APacific
Avenue divide a cidade em duas partes distintas. De um lado,
o luxo dos resorts, dos casinos e dos hotéis. Do outro, a rua do dia-a-dia, das
one dollar stores, dos cubículos onde
se servem refeições com muita gordura e caloria a baixo custo, dos clubes de
vídeo para adultos e das casas de striptease. A meia dúzia de metros de
distância, em paralelo, as duas faces de Atlantic City.
John Elie, um sem-abrigo, sabe tirar partido de cada
uma delas. Chegou de Filadélfia há cinco anos, onde dormia sob um dos viadutos
da 95 (auto-estrada que faz uma tangente àquela cidade), para vir mendigar aos
milhões de turistas que aparecem na Las Vegas do leste americano. “A vida por
aqui é mais fácil”, explica.
À porta da igreja St. Nicholas Tolentine, no número
1409 de Pacific Avenue, aguarda por um almoço grátis. Elie e mais uma dezena de
homeless resguardam-se do frio de
rachar, agravado pela humidade oceânica. À medida que a fila encurta e o cheiro
a batata frita se intensifica, curva-se cada vez mais, tentando aconchegar o
mais possível os dois metros de corpo num sobretudo beije todo esburacado.
Uma vez com o estômago cheio, encosta-se numa cadeira
verde de plástico e começa a falar sozinho. Os amigos metem-se com ele: “Então,
está na hora! Hoje não vais?”. Atento à chamada, levanta-se, esfrega as mãos e,
como que num ritual de preparação, responde: “É hoje que vou ficar rico!”.
Sai da igreja e entra no Taj Mahal, no outro lado da Avenida, o resort construído à imagem
do célebre monumento indiano — um dos três casinos propriedade do
multimilionário Donald Trump.
O mendigo guarda nos bolsos montes de moedas de 25 cents,
resultado de dois dias de rua. Hoje é dia de slot machines. “É para gastar
tudo”, assegura. John Elie personifica a decadência que se abateu sobre a cidade
que, durante a década de 90, disputou com Las Vegas o título de capital
norte-americana do divertimento. Por aqui, a sorte parece estar mudando.
Atlantic City atravessa a pior crise desde 1976, quando
o jogo foi finalmente legalizado. Três mil pessoas foram despedidas no último
ano e o negócio caiu quase 20% em 2008, de acordo com a New Jersey Casino
Control Commission.
Donald
Trump, por exemplo, cansou-se de perder dinheiro e declarou
a falência dos seus três casinos — Taj Mahal, Trump Plaza e Trump Marina.
O processo de insolvência entrou em tribunal há um mês. A Pinnacle suspendeu a
construção de um novo, com as obras já em andamento. O esqueleto do edifício,
com algumas dezenas de andares, jaz na marginal. Ele tornou-se um símbolo dos
tempos atuais em Atlantic City.
E se o jogo acabar a cidade morre. Os 13 casinos são os
maiores empregadores da comunidade. Desde 76, geraram um negócio de mais de 7
mil milhões de dólares, contribuindo em impostos municipais com cerca de 300
milhões.
“Já trabalho aqui há 20 anos e nunca vi isto assim”,
explica Daniel Coe, habituado a transportar milhares de turistas para qualquer
ponto do Boardwalk, a passarela de
madeira que serpenteia a costa ao longo de mais de 10 quilómetros. “Desde o
início do ano, ainda só tive três clientes. Três!”.
A crise tem costas largas e por isso ela é a explicação
mais óbvia para o cenário tristonho. Mas Ryahn Motees, 24 anos, bon-vivant e
empregado no Bally’s, tem outra
opinião: “A verdade é que aqui não há alternativas ao jogo. Em Vegas sempre
temos os espectáculos. Aqui nada!”.
À parte dos artistas “aposentados”, de cabelo pintado,
que improvisam para salas desertas versões de Sinatra e Elvis, o melhor que há
para oferecer por estes dias é um concerto dos Kool and the Gang — banda de
sucesso do início dos anos 80, entretanto desenterrada do baú das recordações.
“É uma miséria”, desabafa Motees, um veterano do
circuito de strip joints da cidade. “Para os da minha idade é o que há. Pelo
menos vemos alguma ação”. É num desses bares manhosos, com muita pele à mostra
e cerveja a correr, que ele irá terminar mais uma vez o dia, a “descontrair”
com amigos.
Os mais novos bem podem detestar a alcatifa, os
dourados e os lacados do interior dos casinos, mas os mais velhos parecem adorar. Estão por todo o lado. Grande
parte chega em excursões, oriundas das ‘vizinhas’ Baltimore, Filadélfia,
Washington e Nova Iorque. Jack Thompson e Nicholas Twalsky, 61 e 59 anos
respectivamente, são clientes habituais do Hilton. Costumavam vir uma vez por
mês, um hábito que se alterou: “há mais de seis meses que não púnhamos os pés
aqui”, revela Jack.
Trazem o dinheiro contado, gastando o menos possível no
conforto ou até mesmo numa boa alimentação. É preciso estar prevenido na hora
de apostar. Twalsky, um ex-mergulhador com uma magra aposentadoria, decidiu
ficar hospedado no motel Greco, a cerca de cem metros dali. Thompson, um antigo
professor, ainda é capaz de pagar umas noites num dos quartos dos pisos
superiores do Hilton. “É mais prático. Cedinho, apanho o elevador e em segundos
estou pronto”. E às 10h já estão jogando. Na pior das hipóteses, pode ser que
lhes seja sorteado um almoço à gratuito no restaurante Cornucópia.
Duas horas depois gastaram 200 dólares cada um e
perceberam que se quiserem comer vão ter de pagar do próprio bolso.
Sobem três lançes de escadas rolantes e metem-se numa
fila de alguns metros. Em troca de 15 dólares, podem consumir o que quiserem.
Ir até onde o estômago permitir
“Não há tempo a perder”, diz Twalsky, à medida que
devora uma pilha de panquecas ensopadas em caramelo. “Quero descer dentro de
cinco minutos para ser dos primeiros no Black
Jack”. Vai apostar duas chips (fichas) de cinco mil dólares cada. O amigo
tenta chamá-lo à razão, mas não há nada a fazer. “Vou-me embora amanhã e quero
ir em estilo”.
Mas mais uma vez, Twalsky partirá de bolsos vazios. No dia seguinte, faz as malas e promete a si mesmo que não voltará. O amigo Jack pisca-lhe o olho, sorri e ajuda-o a transportar as malas. Ele sabe que a frustração é passageira e o regresso é mais do que certo.