É preciso ter fôlego para filmar Maradona e conseguir acompanhar, dentro e fora dos gramados, os dribles da vida de um mito que juntou o gênio e a irreverência como poucos. A derradeira polêmica, já posterior ao filme que Emir Kusturica e o “Pelusa” apresentaram no último Festival de Cannes (e houve show de bola no topo daquela passadeira vermelha...), rebentou há três meses, quando Diego foi nomeado para treinar a seleção argentina e conduzir ...
... os alvicelestes no aperfeiçoamento para a próxima Copa
do Mundo, na África do Sul, em 2010. O mundo corou de espanto. Quem poderia
adivinhar que a responsabilidade de tal cargo cairia nos ombros de um homem que
é meio anjo, meio demônio, autêntica lenda viva, capaz da glória absoluta e do
declínio mais profundo, quando a um treinador de futebol moderno se pede, acima
de tudo, rigor, disciplina e discrição?
Não são certamente estas as maiores qualidades do gênio.
Aliás, quando se fala de Maradona, o mais difícil é começar, de tal modo são
tantos e tão intensos os episódios da sua vida. Dizer, uma vez mais, que foi o
melhor jogador de futebol de todos os tempos é ver apenas a ponta de um iceberg
que ultrapassou em muito a esfera esportiva. Acreditamos que Emir Kusturica sentiu a dificuldade
deste desafio. No início de 2005, o realizador de Sarajevo anunciou que ia
atirar-se para a empreitada de um documentário que, no final, Maradona adorou.
Na preparação do filme, Kusturica encontrou Diego várias vezes, em Buenos
Aires, percorreu com ele as festas porteñas e conheceu as filhas de “El Diez”,
conseguindo tornar-se parte da ‘família’.
Na mesa de montagem, misturou os ‘milagres do direto’ com muito material de
arquivo e até alguma animação, como aqueles desenhos em que Maradona dribla
Thatcher e caricatura George W. Bush ao som de ‘God Save the Queen’, dos Sex
Pistols. Este grau de intimidade de Kusturica com o clã Maradona criou
embaraço. Muitos foram os que acusaram o realizador de “Underground” e de “Gato
Preto, Gato Branco” de estar a colocar-se nas pontas dos pés, competindo com um
colosso e aproveitando para fazer publicidade extra à sua própria persona. Além
disso, o filme que estréia na quinta-feira 19 de Fevereiro começa com um
concerto dos No Smoking Orchestra, a banda rock de Emir, e alguém o apresenta
como “o Maradona do cinema” (!), egocentrismo que não prima propriamente pela
modéstia. Mais tarde, Kusturica defendia-se numa coletiva de imprensa onde
deita e rola, em Cannes: “Sair com Diego para as ruas de Buenos Aires e
acompanhá-lo com uma equipe de filmagem foi uma aventura. Não foram poucas as
vezes em que eu acabava por perdê-lo na confusão e, perante a ausência do
herói, houve momentos em que tive de tomar o seu lugar...” Enfim, pelo menos o tom
é assumido. Quando vemos Maradona a visitar La Bombonera, o mítico estádio do Boca Juniores que o lançou para a
fama, até conseguimos perceber as inquietações do realizador: “Diego! Diego!”,
é ver para crer como se grita o seu nome. Provavelmente, o documentário de
Kusturica, tresloucado e livre, até nem é o filme definitivo sobre Maradona,
mas tem a mais-valia de ter conseguido tornar-se íntimo da lenda, tratá-la por
tu e deixá-la, pela primeira vez, contar quem é na primeira pessoa.
Há várias vidas na vida de Diego Armando Maradona, e não
estamos seguros de que a primeira, a de jogador de futebol, seja a mais
intensa. Nos estádios, ele foi e ainda é um herói do povo. Na sua vida ativa,
abertamente política, é um revolucionário, com a chama inflamada e roja dos
anos 60, com uma enorme tatuagem de Che
no ombro, a dizer o que pensa, atacando com extrema violência e sem decoro
as mais altas personalidades do mundo, com uma especial predileção por George
W. Bush. Maradona sabe o que o seu nome representa, e fazer um filme sobre esta
figura é como esbarrar num manancial de idéias em que é difícil distinguir o
homem da lenda. Há também o lado mais negro da sua vida, ligado a um ‘folhetim cocaína’ que se arrastou anos
e anos e em que Diego deixou meia Argentina a rezar por ele, com o coração nas
mãos: neste caso, Maradona parece uma personagem de melodrama, uma espécie de
santo que foi ao inferno e voltou para contar o que viu. Mas há mais: o
Maradona apresentador de televisão nas competições de show Ball, jogo muito
popular na América do Sul; o Maradona pai-galinha; o Maradona rock star. Tudo
em que ele toca parece transformar-se num show biz emotivo e encantado, e
perante isto não há filme que seja mais intenso. Kusturica sentiu-o quando
disse: “Diego ora é um Falstaff, ora parece a personagem de uma publicidade a espaguete.
Se Andy Warhol vivesse no nosso tempo, não teria pintado Marilyn Monroe, mas
Diego Armando Maradona!” De todos os momentos em que “El Pibe de Oro” brilhou,
de todos aqueles gols no Boca, no Barcelona e, mais tarde, no seu super
Nápoles, que dominou o cálcio nos anos 80, de todos os seus encontros
bombásticos com o Papa, com Fidel Castro
ou, recentemente, com Hugo Chávez e de tantos escândalos ligados ao consumo
de drogas pesadas, se nos pedissem para escolher apenas um, guardaríamos o que
se passou naquela tarde de Junho de 1986, na Copa do Mundo, no México. A
Argentina derrota a Inglaterra, por 2-1, nos quartos de final. Maradona ‘bisa’,
primeiro com a famosa “mão de Deus”, depois com um “barrilete cósmico” (foi um
comentador de futebol argentino que assim o batizou) em que o gênio, antes de
marcar, finta meia equipa inglesa, deixando o seu país em êxtase. A FIFA
considera esse o “gol do século”. A Argentina acabaria por vencer o campeonato,
velho sonho que Diego tinha desde criança, mas aquele jogo das quartas ficou
histórico e representou muito mais do que uma vitória esportiva. “Depois de ter
marcado o gol com a mão”, afirma Diego para a câmara de Kusturica, “tive a
impressão de ter roubado a carteira a um inglês!” É óbvio que todo o Maradona
está aqui, não só o jogador mas o homem político e revolucionário que, naquele
instante, ‘vingava’ a derrota argentina na Guerra das Malvinas às mãos da
Inglaterra de Thatcher.
“Maradona” é por tudo isto, um filme de febre. Um filme
biográfico que, perante o poço de força do seu homenageado, apresenta-se como
uma estranha peça polifônica, irregular mas sempre intensa, condensando em hora
e meia as facetas de um homem que, afinal, é uma personagem de ficção
inesgotável. Maradona continua a ser essa personagem. Já o era quando jogava
com aquela alegria contagiante, a mesma que separa definitivamente um
extraordinário jogador de futebol de um astro. De resto, Maradona não é outra
coisa.
Autor: Adolfo de Castro Publicação vista 2293 vezes