Visão de longo alcance

sexta-feira, 25 de março de 2011

Em 2003, VidaBrasil, então uma revista impressa, teve os seus editores recebidos por nada mais nada menos que George Soros. Os seus escritórios ficam no 33º andar de um arranha-céu de Manhattan. Das janelas do seu gabinete, a vista consegue alcançar todo o Central Park e a idéia que vem à cabeça é a de se “ter o mundo a seus pés”. Ou às mãos...Leia e chegue às suas conclusões sobre a impressionante clarividência deste que é um dos homens mais ricos do planeta.

Visão de longo alcance

 

 

Ele nasceu em Budapeste, Hungria, em 1930. Aos 17 anos trocou seu país pela Inglaterra, estudou na London Scholl of Economics e, posteriormente, começou a trabalhar numa empresa financeira. Em 1956, mudou-se para os EUA onde continuou sua carreira como analista de mercado. Aos 39 anos, deixou a empresa onde trabalhava e criou o seu próprio fundo de investimentos, Quantum, considerado o mais rentável do mundo. Na sua vida há um período fundamental, 1992. Nesse ano lançou um ataque financeiro contra a libra esterlina – apostando na sua desvalorização, comprou milhões de libras e trocou-as por marcos alemães – o que obrigou o governo britânico a retirá-lo do mercado. Também atuou contra a peseta, que sofreu uma desvalorização de 25%. Soros, e os investidores no seu fundo, tornaram-se muito ricos. Mas o broker é também um dos principais doadores para os programas de ajuda ao desenvolvimento: cerca de 500 milhões de dólares anuais. Para os seus atos filantrópicos, criou uma fundação que se dedica a distribuir o dinheiro por países em vias de desenvolvimento, muitos no Leste da Europa. Judeu, critica o Estado de Israel com a mesma tranquilidade que põe em causa o neoliberalismo. 

 

– O sr. tem defendido um aumento do controle sobre os mercados financeiros. Se esse controle tivesse sempre existido, teria ganhado todo o dinheiro que ganhou? 

– Quem sabe? Trabalho no mercado financeiro desde os anos 50; já assisti a muitas mudanças e já trabalhei em ambientes muito diferentes. Nos primeiros dez anos, a minha grande preocupação eram as ações; não tinha interesse em divisas porque o câmbio era fixo. Depois, as coisas modificaram-se. Nunca fui tão bom jogando com um único sistema de regras; fui bom, sim, em analisar as mudanças que iam ocorrendo nos diversos sistemas. 

– Por isso é que está tão interessado em impulsionar uma nova mudança nos mercados? 

– Não há qualquer interesse pessoal nas propostas que tenho feito. Não me irão trazer nenhum benefício. Pelo contrário, tenho proposto mudanças nas regras existentes que me vão prejudicar pessoalmente. Penso que quem joga no mercado financeiro deve fazê-lo para ganhar, mas no que diz respeito às regras, deveríamos pensar no que é melhor para a sociedade. O que defendo é uma esquizofrenia, mas se houvesse mais gente concordando comigo, a sociedade seria melhor. 

– Por quê? 

– Penso que, no que se refere às leis, há que se dar prioridade ao interesse público sobre o individual. Mas devemos esperar que as pessoas procurem o lucro pessoal. Tive de ter interesse em fazer dinheiro para poder prestar mais atenção ao interesse público. Antes de ter tido sucesso, centrava toda a minha atenção em fazer dinheiro. 

– Quando se deu essa mudança nos seus interesses e por que razão? 

– Em 1979. Porque consegui dinheiro suficiente para as minhas necessidades. Tinha ganhado 30 milhões de dólares e pensei que já era suficiente para mim. O negócio que geria (fundos de investimento) era muito estressante, podia morrer de um ataque do coração... Acreditei que era isso que iria me acontecer. Nessa época, tive muito sucesso; o valor desses fundos multiplicou-se, passou de 100 milhões de dólares a 400 milhões, e a tensão tornou-se ainda maior. Então perguntei a mim mesmo o que eu estava fazendo, onde devia usar esse dinheiro. Foi quando criei a fundação Open Society. 

– Bem, de certa forma, havia pelo menos um interesse pessoal: proteger o seu coração... 

– Sim, sim. É óbvio que me proporcionou alguma satisfação. 

– O que entender por Open Society (Sociedade Aberta), o nome da sua fundação? 

– É uma idéia filosófica. Trata-se de uma sociedade que garante o grau máximo da liberdade individual compatível com os interesses dos outros. É outra forma de definir a democracia. Criei a fundação Open Society e trabalhei para que se abrissem algumas sociedades fechadas: o regime de apartheid da África do Sul, os regimes comunistas da Polônia, Hungria... e China. E estive muito implicado na queda do sistema soviético. 

– Transformaram-se em sociedades abertas? 

– Nem sempre. Descobri que a queda de uma sociedade fechada não leva automaticamente a uma sociedade aberta; pode levar ao colapso. Aprendi que a liberdade individual pode ser ameaçada por um estado fraco, e não apenas por um estado forte. A falta de organização também é uma ameaça. Vi o perigo que constitui o fundamentalismo do mercado (mercados sem controle). Estar excessivamente dependente deles pode ser prejudicial a uma sociedade aberta. Esta estranha conclusão trouxe-me alguns conflitos. 

– Claro, é exatamente o contrário do que defendem os seus colegas financeiros... 

– Sim. Mas quando comecei a analisar a globalização, cheguei à conclusão de que os mercados financeiros não tendem para o equilíbrio. O seu comportamento é imprevisível, e isso deve ser corrigido pelos governos. 

– Há algum país que se encontre próximo da sua teoria de uma sociedade aberta? 

– Os Estados Unidos da América. Embora eu seja particularmente crítico em relação à política de Bush. Mas os EUA são uma democracia e, como tal, os governos podem mudar. Espero que o povo americano o faça num futuro não muito longínquo. 

– O que não lhe agrada, em particular, na política do presidente George W. Bush? 

– Bush adotou uma estratégia muito perigosa, baseada na idéia de que os EUA devem promover ações preventivas e manter a sua supremacia militar. Isso, na prática, estabelece duas classes de soberania: a dos Estados Unidos da América – que é sacrossanta e que deve ser protegida de interferências, tratados e leis internacionais – e a soberania do resto do mundo, submetido à possibilidade de uma intervenção preventiva por parte dos Estados Unidos da América. 

– Ou seja, está contra a guerra preventiva, essa política adotada recentemente pelo presidente dos EUA, que defende que é legítimo atacar para evitar males maiores? 

– A minha opinião é que as ações deveriam ter um autêntico caráter preventivo, e não de castigo. Se dermos incentivos a países que vão na direção certa, não interferimos na sua soberania. Só quando essas tentativas construtivas fracassam, é apropriada uma ação de castigo. 

– Mas essa não é a política habitual dos EUA, exceto, talvez, com o Plano Marshall, logo após a Segunda Guerra Mundial... 

– Mas o Plano Marshall foi um êxito, e poderíamos ter tido um Plano Marshall quando se deu a queda da URSS... No entanto, nos mercados imperava a idéia do fundamentalismo; dar uma mão não fazia parte dos ideais de então. 

– A situação atual não é igual. O que o leva a pensar que os norte-americanos vão eleger outra política, diferente desta que escolheram? 

– Os norte-americanos gastam de fazer o bem: têm uma preocupação legítima com o próximo. Mesmo o governo americano se sente obrigado a fazer algo concreto em relação à Aids, ou à miséria que impera na África. 

– O sr. é contrário a uma guerra dos EUA contra o Iraque? 

– Não. 

– Não a considera um ataque preventivo? 

– Não há nenhuma ação construtiva possível com Saddam. É um tirano perigoso que utilizou gases contra o seu próprio povo. É um perigo para o mundo. Mas deveríamos cumprir as leis internacionais. Se fracassar a ação da ONU, deveria formar-se uma aliança. Os EUA não devem atuar sozinhos. 

– Fala em atuar de acordo com as decisões da ONU. No entanto, no seu livro, não demonstra nenhuma confiança nesta instituição. 

– O problema da ONU é tratar-se de uma associação de estados soberanos guiados pelos seus próprios interesses, e não pelo interesse comum. Há ocasiões em que faz falta atuar, mesmo que a ONU não esteja de acordo. Gostaria e apoiaria uma ação contra o Iraque, mesmo sem o apoio das Nações Unidas. Por exemplo, com o apoio da Nato. 

– Pensa que vai haver guerra? 

– Acredito na possibilidade de Saddam entregar as suas armas de destruição em massa. Depende do quanto seja forte realmente, e da quantidade de armas que possui. Se, por exemplo, tem capacidade para atacar Israel, pode ser que resista; mas se não tem essa força, para que iria se queimar? Se seguirmos o caminho da ONU, pode ser que tenhamos êxito sem guerra. Mas acho que é importante querermos ir à guerra se for necessário. Estou contra a doutrina Bush, mas não contra a guerra ao Iraque. 

– Acredita que por trás de tudo está o interesse no petróleo? 

– Não creio ser essa a única razão, embora seja importante. Perdemos a confiança na Arábia Saudita e necessitamos de uma fonte alternativa. Tenho certeza de que essa é uma questão muito importante na política dos EUA, embora não se fale nisso. Parece-me razoável reduzirmos a nossa dependência do petróleo saudita. Mas o governo Bush está pondo em prática esta política de uma forma rápida demais, com prioridade exagerada. Aborrece-me que se deixem de lado outros temas muito mais importantes, como a crise no Brasil ou a prosperidade da economia global, que está em perigo e à qual não se tem prestado atenção. 

– Por que se preocupa com o Brasil e não com outros países, como a Argentina? 

– Podemos culpar os argentinos pela forma como conduziram a sua economia. Mas o Brasil sempre foi muito fiel aos conselhos de Washington. Fez tudo de acordo com as diretivas do Fundo Monetário Internacional. No entanto, está numa situação difícil. A taxa de juros que está pagando pela sua dívida externa é insustentável. 

– Luiz Inácio Lula da Silva, o novo presidente do Brasil, poderá mudar as coisas? 

– Não tenho certeza, mas suspeito que sim. 

– Em que sentido? 

– Acredito que vai se preocupar mais com os temas sociais, que não vai querer sacrificar tudo para pagar a dívida externa. Se as autoridades internacionais ajudarem, como penso que deveriam fazer, Lula poderá desenvolver uma política mais social. Se não conseguir ajuda, provavelmente insistirá na renegociação da dívida. 

– Se o Brasil se negar a pagar a dívida nas condições impostas pelo FMI, outros países em vias de desenvolvimento tentarão fazer o mesmo? 

– Penso que sim. Se realmente o conseguir, vai quebrar a atual organização internacional. Vai obrigar à introdução do sistema de controle do capital, e isso será o fim da globalização. 

– O Brasil não é o único país em crise; a economia mundial está passando por maus momentos... O sr. pensa que isso é conjuntural ou estamos chegando ao fim do capitalismo? 

– Na realidade, não vejo nenhuma alternativa ao capitalismo. 

– Estaríamos perto de um crash, como o de 1929? 

– Não, esse foi muito sui generis. Aproxima-se algo diferente. Mas não seria apropriado eu dizer que caminhamos para um crash. Disse-o em 1997 e não volto a fazê-lo. Foi um erro de minha parte. Quando o sistema está em perigo, quando se está mesmo à beira do precipício, as autoridades começam a trabalhar e solucionam o problema. Poucas vezes se chega a cair. 

– Estamos à beira do precipício? 

– Muito perto. 

– É certo que não vamos cair? 

– Certo, não sei. Há probabilidades. O que me preocupa profundamente é não existir urgência. Os focos apontam para o Iraque e ninguém presta atenção às questões financeiras. Estamos num mercado global onde as debilidades do sistema se tornam muito mais patentes. E é preciso corrigi-las. 

– Ninguém presta atenção? Ninguém mesmo? 

– Talvez os franceses estejam interessados, mas sem os EUA não se pode fazer nada. 

– Vai tentar convencê-los? 

– Repito, desde 1997, que estamos perante um problema novo: não há capital suficiente no centro para chegar à periferia. Creio que isso se deve a defeitos na estrutura, mas a opinião geral é de que se trata apenas de uma questão temporária. Ainda que cada vez mais gente reconheça que, realmente, é um problema estrutural, estamos longe de conseguir que os políticos alterem a situação. Vamos ver o que vai acontecer no Brasil... 

 


Autor: Celso Mathias
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