma perspectiva de
democracia ampliada, algo que pode servir de inspiração para caminhar
politicamente em meio às tempestades. Refere-se à noção segundo a qual os
direitos sociais são um valor mais importante que os lucros e a acumulação
privada de riquezas. Vê nos sistemas públicos (e, em muitos países,
igualitários) de Saúde, Educação e Previdência algo que pode ser multiplicado,
e que gera relações sociais anti-sistêmicas. Se a lógica da garantia universal
a uma vida digna puder ser ampliada incessantemente; se todos tivermos direito,
por exemplo, a viajar pelo mundo, a sermos produtores culturais independentes e
a terapias (anti-)psicanalíticas, quem se preocupará em acumular dinheiro?
O neoliberalismo foi possível porque,
no pós-II Guerra, certos pensadores atreveram-se a desafiar os paradigmas
reinantes e a pensar uma contra-utopia. Num tempo em que o capitalismo, sob
ameaça, estava disposto a fazer grandes concessões, intelectuais como o
austríaco Friederich Hayek articularam, na chamada Sociedade Mont Pelerin, a
reafirmação dos valores do sistema. Seus objetivos parecem hoje desprezíveis,
mas sua coragem foi admirável. Eles demonstraram que há espaço, em todas as
épocas, para enfrentar as certezas em vigor e pensar futuros alternativos. Não
será o momento de construir um novo pós-capitalismo?
[1] Em
12/9, o banco de investimentos Lehman Brothers quebrou, depois que as
autoridades monetárias recusaram-se a resgatá-lo. No mesmo dia, o Merrill Lynch
anunciou sua venda para o Bank of America. Em 15/9, a mega-seguradora AIG (a
maior do mundo, até há alguns meses) anunciou que estava insolvente, sendo
nacionalizada no dia seguinte com aporte estatal de US$ 85 bilhões
[2] O Fortis
foi semi-nacionalizado pelos governos da Holanda, Bélgica e Luxemburgo. O Dexia
recebeu uma injeção de 6,4 bilhões de euros, patrocinada pelos governos da
França e Bélgica. O Reino Unido nacionalizou o Bradford & Bingley
(especialista em hipotecas), vendendo parte de seus ativos para o espanhol Santander.
O Hypo Real Estate segundo maior banco hipotecário alemão entrou numa
operação de resgate cujo custo podia chegar a 50 bilhões de euros, mas cujo
sucesso ainda não estava assegurado, em 5/9. A Islândia nacionalizou o Glitnir,
seu terceiro maior banco
[3] Alemanha, França, Reino Unido e Itália, os membros europeus do G-8
By Le Monde Diplomatique