“A beleza e a excelência da paisagem de Cadaqués devem-se à sua estrutura. Cada colina, cada rochedo parecem desenhados por Leonardo em pessoa. À parte dessa estrutura, não há nada, e como vegetação, apenas umas pequenas oliveiras coroam com seus cabelos dourados as frentes pensativas das colinas enrugadas pelas trilhas meio apagadas. As vinhas que cobriam os flancos das montanhas desapareceram, dizimadas pela filoxera. Essa desolação acentua ainda mais a estrutura da costa. Os muros de sustentação de antigas vinhas, similares as linhas geodésicas, traçam degraus irregulares pelos quais toda a montanha parece majestosamente descer até ao mar. Sorridentes, taciturnos, exaltados de sentimentos dionisíacos nos cumes nostálgicos, rafaelitas ou paladianos, estes degraus voltam a florescer à borda da água. Sobre esta terra estéril e solitária, de rugosidade melancólica, repousam ainda hoje os dois pés nus e colossais desse fantasma sereno e perfumado que encarna e personifica todos os sangues e todos os vinhos ausentes da antiguidade”. É assim que Dalí descreve, na sua autobiografia “A Vida Secreta”, a paisagem que será o pano de fundo de praticamente todos os seus quadros e o canto do mundo que mais ama.
É ali ao lado, no minúsculo porto de Port Lligat, que se estabelece com Gala, a sua musa, quando seu pai o expulsa de casa. Curiosamente, será com o produto da venda de um quadro que gerou a ira do pai que Dalí compra a pequena casa de pescadores de Lídia “la bien plantada”, de quem o pintor dirá: “tinha o cérebro paranóico mais magnífico, tirando o meu, que alguma vez conheci”. Lídia tinha vagamente conhecido o crítico e escritor catalão Eugeni d’Ors, e sustentava ser ela a personagem do seu livro “La Bien Plantada”, entre outras fabulações que deliciavam Dalí.
Em Port Lligat refugia-se do rebuliço da vida parisiense, reencontrando-se na solidão que tanto procura desde a sua infância. “As manhãs ali são de uma alegria selvagem e rude, as tardes, muitas vezes, de uma melancolia mórbida”, dizia ainda Dalí sobre a terra que considerava a mais árida do planeta. O conjunto que se pode hoje visitar é o resultado de várias modestas habitações de pescadores que foi comprando e juntando ao longo dos anos. A casa de Port Lligat é talvez o maior ponto de atração do triângulo de Dalí, não só pela estrutura única do edifício, mas também pela sua localização no magnífico Cabo de Creus, pre-sente no interior graças a enormes vãos envidraçados. A decoração é um misto de simplicidade e bom gosto – com várias peças antigas adquiridas pelo casal – combinando com inúmeras excentricidades, como uns cisnes embalsamados na biblioteca, ou a forma em cruz singular da piscina, na ponta da qual, num pequeno terraço redondo, o casal recebia as visitas. Ou ainda as enormes camas de colcha rosa-shocking, que permitiam a Dalí ser o primeiro espanhol a ver nascer o sol. É ainda em Cadaqués, de onde o seu pai era originário e onde estava a casa de férias da família, que o artista catalão conhece Gala. Será em 1929, quando esta acompanha o marido Paul Eluard (com André Breton e Aragon, os três mentores do surrealismo), em visita a Dalí na pequena vila pesqueira. Segundo o pintor, Gala, de origem russa e 10 anos mais velha, era o segredo mais bem guardado da sua vida. Além do evidente papel de modelo, na sua autobiografia, o artista apenas revela os poderes de médium de Gala como influência na sua obra.
A fraqueza, a velhice e o luxo são três coisas que Dalí dizia adorar. É numa viagem a Málaga com Gala que decide que terá que fazer fortuna para tornar a primeira realidade. Assim, parte para Paris, onde passará então grande parte da sua vida, para chegar à fama. É pela mesma razão que Dalí, de uma criatividade e produção incansáveis – desde filmes (como o Cão Andaluz, absolutamente surrealista, com o seu amigo Luis Buñuel), jóias (uma bela coleção encontra-se em Figueres), peças de roupa para Coco Chanel, de quem era íntimo, balés, artigos em revistas como na emblemática “Minotaure”, decoração de casas – chega ao extremo de fazer publicidade e até vitrines de estabelecimentos comerciais. Será esse excesso de exposição comercial que levará André Breton – que acaba por expulsá-lo do grupo surrealista parisiense – a chamá-lo de Ávido Dólar. Ambos os fatos deixam Dalí indiferente, ou melhor, será mais uma razão para ser falado e confirmar sua unicidade. À pergunta de um jornalista “O que é surrealismo?”, o narcisista responderá taxativo “O surrealismo sou eu!”.
Dalí nasceu em 1904, sob o signo de touro, a vinte quilômetros de Cadaqués, em Figueres, onde o seu pai era tabelião. Antes dele, os pais tiveram um filho que morreu prematuramente, o que explica a educação liberal e mimada que Dalí recebeu, e o que reforçará o seu caráter caprichoso e anárquico. Quando o jovem tem 16 anos, a sua mãe morre, no mesmo ano em que vai para a Escola de Belas Artes de San Fernando de Madrid, onde se torna amigo de García Lorca e Buñuel. Cinco anos mais tarde é expulso por criticar abertamente a seleção de um professor, na sua opinião, demasiado acadêmico.
O museu-teatro que Dalí projetou para expor as suas obras encontra-se justamente em Figueres (a uma hora ao norte de Barcelona pela auto-estrada), por cima de um teatro do séc. XIX que incendiou na guerra civil e do qual restam alguns vestígios. Inaugurado em 1974, é o único, mas suficiente, ponto de interesse da cidade. Dando asas à sua imaginação, Dalí desenhou um edifício ao nível das suas obras, ou seja, absolutamente surrealista, desde a sua casa colada ao museu com uma monumental fachada cor-de-rosa coberta a cocós (que, além de uma deliciosa provocação, considerava aterrorizadores) e com gigantescos ovos no telhado, à coleção propriamente dita. É notório o sentido de humor do artista, característica que fará com que nunca leve muito a sério as teorias surrealistas, apesar do seu método de análise paranóico-crítico. Ligeireza essa que também irritará os surrealistas de Paris. Dalí conta, na sua autobiografia, que um dia é convidado a dar uma conferência para explicar o seu famoso método. Como já era habitual, o certame é aplaudido com entusiasmo pelo público, apesar da erudição e das expressões rebuscadas que lhe eram próprias. Dalí tinha como lema cretinizar as massas. Confessa que nem ele percebia o seu significado. Ouvir a pergunta “O que é que isso representa” era uma das coisas que mais prazer davam a Salvador.
Nas cerca de 4 mil obras expostas, o visitante é mergulhado no universo daliniano, desde a obra mais acadêmica, a instalações, como o famoso “rosto de Mae West podendo ser utilizado como apartamento”, passando pelo impressionismo, cubismo, favismo, jogos óticos e sobretudo surrealismo. Apesar de Dalí afirmar ser um ex-surrealista a partir da década de cinquenta, época em que envereda por um gênero mais próximo do realismo e interessa-se por temas mais místicos, na realidade foi dos raros pintores que mantiveram um estilo toda a sua vida (os outros estilos foram mais experiências que fez ainda estudante ou no princípio da sua carreira). Contrariamente à maioria dos pintores do mesmo movimento, o seu surrealismo era devido mais ao tema e não ao estilo, este último clássico, sendo Dalí um paladino da tradição. Aliás as suas grandes referências são Rafael, Millet ou Velazquez, para dar alguns exemplos, e o pintor catalão abominava a arte abstrata, que se desenvolvia em paralelo aos movimentos figurativos. Por outro lado, contrariamente aos processos automáticos desenvolvidos pelos surrealistas (em que a criação, seja na escrita, seja na pintura, era um processo não racional, não controlado pelo seu autor), Salvador defende o seu método paranóico-crítico, em que leva à tela propositadamente, se bem que de forma irracional, as imagens que o perseguem. São exemplo disso as formigas ou os gafanhotos, os personagens antropomórficos, os relógios moles, as muletas, alusões sexuais, e tantos outros que aparecem repetidamente nas suas telas.
Apesar de, para os que se lembram da figura “bigoduda” que falava alto arrastando as palavras, a memória do homem parecer distante, Dalí morreu apenas em 1989, nesse mesmo teatro-museu para onde tinha se mudado após um incêndio no castelo de Pújol cinco anos antes, e na cripta do qual se encontra sepultado. A sua última obra será pintada em 1983, um ano após a morte da sua musa Gala.
Nos anos 30, Dalí promete a Gala que um dia lhe compraria um castelo. Em 1970 oferece-lhe Pújol, a 40 quilômetros ao sul de Figueres, para onde se retira a sua musa, desta vez, sozinha. Dalí só podia ir até lá quando convidado por Gala. Mais fautoso do que Port Lligat, o castelo medieval é recheado por um conjunto de móveis antigos, desenhos e pinturas oferecidas por Dalí, vestidos de Gala e várias excentricidades, como por exemplo um conjunto de esculturas de elefantes no jardim. E os despojos de Gala, lá enterrada.
Entre as pessoas (raras) que Dalí admirava, contam-se Picasso, Freud e Gaudi. O primeiro tinha em comum, além de uma enorme vivacidade e capacidade de trabalho, uma marcada imodéstia. Dalí conhece-o na sua primeira viagem a Paris, em 1927. “Quando cheguei na casa de Picasso, na rue de La Boétie, fiquei tão comovido e em respeito como se tivesse uma audiência com o próprio Papa. Venho a sua casa, antes de ir ao Louvre, disse-lhe. E não fez nada mal – respondeu ele”.
Freud, que o mestre desenhou como uma cabeça de caracol, era uma fonte de inspiração para as suas obras, sendo que o surrealismo tem como fonte as teorias da psicanálise. A sua admiração leva Dalí a visitá-lo em Londres, em 1938, para lhe mostrar a Metamorfose de Narciso e expor o seu método paranóico-crítico. Freud não teria ficado muito impressionado e o comentário de maior relevo que se reteve desse encontro teria sido “nunca tinha visto um protótipo tão perfeito de espanhol. Que fanático!”. Quanto ao arquiteto, seria cronologicamente difícil Dalí conhecê-lo (morre em 1926), mas o seu estilo gótico mediterrâneo, como lhe chama o pintor, será de grande influência nas suas obras.
Dalí também não era tão louco quanto se fazia. Aliás, ele próprio dirá “a grande diferença entre mim e um louco é que eu não sou louco”. As suas loucuras eram na realidade pura provocação. Criar um certo mal-estar era o divertimento predileto.
Conta-se que um dia tinha sido convidado para dar uma conferência sobre o seu famoso smoking afrodisíaco, o qual tinha 88 pequenos copos cheios de licor de menta. Para o espanto de todos, o mestre aparece no interior de um escafandro. “Um especialista tinha vindo enroscar com segurança o capacete. Os sapatos de chumbo tinham-se revelado tão pesados que mal conseguia levantá-los. Dois amigos tinham-me ajudado a arrastar-me até à tribuna onde eu tinha aparecido no meu estranho traje, segurando numa coleira duas perdizes brancas. O público londrino deve ter ficado singularmente angustiado, porque fez-se um silêncio total. Nesse momento, senti-me desmaiando de asfixia e chamei para que desenroscassem o capacete. Só que o especialista tinha sumido. Tentaram então rasgar o traje, e depois, finalmente martelar nos parafusos. A cada golpe, pensava que ia morrer. O público, convencido de que se tratava de uma performance montada em detalhes, aplaudia alegremente. Mas quando finalmente apareci, a cabeça descoberta, pálido como um agonizante, todo mundo ficou chocado com esse lado dramático que é próprio dos meus atos”.
É evidente que depois de Dalí, que dizia ficar atônito com a cegueira dos humanos em fazer e refazer sempre as mesmas coisas, pouco há para inventar!
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A casa de pescadores do cabo Creus, o castelo de Pújolo oferecido a Gala e o teatro-museu de Figueres são três mundos a alternar com mergulhos nas enseadas da Costa Brava
Em Port Lligat, o casal retirava-se para longe da vida social de Paris, onde Dalí dava o que falar. De sua cama, o pintor era o primeiro espanhol a ver o sol. Ao lado, um canto do atelier
O magnífico cabo de Creus, que Salvador considerava ser o lugar mais árido da terra, está constantemente presente no interior. É pano de fundo de quase todos os quadros do artista
O teatro-museu, desenhado por Dalí, tem um acervo de mais de 4 mil obras. Absolutamente surrealistas
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