Mas nem tudo vai a leilão. Bergé guarda para si um retrato de Yves assinado por Andy Warhol,
e uma escultura de uma ave Senufo — o primeiro objeto comprado pelos dois. E
deverá doar um Goya, “Don Luis Maria de Cistúe y Martinez”, ao Louvre.
Passear pelo duplex de Saint Laurent, na Rua de
Babylone, 55, no VIIème arrondissement — Rive Gauche, bien sûr, como o nome da
loja que viria a abrir —, é como passear num museu vivo, ou receber uma lição
de História. Pelos dois andares, forrados a quadros, esculturas, mobiliário
raro e peças de ourivesaria, cruzam-se Picasso, Braque, Magritte, Goya, Warhol,
Mondrian, totems de Brancusi, espelhos de Lalanne, cadeiras de Eileen Gray. Um
mergulho no pré-modernismo e modernismo, na Art Déco e na arte moderna, com uma
pincelada de Antiguidade clássica, visível no sarcófago egípcio da era ptolomaica ou no “Busto” romano. A
decoração em muito foi beber inspiração a uma figura excêntrica e culta da
época, visita de casa, a viscondessa Marie-Laure de Noailles. Mecena das artes,
íntima dos surrealistas, tinha um salão a que Saint Laurent chamava “a oitava
maravilha do mundo”. “Yves fez com a costura o que Marie-Laure fez com a
decoração: quebrar as regras ao justapor coisas que nada têm a ver umas com as
outras”, escreveu o fotógrafo François Marie Banier.
“O
APARTAMENTO” SAINT LAURENT E PIERRE BERGÉ, NA RUE DE BABYLONE, 55, FOI COMPRADO
EM 1969 E RECHEADO COM AS MAIS DE 733 OBRAS QUE VÃO A LEILÃO, INCLUINDO AS 18
CADEIRAS GENOVESAS DA SALA DE JANTAR
Daí o ecletismo da coleção. Diz Bergé: “Uma coleção é
como uma mesa de jantar. É sobre quem foi convidado, mas também sobre quem não
está lá. Talvez tivéssemos gostado de ter Barnett Newman, Bacon ou Pollock. Mas
nós não éramos didáticos. Queríamos que os objetos falassem uns com os outros.
Fizemos a nossa coleção com muita paixão e muita certeza.”
Recuemos então até 1969, data de compra do
‘apartamento’, que se foi enchendo aos poucos, graças ao olho do estilista e à
cultura enciclopédica do patrono. Saint Laurent tinha apenas 33 anos, e vivia
do seu ordenado. Não tinha ainda dinheiro para comprar arte à séria, apesar de
já ter criado a sua marca própria, a YSL, em 1961, a sua loja Rive Gauche, que
viria a democratizar a moda com o prêt-à porter em 1967, e de ter sido diretor
criativo da Casa Dior. Em 1977, quando o perfume Opium se tornou sucesso
mundial, o dinheiro começou a entrar a rodos na casa da dupla. Aí começou a
verdadeira coleção. Na hora de comprar, St Laurent e Bergé tinham acesso em
primeira mão a muitas obras, nomeadamente em certas galerias, como na de Alain
Tarica. O motivo? “Decidiam em cinco minutos e nunca questionavam o preço de
nada”, explica o marchand.
Havia, claro, condições. Três, mais precisamente. A
obra tinha de ser de uma fase decisiva no percurso do artista; tinha de estar
em condições impecáveis; e ter uma documentação à prova de tudo. Foi assim que
uma série de peças se juntaram à coleção: do “Portrait de la Comtesse de
Larue”, de Ingres, a um díptico de Géricault dos irmãos de Dreux, passando por
um desenho de Matisse, de 1937 — “Le Danseur” —, que acabou pregado na porta do
quarto de Bergé...
São inúmeras as “pièces de résistance”. No pódio das
licitações está um quadro a óleo de Picasso, do período cubista, “Instruments de Musique sur un Guéridon”.
Em segundo lugar vem o totem de Brancusi, “Madame L.R.”. Há ainda um lote de
Matisse, que inclui “Les Coucous, Tapis
Bleu et Rose”, de 1911, a peça favorita de Saint Laurent; cinco quadros de
Mondrian, entre os quais a
“Composition avec Bleu, Rouge, Jaune et Noir”, de
1922, que inspirou o não menos famoso vestido Mondrian; retratos de Andy
Warhol, uma aquarela de Cézanne, quadros de Juan Gris, Chirico, Munch, só para
nomear alguns...
As peças de mobiliário também são de qualidade
excepcional, destacando-se as Art Déco. Quatro peças de Eileen Gray, incluindo
o famoso “Fauteuil aux Dragons” (Poltrona dos Dragões), de 1920, são um dos
lotes mais esperados, assim como o de 18 cadeiras de mesa de jantar de 1740,
oriundas do Palazzo Carrega Cataldi, em Génova. Há ainda peças estrondosas de
ourivesaria, como um vaso de cristal italiano com 24 rubis do século XVI,
antiga pertença de Luís XIV (estima-se que atinja os 78 mil a 117 mil euros).
Não é difícil, portanto, perceber por que lhe chamam o leilão do século. “A extraordinária força desta coleção é conter peças únicas que não se vêem no mercado há mais de 35 anos”, garante o vice-presidente da Christie’s, François de Ricqlès. Os lucros serão repartidos entre a Fundação Pierre Bergé-Yves Saint Laurent, criada em 2002 para preservar o trabalho do estilista, e a fundação de Bergé de investigação médica na área da AIDS.
UM
DOS “GRANDS SALONS” DO DUPLEX: É NOTÓRIO O ESTILO PRÓPRIO DE SAINT LAURENT —
PROFUSÃO DE OBRAS DE VÁRIAS ÉPOCAS E GÊNEROS
Mas o legado de Saint Laurent está longe de se ficar pela sua coleção de arte. O estilista que inventou o smoking feminino — le smoking — e se bateu pela democratização da moda também era um homem sábio. Entre outras coisas, dizia: “A roupa mais bela que pode vestir uma mulher são os braços do homem que ama. Para aquelas que não tiveram a sorte de encontrar esta felicidade, eu estou lá.”