Engodo do futebol-empresa

sábado, 7 de maio de 2011

O Esporte Clube Vitória descobriu que entregar seu destino a investidores pode ser mais desastroso que aceitar o domínio dos “cartolas”…Em maio de 2010 o Vitória selou definitivamente a última parcela da recompra das ações vendidas no período do Vitória S.A, artifício criado pelo clube para entrar no mercado financeiro. Dois anos antes, Jorge Sampaio, então presidente da Sociedade Anônima revelara a sua satisfação com o fim da aventura: “o importante é que seremos donos do nosso próprio nariz”.

Engodo do futebol-empresa

Voltemos ao passado, para entender em que momento o torcedores do Vitória deixaram de ser donos do próprio “nariz”, quem eram os donos, e o que isso representava ao clube até aquele momento.

Ainda no ano de 2000, cerca de seis meses após o Vitória conquistar o 4º lugar no campeonato brasileiro, e pouco mais de um ano após o centenário do clube, o então presidente, Paulo Carneiro, selou um contrato até então inédito no Brasil. Vendeu 50,1% das ações do Vitória S.A – que cuidava apenas do departamento de futebol da entidade esportiva – para investidores argentinos do Fundo Exxel Group.

O banco se tornaria, desse modo, o primeiro acionista a investir no futebol brasileiro nesses moldes. Era um momento de grandes mudanças no esporte mais popular do país. O negócio foi visto como marco desse momento. Elogiado de vários flancos, o Vitória entrou de cabeça numa “parceria”, na qual já planejava grandes ganhos nos anos que viriam. Nem o clube, nem a imprensa – que tanto apoiou o processo – imaginavam o caos em que se transformaria a vida do rubro-negro baiano nos anos seguintes.

O “novo momento” do futebol brasileiro era a tal “profissionalização e garantia da ética empresarial” nos clubes. Um movimento que alterou juridicamente os estatutos dos clubes, a ‘função-social’ do desporto profissional e por fim, os atores que mandariam no futebol brasileiro.

Inspirado no modelo europeu, que havia sido inaugurado ainda na década de 1980, o futebol brasileiro viu-se obrigado a se “modernizar”. Um verdadeiro copia-e-cola foi re-editado na chamada Lei Zico. Num artigo feliz, o sociólogo Emir Sader qualificou o movimento como a introdução do “neoliberalismo no futebol”2.

O processo havia começado exatamente na Inglaterra de Margareth Thatcher, a governante para quem não havia alternativas à submissão das sociedades aos mercados, a concorrência e à busca pelo lucro como fim.

A nova doutrina política e econômica invadiu o futebol – já então, um jogo popular em qualquer parte do globo. Thatcher e seus seguidores tinham um argumento-engodo para conseguir apoio de diversos setores da sociedade. Para eles, a mercantilização era indispensável para enfrentar  o domínio dos estádios pelos hooligans, os torcedores ultra-violentos. No Brasil, mais tarde, um imenso coro de jornalistas, ex-atletas e políticos influentes usariam como pretexto o suposto combate ao poder dos “cartolas”.

De fato, a “cartolagem” precisava ser exterminada. Foram incontáveis os casos de abuso de poder, negociações ilícitas, uso do futebol para fins políticos, manipulação de resultados e todo tipo de falcatrua possível. Os velhos dirigentes do futebol tornaram-se verdadeiros “piratas”, como disse uma vez Juca Kfouri. Eram verdadeiras máfias que se apropriaram do jogo.

O próprio Juca Kfouri, um dos jornalistas mais influentes e empenhados que passaram pelo futebol brasileiro, foi um verdadeiro militante (como o mesmo se intitula) da causa do jogo. Um dos principais articuladores políticos da Lei Pelé – que viria a substituir, corrigir, e tornar mais forte o que a Lei Zico propôs –, era conhecido também por ser um caçador de cartolas, inimigo número um de senhores como Eurico Miranda, presidente do Vasco da Gama. Juca considerava o futebol “um negócio grande demais para ser deixado nas mãos de ‘amadores’ que só fazem enriquecer sem prestar contas a ninguém”, como afirmou, em 1995, em sua coluna na Folha de São Paulo, ainda no ano de 1995. Reconheceria, anos depois, no que o projeto não funcionou3.

A Lei Pelé bateria o martelo, em definitivo, na obrigatoriedade de os clubes de assumirem o caráter de empresas. Oferecia três opções: tornarem-se sociedades civis de fins econômicos, mantendo por tanto um quadro de associados, mesmo depois de abrir seu capital (o caso do Vitória S.A); tornarem-se sociedades comerciais, a versão mais acabada de clubes-empresas, que têm proliferado pelo Brasil (Grêmio Prudente/Barueri, RedBull F.C, Pão de Açucar); ou , simplesmente contratar uma empresa com fins lucrativos para a gestão dos seus negócios.

Quinze anos após a Lei Pelé, constata-se que os cartolas perderam, de fato, alguma força. Transferiu-se um pouco do seu poder quase feudal sobre os clubes para entregá-los… ao poder corporativo! Mesmo sofrendo notáveis alterações, a lei não solucionou de forma alguma os problemas do futebol. Pelo contrário, criou outra forma de apropriação sobre o jogo, que tem se revelado, por incrível que pareça, muito pior do que os desmandos dos cartolas.

Nos estádios europeus, e ainda timidamente em alguns estádios brasileiros, já há um grupo de torcedores críticos. Eles perceberam que cartolas e capitalistas, apesar de suas diferenças, têm algo muito forte em comum. Ambos os grupos buscam o benefício próprio, em detrimento das verdadeiras razões do futebol existir, expressas nas relações culturais entre  torcedores, clubes e jogadores. Os europeus expressam seu protesto através de faixas com dizeres como: “Não ao Futebol Moderno”, destacando a sua indignação com o que se tornou o jogo após tal a “profissionalização”.

Os homens das corporações ainda estão presente, seja travestidos de dirigentes, empresários geniais ou agentes caridosos. O Palmeiras sofreu com sua parceria com J.Hawilla e a Traffic. O Corinthians viveu seus momento de agruras com a MSI, o Flamengo com a ISL, o Cruzeiro com a Hick&Muse… O Vitória, com o Exxel Group.

Um antigo empregado do banco argentino, Flávio Raupp, contratado para representá-lo na “parceria” revelou ao próprio blog4 de Juca Kfouri o que os investidores pensavam, ao comprar mais da metade das ações, e consequentemente adquirir maior poder de decisão do Vitória S.A por 6 milhões de reais: “um negócio da China”. Não é difícil entender a quem serviu esse negócio.



Autor: Irlan Simões
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