Voltemos ao passado, para entender em que momento o torcedores do Vitória deixaram de ser donos do próprio “nariz”, quem eram os donos, e o que isso representava ao clube até aquele momento.
Ainda no ano de 2000, cerca de seis meses após o Vitória conquistar o 4º lugar no campeonato brasileiro, e pouco mais de um ano após o centenário do clube, o então presidente, Paulo Carneiro, selou um contrato até então inédito no Brasil. Vendeu 50,1% das ações do Vitória S.A – que cuidava apenas do departamento de futebol da entidade esportiva – para investidores argentinos do Fundo Exxel Group.
O banco se tornaria, desse modo, o primeiro acionista a investir no futebol brasileiro nesses moldes. Era um momento de grandes mudanças no esporte mais popular do país. O negócio foi visto como marco desse momento. Elogiado de vários flancos, o Vitória entrou de cabeça numa “parceria”, na qual já planejava grandes ganhos nos anos que viriam. Nem o clube, nem a imprensa – que tanto apoiou o processo – imaginavam o caos em que se transformaria a vida do rubro-negro baiano nos anos seguintes.
O “novo momento” do futebol brasileiro era a tal “profissionalização e garantia da ética empresarial” nos clubes. Um movimento que alterou juridicamente os estatutos dos clubes, a ‘função-social’ do desporto profissional e por fim, os atores que mandariam no futebol brasileiro.
Inspirado no modelo europeu, que havia sido inaugurado ainda na década de 1980, o futebol brasileiro viu-se obrigado a se “modernizar”. Um verdadeiro copia-e-cola foi re-editado na chamada Lei Zico. Num artigo feliz, o sociólogo Emir Sader qualificou o movimento como a introdução do “neoliberalismo no futebol”2.
O processo havia começado exatamente na Inglaterra de Margareth Thatcher, a governante para quem não havia alternativas à submissão das sociedades aos mercados, a concorrência e à busca pelo lucro como fim.
A nova doutrina política e econômica invadiu o futebol – já então, um jogo popular em qualquer parte do globo. Thatcher e seus seguidores tinham um argumento-engodo para conseguir apoio de diversos setores da sociedade. Para eles, a mercantilização era indispensável para enfrentar o domínio dos estádios pelos hooligans, os torcedores ultra-violentos. No Brasil, mais tarde, um imenso coro de jornalistas, ex-atletas e políticos influentes usariam como pretexto o suposto combate ao poder dos “cartolas”.
De fato, a “cartolagem” precisava ser exterminada. Foram incontáveis os casos de abuso de poder, negociações ilícitas, uso do futebol para fins políticos, manipulação de resultados e todo tipo de falcatrua possível. Os velhos dirigentes do futebol tornaram-se verdadeiros “piratas”, como disse uma vez Juca Kfouri. Eram verdadeiras máfias que se apropriaram do jogo.
O próprio Juca Kfouri, um dos jornalistas mais influentes e empenhados que passaram pelo futebol brasileiro, foi um verdadeiro militante (como o mesmo se intitula) da causa do jogo. Um dos principais articuladores políticos da Lei Pelé – que viria a substituir, corrigir, e tornar mais forte o que a Lei Zico propôs –, era conhecido também por ser um caçador de cartolas, inimigo número um de senhores como Eurico Miranda, presidente do Vasco da Gama. Juca considerava o futebol “um negócio grande demais para ser deixado nas mãos de ‘amadores’ que só fazem enriquecer sem prestar contas a ninguém”, como afirmou, em 1995, em sua coluna na Folha de São Paulo, ainda no ano de 1995. Reconheceria, anos depois, no que o projeto não funcionou3.
A Lei Pelé bateria o martelo, em definitivo, na obrigatoriedade de os clubes de assumirem o caráter de empresas. Oferecia três opções: tornarem-se sociedades civis de fins econômicos, mantendo por tanto um quadro de associados, mesmo depois de abrir seu capital (o caso do Vitória S.A); tornarem-se sociedades comerciais, a versão mais acabada de clubes-empresas, que têm proliferado pelo Brasil (Grêmio Prudente/Barueri, RedBull F.C, Pão de Açucar); ou , simplesmente contratar uma empresa com fins lucrativos para a gestão dos seus negócios.
Quinze anos após a Lei Pelé, constata-se que os cartolas perderam, de fato, alguma força. Transferiu-se um pouco do seu poder quase feudal sobre os clubes para entregá-los… ao poder corporativo! Mesmo sofrendo notáveis alterações, a lei não solucionou de forma alguma os problemas do futebol. Pelo contrário, criou outra forma de apropriação sobre o jogo, que tem se revelado, por incrível que pareça, muito pior do que os desmandos dos cartolas.
Nos estádios europeus, e ainda timidamente em alguns estádios brasileiros, já há um grupo de torcedores críticos. Eles perceberam que cartolas e capitalistas, apesar de suas diferenças, têm algo muito forte em comum. Ambos os grupos buscam o benefício próprio, em detrimento das verdadeiras razões do futebol existir, expressas nas relações culturais entre torcedores, clubes e jogadores. Os europeus expressam seu protesto através de faixas com dizeres como: “Não ao Futebol Moderno”, destacando a sua indignação com o que se tornou o jogo após tal a “profissionalização”.
Os homens das corporações ainda estão presente, seja travestidos de dirigentes, empresários geniais ou agentes caridosos. O Palmeiras sofreu com sua parceria com J.Hawilla e a Traffic. O Corinthians viveu seus momento de agruras com a MSI, o Flamengo com a ISL, o Cruzeiro com a Hick&Muse… O Vitória, com o Exxel Group.
Um antigo empregado do banco argentino, Flávio Raupp, contratado para representá-lo na “parceria” revelou ao próprio blog4 de Juca Kfouri o que os investidores pensavam, ao comprar mais da metade das ações, e consequentemente adquirir maior poder de decisão do Vitória S.A por 6 milhões de reais: “um negócio da China”. Não é difícil entender a quem serviu esse negócio.