NA PERIFERIA DE MONTREAL
ERGUE-SE A FÁBRICA ONDE OS SONHOS SÃO IMAGINADOS E CRIADOS: A SEDE DO CIRQUE DU
SOLEIL. ALI A INSPIRAÇÃO ANDA DE MÃOS DADAS COM A CRIATIVIDADE
A fábrica não pára. A cada novo dia, os ateliês, os
estúdios, os bares, o ginásio de fitness e os escritórios produzem novos
artistas, novos talentos, novas ideias que ganham corpo no movimento nômade (há
19 espectáculos diferentes em excursão pelo mundo) ou que habitam uma sala
durante anos seguidos— como é o caso de “Love”,
em Las Vegas, inspirado nos Beatles, por
exemplo.
A rua continua presente dentro do edifício. O sol entra
pelas paredes de vidro que dão para o exterior. No interior, essas
transparências simbolizam o desejo de liberdade, mas principalmente criam a
relação entre as diferentes áreas de trabalho, promovendo o encontro constante
entre artistas e acrobatas em treino e funcionários de outros departamentos.
Esta ideia arquitetônica traduz uma das imagens de marca do Cirque: nunca
perder de vista o centro da dinâmica que os move e ali decorre, ou seja, a
imaginação e a criatividade. E a relação com a rua. Talvez por isso pareça
normal cruzar com uma pessoa a andar de bicicleta num corredor.
O Cirque du Soleil é um pequeno globo terrestre em
menor escala. O multiculturalismo está presente nos espectáculos, e na
inspiração da criatividade. Mas essa impressão de um pequeno planeta Terra
torna-se ali mais clara. As línguas misturam-se ao ritmo do movimento dos
corpos que se cruzam no caminho. Na cantina, os cheiros trazem lembranças dos
quatro cantos do mundo. E mais ainda desse lugar distante chamado fantasia. A
sopa é ‘poção mágica’. O café expresso é tirado numa máquina aparentemente
tecnológica. Mas é só a fingir. Por trás esconde-se uma funcionária que faz
tudo manualmente. No final das refeições, cada um é responsável por fazer a
seleção dos dejetos. A água da chuva é colhida e reaproveitada. Têm no exterior
um quintal onde plantam vegetais e frutas, que usam para cozinhar e que
partilham com a vizinhança.
De fora, parece um edifício funcional, mas esconde lá
dentro o colorido de um arco-íris de faz-de-conta que inventa uma história a
cada novo espetáculo. A qualquer instante surge o espanto. Num dos estúdios,
uma acrobata rodopia num trapézio, em viravoltas mirabolantes a cru, sem
figurino que a transporte para uma dimensão além do humano. Quase roça por uma
pessoa que por ali passa. Se desviamos um pouco o olhar, encontramos o sorriso
de uma asiática com o corpo virado do avesso, numa pose aparentemente
impossível. Ao fundo, um rapaz desafia a gravidade no trampolim. Fala português
e chegou há pouco tempo.
Diogo Faria está a treinar para a personagem Old Bird,
na versão de arena do histórico “Alegria”
(de 1994) prestes a estrear. Ele é português e aceitou em 2006 o convite para
entrar no Cirque. Nuno,outro português que já foi campeão Olímpico, faz parte
do elenco de “Zaia”, o espectáculo
residente em Macau. Ambos foram descobertos pelos chamados ‘olheiros’ do
Cirque.
Além de todo o universo de desenvolvimento artístico, e
de um ginásio de fitness que todos os funcionários podem frequentar, a sede do
Cirque tem uma larga extensão de área ocupada por ateliês de artesanato, onde
tudo é feito à mão. Uma peruca, por exemplo, com implantação de cabelo
artificial fio a fio, pode demorar 150 horas. Mas para lá das cabeleiras
pensadas e executadas ao pormenor, são também feitos, às centenas, chapéus,
sapatos, figurinos, tecidos — com desenhos e cores impressos ao metro ou
pintados à mão... A imaginação é o limite.
Percorrer aqueles ateliês é encontrar paredes inteiras,
de cima a baixo, cobertas de formas de pés de madeira; sucessões de figurinos
coloridos, de formas invulgares; exemplares de tecidos que confundem em novas
combinações as cores do arco-íris ou inventam novos desenhos, padrões e peles
de criaturas que não existem. Por ali estão protegidos os cadernos que guardam
as memórias de todos os traços das ideias originais, aos quais regressam sempre
que é preciso refazer algo.
A visão mais impressionante é a das dezenas de bustos
de um branco pálido, alinhados lado a lado. Os olhos estão fechados e os lábios
cerrados, alguns a vislumbrar a possibilidade de um sorriso que não chegou a
florir. São a reprodução exata da cabeça de cada um dos artistas que alguma vez
entraram num espetáculo do Cirque du Soleil. Se as bailarinas têm os pés
medidos ao pormenor a pensar nas sapatilhas ideais, os artistas do Cirque têm o
molde da sua cabeça, feito logo que lá chegam.
Estes atletas-artistas desafiam as alturas, a
elasticidade do corpo no contorcionismo, a velocidade e a vertigem do ar no
trapézio ou no malabarismo. Muitas vezes têm de usar chapéus, cabeleiras ou
máscaras. Estes têm de ser feitos à medida da cabeça que as vai usar. Para que
a vida não se interrompa a meio de um vôo. No final, tudo é construído em
função de uma ideia que um criador teve. Mas o sonho, que eles dizem que
continua, é esse inicial que nasceu na rua, em cima “pernas de pau” que
transformam os homens em gigantes: tocar com a cabeça nas nuvens.