Construíra esta teoria, após longa reflexão, a partir
de fatos observados durante a sua viagem no “Beagle”. Grande parte da comunidade científica reconheceu desde
logo os fundamentos sólidos do darwinismo, e Darwin obteve a consagração em
vida.
Hoje, os que se opõem à teoria da evolução não se
baseiam em fundamentos científicos, mas em preconceitos. O que mais fortifica a
teoria seletiva é a sucessiva refutação de todas as teorias competidoras: mesmo
os trabalhos de ilustres investigadores anti-evolucionistas (Pasteur, Von Baer,
Von Uexküll, T.H. Morgan, entre outros) acabaram por lhe trazer firmes
argumentos. Mas a posição do Homem na natureza sempre provocou um campo de
forças deformante da realidade, propício a manipulações ideológicas e
religiosas da ciência, suscitando assaltos premeditados à lógica da
investigação e da interpretação dos dados. O sistema de crenças interfere então
com o de provas, espalhando uma atmosfera de obscuridade. Na última página de
“A Origem das Espécies...”, Darwin escrevera: “Muita luz será lançada sobre a
origem do Homem e a sua história.” Esta frase foi suprimida na primeira edição
alemã da obra!
Decorrido um século e meio sobre o aparecimento deste
livro, o preconceito continua a guiar os que recusam a evolução. Posto que os
argumentos que a comprovam lhe conferem o mesmo grau de credibilidade que à
órbita heliocêntrica da Terra, só por ignorância ou má-fé é possível hoje
rejeitá-la. A evolução não é mais uma simples teoria, mas um imenso programa de
investigação que unifica todas as disciplinas da biologia e das ciências da
natureza: geologia, tectônica de placas, paleoclimatologia, biogeografia,
genética, sistemática, anatomia e fisiologia comparadas, embriologia,
paleontologia, etologia, biologia molecular recebem da perspectiva
evolucionista justificação mútua dos seus saberes. Estas disciplinas, que
tinham crescido em separado, encontraram na teoria sintética da evolução um
eixo organizador que as reuniu numa totalidade coerente. Desde Darwin, não
houve em biologia nem ruptura nem crise científica, antes clarificação de uma
imensa constelação de fenômenos através da mesma matriz disciplinar.
Supusera Leibniz
que a manus emmendatrix (a mão providencial) de Deus resolvia os erros que
surgissem na construção do mundo. Oposta é a natureza do processo evolutivo: a
partir de erros de replicação genética, chamados mutações, aumenta a
diversidade sobre a qual vai operar a selecção natural. O processo evolutivo
joga-se em dois tempos: a recombinação genética, aleatória; e a triagem dos
organismos (fenótipos) resultantes. A estes dois lances encadeados chamou
Jacques Monod “o acaso e a necessidade”. Do seu resultado, obtido em interação
com o meio, provêm os indivíduos, sempre diferentes, de cada espécie.
A biologia
molecular, última das disciplinas biológicas a entrar em cena, completou a
demonstração da homologia (origem a partir de um antepassado comum) de todos os
seres vivos. Desde as formas mais elementares às mais complexas, todas têm um
código genético nos mesmos moldes do dos vertebrados, provando a unidade da
frondosa árvore dos seres viventes. A engenharia genética permitiu passar genes
de uns organismos para outros, como genes humanos para bactérias, de modo a que
produzam insulina humana. E os níveis de homologia de todos os mamíferos levam
a que se ensaiem com eficácia os medicamentos destinados a seres humanos —
incluindo os psicofármacos — em ratos e chimpanzés.
No limite, é possível obter embriões híbridos, por
exemplo, humanos e não-humanos. Sendo assim, como excluir uma comum matriz de
origem? Encontramo-nos inseridos na radiação da vida, sendo parentes mais ou
menos próximos de todos os seres vivos. A nossa presença na biosfera é casual e
recente, puro acidente decorrendo do “oportunismo insensível da evolução” de
que falava Dobzhanski. O “relógio
molecular”, hoje minuciosamente calibrado, mostrou que a origem do Homo sapiens
ascende a cerca de 200 mil anos, tempo breve em termos de idade geológica. Por
isso, a espécie humana atual mantém grande homogeneidade genética, não tendo
decorrido tempo suficiente para a formação de raças humanas, conceito hoje
destituído de valor operacional em ciência. Não temos o monopólio da
inteligência, do uso intencional de ferramentas, nem sequer da linguagem.
O desenvolvimento embrionário provou August Weismann,
repete em traços gerais a história natural dos antepassados. Assim se retêm
traços e características que perderam função, mas, não sendo
contra-adaptativos, persistem. É o caso da cauda, funcional em muitos primatas
não-humanos e ausente nos antropóides, genética e evolutivamente muito afins conosco.
Estes animais e o Homem não têm cauda livre — mas as vértebras caudais
fundiram-se num órgão residual, o cóccix, onde a configuração vertebral é bem
visível. Pertence à categoria dos órgãos vestigiais. Também o núcleo inato do
comportamento, que evolui por seleção natural, conserva traços arcaicos: um
recém-nascido humano prematuro agarra-se firmemente com mãos e pés a um fio
horizontal do qual pode suspender o peso do próprio corpo, num reflexo de
preensão que provém de antepassados arborícolas.
Críticos mal avisados afirmaram não ser possível presenciar a seleção natural em ação. Enganam-se. Não poderão ver o que decorre nos tempos geológicos. Mas podem testemunhar efeitos seletivos. No caso da malária, o vetor (mosquito) transporta o agente (plasmódio) ao hospedeiro (Homem). Em cada um dos três vértices deste triângulo se exerce a selecção. Os plasmódios selecionam estirpes resistentes aos novos antimaláricos descobertos; os mosquitos, estirpes imunes a renovados inseticidas; e as populações humanas, formas de hemoglobina que o plasmódio não digere e por isso protegem da doença.
Enquanto os detratores religiosos pensamento
evolucionista tentam denegá-lo, voltando ao que parece inconcebível — um
cenário criacionista para os seres vivos! —, no domínio das “ideologias
progressistas” permanece uma nostalgia das idéias de Lamarck, de uma evolução
orientada tendo o Homem por objetivo final. Num hemiciclo imaginário onde as
convicções ideológicas fossem cotejadas com as idéias sobre a origem das
espécies, a extrema-direita seria hoje ocupada por cristãos fundamentalistas de
convicção fixista e neocriacionista, por um grupo menos radical de orientação
vitalista e também por alguns evolucionistas ateus, eventualmente racistas,
defendendo um determinismo genético da evolução; enquanto a chamada ala
esquerda se repartiria entre evolucionistas variacionais sem crença religiosa
(darwinistas) e evolucionistas transformacionais (neolamarckistas) ligados
ainda ao marxismo histórico. Ideólogos e fanáticos religiosos procuram na
natureza caução para os seus dogmas: por isso censuram, deformam ou manipulam a
teoria da evolução. Se, nalguns países, o ensino do darwinismo fosse nivelado
com o de modelos obscurantistas, então a História seria uma aventura falha,
negando as idéias que lhe serviram de fundamento. E o Homo sapiens, assim denominado por Carl von Linné (que ao arrumá-lo
junto com os outros antropóides já acedia à idéia implícita de evolução), antes
mereceria o nome específico de Homo stupidus (espécie conjectural proposta e
assim denominada por Ernst Haeckel, poucos anos após o aparecimento da origem
das espécies).
Porque evoluem as formas vivas? Porque o meio ambiente
está em modificação contínua — deriva continental, clima, solos, vegetação,
recursos alimentares, predadores e presas, parasitas e simbiontes — e, sem
evolução, a breve prazo os organismos estariam inadaptados. Assim, encontramos
Darwin como a figura decisiva que divide a história da biologia em duas épocas
e em duas vertentes, uma de sombra e outra de luz. Ernst Mayr, grande teórico
da evolução, escreveu recentemente: “Os argumentos [contra o darwinismo]
baseiam-se numa tal ignorância da biologia evolucionista que não vale sequer a
pena referir os escritos que os contêm. (...) Os princípios básicos do
darwinismo estão mais firmemente estabelecidos do que nunca.” Eis como a
biologia se tornou numa ciência exemplar, integrada em torno de uma teoria
central unificadora, capaz de dirigir e aprofundar a investigação em todas as
frentes.
Darwin e as polêmicas
Mesmo sem a passagem das duas efemérides enfatizadas
por datas “redondas” (a do bicentenário do seu nascimento e a passagem dos 150
anos sobre a publicação, em 1859, de “A Origem das Espécies...”), o naturalista
inglês mereceria todas as homenagens pelo sismo que a sua teoria provocou em
áreas como as da biologia, filosofia, antropologia, política, sociologia,
física e teologia, entre outras. O darwinismo surgiu com duas idéias
fundamentais. Numa dada geração, os indivíduos reproduzem-se dando origem a
novos indivíduos, semelhantes mas não idênticos aos progenitores. Isto assegura
a variedade da espécie. Quanto à seleção natural, ela garante que os indivíduos
mais bem adaptados ao seu ambiente se reproduzam mais. “Observar o Homem como
faria um naturalista em relação a outro mamífero qualquer” e “Há de fazer-se
luz sobre a origem do Homem e a sua história” são duas das afirmações de Darwin
que mais ressentimentos causaram. Por caminhos tortuosos, ele viu-se envolvido
em violentas polêmicas, dado o evolucionismo ter suscitado questões sobre a
cronologia da Terra, sobre o papel de Deus e do acaso e sobre o lugar do Homem
no planeta. Filho de um médico de província que o pressionou a preparar-se para
a carreira eclesiástica na Universidade de Cambridge, Darwin foi um naturalista
de “partir pedra” e não um pensador de gabinete. Estudante da fauna e da flora
de terras desconhecidas, observador sistemático de restos geológicos e
fossilizados, da fertilização das orquídeas por insetos, da vida de seres
invertebrados recolhidos nas costas do Chile, que o levou a estabelecer a
taxonomia das bernacas, estudioso de vulcões em atividade, Darwin viu-se
impotente para travar o ódio dos movimentos que apresentaram o evolucionismo
como uma ameaça contra a ordem estabelecida.