A erosão dos modelos de sociedade pré-fabricados que foram incapazes de entender os sonhos e as necessidades dos indivíduos levou a um discurso apocalíptico e precipitado sobre o fim dos ‘valores’. Esse discurso nasce da insegurança e do medo face à mudança civilizacional em curso no Ocidente a partir da segunda metade do século XX — que, pelo contrário, consiste numa preocupação inédita com as condições de vida das pessoas, sem distinção de sexo, idade ou etnia. A Carta dos Direitos Humanos tem pouco mais de meio século, e significa que, pela primeira vez na História, a sensibilidade face ao sofrimento alheio ganhou direito de cidadania. Vivemos a época em que os valores — a igualdade, a fraternidade, a liberdade — se tornaram centrais. O debate e a legislação sobre os direitos da infância, dos emigrantes, das mulheres, o casamento homossexual, a adoção ou a eutanásia relevam dessa preocupação, novíssima, com os valores.
A disponibilidade de muitos ricos e famosos para dar parte das suas fortunas aos que mais precisam é uma novidade histórica. É verdade que esta consciência do outro como alguém semelhante ao “eu autobiográfico” (de que fala o autor português António Damásio no brilhante “O Livro da Consciência”) avançou em paralelo com um capitalismo em roda livre, abstrato e devorador, que conduziu a uma crise mundial de proporções gigantescas. Por quê?
Luc Férry, arguto filósofo que foi durante dois anos ministro da Educação na França, dizia, em entrevista recente, que a política é um rodeio no qual o objetivo é manter-se em cima do cavalo o máximo de tempo possível. Esta percepção da política pode ser pontualmente injusta, mas é real.
As traições na praça pública, a quebra de palavra, o desrespeito com que as pessoas se tratam umas às outras são o pão nosso de cada dia na política e explicam o cansaço dos mais velhos e o desprezo dos mais novos face a esta que devia ser a mais nobre das atividades humanas.
Quando se trata dos salários acintosos dos gestores públicos, diz-se que não é possível baixá-los sob pena de perder ‘os melhores’ — embora não esteja provado, antes pelo contrário, que esses cargos estejam de fato entregues, em regra e de um modo límpido, aos ‘melhores’. Mas ninguém se preocupa que a constante ausência de valores no trato político afaste ‘os melhores’ da política — o que já é grave para as governações e arrisca tornar-se, breve, fatal.