Começando pelo princípio. Quando alguém vem ao mundo
nos Estados Unidos da América na segunda metade do século XX e lhe dão o nome
improvável de Madonna-Louise Ciccone, das duas uma: ou a coisa vai correr muito
bem, ou a coisa vai correr muito mal. No caso dela, correu o melhor possível.
Aquela que, segundo a revista «Forbes», se tornou na
cantora mais bem paga do mundo - arrecadando o ano passado, só pela excursão
«Confessions Tour», 195 milhões de dólares fora o resto - nasceu a 16 de Agosto
de 1958 em Bay City, no Estado americano do Michigan. A família, militante
católica, tinha raízes italianas, pelo lado do pai, e ascendência francesa e
quebequense, pelo lado materno. Com cinco irmãos, um dos quais acaba de
publicar um livro pouco abonatório sobre ela (Life with My Sister Madonna,
Christopher Ciccone e Wendy Leigh, editora Simon & Schuster, 2008), a
futura «Diva da Pop» fica órfã ainda criança, quando a mãe, a ex-técnica de
raios X Madonna-Louise Fortin, morre aos 30 anos vítima de câncer na mama. O pai, Silvio Ciccone, esforçado
engenheiro da Chrysler, viria a renunciar à condição de viúvo casando-se com
Joan Gustafson - a quem contratara para tomar conta dos filhos - e o novo casal
gera mais dois rebentos. Contas feitas: ao todo, oito descendentes Ciccone.
Sobre famílias numerosas estaríamos conversados, se não fosse o caso de
a relação de Madonna com a dela ter contribuído muito para construir o seu
mito: da convivência difícil com a madrasta e a quebra de braço com o pai.
Oh Father!, um «videoclip» a preto e branco de 1989 assinado por David Leo Fincher, mais tarde produtor de filmes como Os Sete Pecados Mortais, O Jogo ou Clube de Combate, dava conta disso mesmo: após a morte da mãe, uma menina é violentamente admoestada pelo pai por ousar brincar com um colar de pérolas, propriedade da falecida. O clip termina tendo por cenário um cemitério, com o reencontro do progenitor, já envelhecido, com a filha, já adulta, enquanto a voz de Madonna se continua a fazer ouvir: «You can’t hurt me now/ I got away from you,/ I never thought I would/ You can’t make me cry, you once had the power/ I never felt so good about myself».
Oh Father! não tem, que fique claro, a profundidade do
romance Pais e Filhos, do russo Ivan Turguéniev (só para dar um exemplo); o fato
é que foi incluído pela revista «Rolling Stone» na lista dos «100 Top Music
Videos». Entretanto, um longo caminho havia sido percorrido por Madonna (o seu
primeiro single, Everybody, data de 1982), a garota que, se fosse menos
esperta, teria eventualmente cingido ao papel de dona de casa do Michigan, como
ela mesma resumiu na entrevista a Norman Mailer publicada na «Esquire» de
Setembro de 1994. Ainda em conversa com o autor de Os Nus e os Mortos, afirmaria:
«As pessoas não param de me perguntar: ‘Já imaginou se sua mãe não tivesse
morrido?’ E eu não posso responder a isso, porque eu sou o que sou».
Seria difícil de outro modo. Aos 50 anos, manter-se a
«Rainha da Pop» (por muito que ela abomine o título e prefira a designação de
«performer» multifacetada que dança, compõe, canta e representa) implicará
decerto centragem obsessiva, provavelmente aparentada com aquela que Faulkner
tinha em mente quando disse que os bons escritores não hesitariam em roubar a
mãe se tal fosse necessário à obra.
Com uma fortuna calculada em cerca de 600 milhões de dólares, inscrita no Guinness World Records como da «World’s Most Successful Female Musician», e com direito a verbete próprio, desde 2001, na muitíssimo respeitável Encyclopædia Britannica que, assim, lhe autentica a importância enquanto ícone da cultura popular contemporânea, Madonna, dispensada de roubar quem quer que seja, não nasceu loura nem cantava quando criança
A jovem, cuja carreira musical começa em Nova Iorque
por volta de 1980, como baterista, guitarrista e vocalista de uma banda de vida
curta, a Breakfast Club, tinha um sonho mais antigo: dançar. O encontro, por
volta dos quinze anos, com Christopher Flyinn, um professor de ballet
homossexual que se tornaria seu mentor e amigo, e que viria a falecer, vítima
de AIDS, em 1990, mostrou-se decisivo para o futuro da «material girl». É
Flynn, segundo ela o homem mais importante da sua vida depois do pai, quem a
convence a abandonar a universidade e a tentar a sorte na Big Apple como
bailarina profissional; e é também ele quem a introduz prematuramente na cena
gay, pista que Madonna nunca mais abandonaria, sede do seu próprio crescimento:
«Na escola (...) os rapazes achavam-me uma menina esquesita esquisita. (...) Eu
sentia que não encaixava. Mas quando fui a um clube gay, essa sensação
desapareceu. De repente, adquiria uma visão totalmente diferente de mim
própria», recordou, em 1991, numa entrevista à «The Advocate», revista gay de
referência dos EUA, que a elegeria, aliás, como um dos ícones maiores da
comunidade, ao lado de nomes tão sonantes como Judy Garland ou Betty Midler, a
qual, por sua vez, não lhe poupou elogios, definindo-a como a mulher que
«pulled herself up by her bra straps». E se o tema «sexualidade» não esgota o
tema «Madonna», os dois são inseparáveis.
Desde o início da sua carreira musical que isso se percebe. Em crescendo de erotismo, assente numa imagética católica de pendor sadomasoquista, Madonna foi-se radicalizando, num percurso marcado por clips iniciais onde é ainda uma adolescente revoltada contra o conservadorismo moral, como em Like a Virgin, de 1984, ou em Like a Prayer, 1989 (o vídeo que levou a Pepsy Cola a retirar do mercado o comercial gravado com a artista), até chegar a Justify my Love, de 1990, banido da MTV pelo seu conteúdo explícito e posteriormente lançado pela Warner em versão VHS (até hoje, um recorde de vendas), ou Erotica, 1992, nos quais se assume como mulher adulta «in charge», à-vontade no seu corpo e disponível para todos os tipos de prazer. E com o lançamento, no mesmo ano, de Sex - o livro de imagens «porno soft» assinadas pelo fotógrafo de moda Steven Meisel, que reuniu gente como Isabella Rosselini, os «rappers» Big Baddy Kane e Vanilla Ice (que depois não gostou nada de se ver impresso naquelas poses), a modelo Naomi Campbell ou a estrela «porno gay» Joey Stefano (que acabaria por morrer de «overdose» passados dois anos) - a fogueira do escândalo em torno de Madonna apenas ateou mais alto.
Nos dias atuais, algumas das suas provocações dificilmente chocariam. Afinal, ainda há poucos meses, coincidindo com a visita oficial ao reino de Sua Majestade de Nicolas Sarkozy e Carla Bruni, a reputada leiloeira Christie’s anunciou que ia pôr à venda fotografias da mulher do Presidente francês, posando nua para o fotógrafo suíço Michel Comte. Mas nem uma dupla miopia nos impedirá de apreciar a determinação, profissionalismo e discernimento necessários a Madonna para não ter sido mais uma a ficar pelo caminho.
As feministas desprezaram-na (e, também por isso, o seu
apoio a Hillary Clinton foi eloquente). Camille Paglia escreveu, preto no
branco: «Madonna tem uma visão do sexo de longe muito mais profunda do que a
das feministas. Ela tanto consegue ver a animalidade como o artifício. Ao mudar
o estilo da roupa e a cor do cabelo, virtualmente todos os meses, Madonna
incorpora os valores eternos da beleza e do prazer. O feminismo diz: ‘Abaixo as
máscaras’. Madonna diz que nada mais somos do que máscaras». E mais pós-moderno
é impossível.Quanto à Igreja Católica, a quem o imaginário de Madonna deve
quase tudo, foge dela como o diabo da cruz. Várias vezes censurada pelo
Vaticano, um novo episódio veio engrossar a sua lista de heresias em 2006,
quando, em Roma, durante a excursão «Confessions», simulou em palco a
crucificação de Cristo. As autoridades eclesiásticas acusaram-na de blasfêmia e
ela respondeu no seu velho estilo provocatório, convidando Bento XVI a assistir
ao concerto.
De fato, com exceção da divertida comédia de Susan
Seidelman, Desesperadamente Procurando Susana (1985), onde fazia ela própria,
Madonna parece incapaz de se deixar levar pelas personagens, e isso apesar do
convívio amoroso com o ator Sean Penn, seu marido durante quatro anos, ou com o
ex-garanhão de Hollywood, Warren Beatty, que a pôs a cantar «Sooner or Later»
em Dick Tracy. Da experiência com o realizador Abel Ferrara saiu mais do que
chamuscada, mas talvez seja nesse filme de 1994, Olhos de Serpente, ao lado do
talentoso Harvey Keitel, que Madonna consegue ir mais longe no esquecimento de
si.
E agora pergunta-se de novo (e talvez esta questão irritasse Camille Paglia): teria ela alcançado o estatuto de ícone mundial, se não se tivesse mantido autêntica sob a multiplicidade das máscaras?
A nova Madonna (que sempre soube adequar-se ao «l’air du temps» e fazer-se acompanhar dos colaboradores e produtores certos) começa a despontar em 1998 com o pró-isotérico Ray of Light, produzido por William Orbit (recorde-se, porém, que já em 1993 ela cantava em «Bad Girl»: «Bad girl drunk by six/ Kissing someone else’s lips/ Smoked too many cigarettes today/ I’m not happy when I act this way»). Music, 2000, aposta numa estética country. Três anos depois, a guerra do Iraque no horizonte, a mensagem política torna-se explícita em America Life, obrigando-a a refazer o vídeo de lançamento do álbum que fora, entretanto, acusado de antipatriotismo. Confessions on a Dance Floor chega em 2005, revisita o Disco e bate novos recordes de vendas, antecedendo o seu último trabalho, Hard Candy, de Abril deste ano, que conta com a participação de Justin Timberlake e cujas faixas poderão ser ouvidas em dezembro, ao vivo, no Rio e em São Paulo
Ups, «she does it again»!