Mas houve um tempo em que existiram sobre este mundo homens mulherengos, conquistadores inatos, que assediavam, que elogiavam, que davam cantadas e que, simplesmente, não sabiam viver sem estarem envolvidos em alguma confusão, em alguma história complicada, e sempre por causa de uma mulher. Quando me lembro desses conquistadores, me lembro de um em particular, que conheci pessoalmente, e que, no seu tempo, foi um grande e simpático mulherengo. Falo do delegado César, que me contou esta história da qual ele próprio foi o malogrado protagonista.
A indicação para o cargo de delegado em uma pequena cidade de colonização italiana na serra gaúcha foi recebida com alegria pelo então jovem César. Casado há pouco mais de um ano, ele estava também no início de uma carreira que se anunciava como promissora, graças às notas altas e ao excelente aproveitamento na Escola Superior de Polícia. Romântico e metido a conquistador, César tinha um temperamento explosivo que era compensado, porém, pela simpatia pessoal e pela extrema facilidade de se comunicar. Também de origem italiana, revelada no sobrenome bem conhecido no Sul, ele dominava o talian, dialeto vêneto falado na serra gaúcha, e, de modo algum, era estranho aos costumes e à culinária locais.
Transferência acertada, a escolha da moradia não foi problema. Localizado em um bairro alto, o apartamento para onde o jovem casal se mudou era espaçoso, com lareira, inclusive, ― o clima frio da serra o exigia ―, e uma estratégica sacada com vista privilegiada, que se abria para a grande curva que a estrada fazia quando alguém chegava ou deixava a cidade. O trabalho não era cansativo. A delegacia tinha dois funcionários apenas, que davam conta do expediente. A esposa, muito religiosa e dedicada ao lar, mantinha-se convenientemente discreta. ― Digo a esposa, porque, do ponto de vista de homens como César, o universo feminino é composto, em primeiro lugar, por todas as mulheres com quem se pode namorar; depois, em segundo, vêm as amigas, com as quais não se namora; em terceiro e último, vem ela: a esposa, alguém que desempenha funções e que ocupa uma espécie de cargo na vida dos homens. ― É preciso acrescentar que corria então a década de 1970. A religiosidade, os vínculos ancestrais, a fidelidade aos costumes não estimulavam a criminalidade e explicavam a vida pacata do interior, que se desdobrava de segunda a sábado em meio aos sabores de uma culinária riquíssima. Com raros pobres e nenhuma miséria, a população, predominantemente tradicional e fiel à Igreja Católica Apostólica Romana, não se ocupava dos anos de chumbo que, ali, pouco pesavam. A missa matinal aos domingos, mais que uma obrigação, era um acontecimento social, que exigia dos homens o uso de terno e gravata, das mulheres, o véu, branco para solteiras, preto para casadas. Na saída, longe das mulheres, os homens se reuniam no café e, na hora do almoço, as famílias frequentavam os restaurantes, sempre acolhedores, ou se reuniam em casa, na reverenciada companhia de um nono e de uma nona, não raro italianos natos, que nunca se renderam à língua portuguesa e que continuavam a viver exatamente como se estivessem em sua velha e saudosa Itália.
Nesse ambiente, o jipe preto e branco da polícia, quando passava pelas ruas da cidade, era respeitado e temido por uma população italiana de duas ou três gerações que tinha em alta conta o prefeito, o padre e o delegado. A criminalidade local resumia-se ao jogo do bicho, um ou outro entrevero na alegre e comportada zona do meretrício e pequenos furtos, sempre ocasionais. Rixas e quebra-quebras em festas de igreja ou desentendimentos nas ruidosas partidas de mora ― “morra!” ― e no truco. De anotar o caso, que virou ocorrência policial, quando um italiano arrancou o dedo de outro durante uma disputa. As casas mantinham suas portas abertas da manhã à noite. Os carros podiam tranquilamente permanecer com a chave na ignição. Uma agradável rotina, quebrada eventualmente por acidentes nas perigosas estradas, se estabelecia assim para César que, todavia, teve sua atenção despertada por Rosa.
Rosa era jovem e bonita, de pele muito clara e olhos azuis que mantinha quase sempre baixos. Os cabelos eram longos e dourados. Um tanto cheia de corpo, ela não era propriamente gorda, e as roupas simples que usava não disfarçavam a fartura das ancas e dos peitos. Gringona saudável e apetitosa, como César a definiu, Rosa era muito católica e frequentava a igreja e o confessionário. Em suas idas e vindas, passava sempre muito devagar em frente à delegacia. Embora parecesse tímida e mesmo devota, nada disso impediu Rosa de lançar olhares compridos e provocantes ao delegado que imediatamente os retribuiu. Em sociedades onde a moralidade impera soberana, as aparências exigem que as relações sejam castas e respeitosas, o que só serve para tornar ainda mais intensos os gestos, os olhares em especial, na complexa semiologia dos jogos amorosos. E foi assim que Rosa e o delegado acertaram-se quase sem palavras. Queriam-se.
Só havia um pequeno problema. Rosa também era casada. Mas, se a esposa de César era tão discreta quanto indiferente às reiteradas puladas de cerca do marido, o esposo de Rosa era conhecido em toda cidade pela truculência. Caminhoneiro de maus bofes, alto e forte, tinha fama de violento, mas passava a maior parte do tempo viajando e mantinha poucos laços sociais na cidade. O encontro foi acertado para o dia da próxima viagem do marido de Rosa. César, chegada a data prevista para o encontro, agiu normalmente e, na sacada de seu apartamento, fingia distrair-se com um binóculo, observando a curva e a simples e pequena casa de madeira na qual vivia Rosa, também visível dali. E foi assim que ele observou o caminhão deixando a frente da moradia para depois desaparecer, bem devagar, contornando a curva. Era inverno e fazia um frio cortante. A noite não tardou a cair sobre a cidade, e a desculpa para uma diligência noturna sem hora para voltar foi recebida pela esposa com a naturalidade e a indiferença de sempre.
Blusão de lã, sobretudo, manta no pescoço, lá se foi César, sem desanimar, nem mesmo diante do frio e da cerração que esvaziavam as ruas da cidade. O carro particular foi estacionado a uma distância segura da casa de Rosa. As dobradiças enferrujadas do portão de madeira rangeram. A batida na porta nem foi necessária, pois ela se abriu rapidamente, mal César subira os três degraus do pequeno alpendre. As tábuas do assoalho cederam um pouco sob os passos apressados do delegado, quando este deslizou como uma sombra rumo ao interior da moradia. A pequena sala tinha apenas um sofá e duas poltronas forradas de courvin cor de mostarda. Os encostos do conjunto eram enfeitados com guardanapos de crochê, e os assentos, com almofadas muito coloridas, bordadas à mão. No centro, uma mesinha com tampo assimétrico de fórmica montada sobre três pés de palito acompanhava o mobiliário. Sobre ela, um arranjo de flores artificiais e um cinzeiro. O tapete de retalhos completava o conjunto. Tudo ali traía a domesticidade insuspeita de um lar. A cerimônia de recepção durou pouco tempo, o clássico cafezinho foi logo dispensado e, entre tórridos beijos e apalpações de estilo, o casal, já ofegante pelo desejo, foi direto para o único quarto da casa, tão ou mais simples que a sala. Cama com colcha de retalhos muito coloridos sobre a qual o crucifixo, pendurado da parede, dava fé, ao menos da existência de sérias intenções cristãs de, na medida do possível, evitar o pecado. Talvez aquela divina presença por ali, justamente naquela noite, servisse para lembrar que Deus, quando não joga, fiscaliza.
O frio entrava pela janela que dava para os fundos da casa. Rosa apressou-se em fechá-la, puxando os dois tampões de madeira sobre os quais abaixou a tramela. A simplicidade do ambiente não foi obstáculo para o clima de desejo e, rapidamente, César livrou-se da manta, despiu o sobretudo, o blusão, camisa, calça, meias e sapatos. Mas o diabo, quando faz a panela, esquece a tampa. Estava nosso delegado ainda de cuecas, quando um som cortou a noite e o clima de paixão. O inconfundível barulho do freio a ar de um caminhão Scania se fez ouvir bem de perto, vindo da frente da casa, cortando o silêncio da noite. “É o meu marido”, disse Rosa baixinho, já tremendo e parecendo apavorada. Ela mal terminou a frase, e César já entrouxava os sapatos e as roupas no sobretudo, enrolando-o como um pacote. Rapidamente, abriu os tampões e pulou a janela, caindo nos fundos da casa, em meio à escuridão, a umidade e o frio inclemente da serra. Atento à conversa, agachado contra a parede, conseguiu ouvir que o caminhoneiro se esquecera do manifesto de carga, documento que viera buscar para logo seguir viagem novamente. Então, explicado o aparecimento repentino, César resolveu melhor ocultar-se na parte mais escura do pátio. Deu apenas alguns passos apressados, quando o chão cedeu sob os seus pés e ele se viu enterrado até a altura do peito em alguma coisa fria, húmida e gelatinosa. Percebeu então que estava metido em uma grande fossa mal coberta por uma fina camada de areia de construção. Sentiu uma dor violenta na sola do pé direito. Não foi difícil adivinhar onde estava. Um cheiro revelador e nauseabundo subiu pelas narinas do pobre delegado que se viu literalmente enfiado em um buraco transbordante de merda.
Explique-se. Casas simples do interior não dispõem de serviço de esgoto, de sorte que são construídas latrinas sobre fossas negras que, contudo, precisam ser trocadas de lugar. A “casinha” é assim deslocada para outra área do terreno, o antigo buraco devendo ser coberto de areia. Foi exatamente isso que aconteceu no pátio da casa de Rosa justo na tarde daquele dia. César caíra na fossa negra. Para piorar tudo ainda mais, sentiu que alguma coisa ferira gravemente o seu pé. Controlando a ânsia de vômito, ele tentou em vão sair do buraco. Quanto mais se mexia, mais se enterrava. Impedido de gritar, gelado de frio, sentindo dor, foi com alívio que ouviu o ruído do caminhão sinalizando a partida do indigitado marido quase traído. Temendo alertar a vizinhança, ele então chamou baixinho: “Rosa, Rosinha”. E nada de Rosa. “Rosa-a-a-a-a-a-a” ― repetia ele, quase cochichando, como se entoasse um mantra. Finalmente a porta dos fundos se abriu e Rosa apareceu, sem, contudo, atinar de onde vinha a voz que chamava por ela. Enfim ouviu: “Rosa-a-a-a, aqui! No buraco!”
O cenário era insólito. César não conseguiu sair da fossa negra mesmo com a ajuda de Rosa. Ela temia sujar-se com os excrementos. Tentaram usar a manta, depois o sobretudo, como se fossem corda. Rosa puxava de um lado, o delegado segurava do outro, mas ela não tinha forças para deslocar os mais de noventa quilos dele que, ferido, encontrava-se limitado em seus movimentos. Diante da inutilidade dos expedientes que tentaram improvisar, foi preciso pedir ajuda. Rosa, a pobre Rosa, teve de ir, o mais discretamente possível, até a casa de Cláudio, inspetor de polícia que morava perto dali, e tentar explicar que o delegado sofrera um acidente e precisava de ajuda.
Todavia, o resgate ainda precisou esperar até que o inspetor Cláudio, impactado com a cena, conseguisse deter o longo e incontrolável acesso de riso que o acometeu tão logo se deu conta do ridículo de toda aquela situação. Sem coragem de aproximar-se dos dejetos, foi com o auxílio de uma taquara de dois metros que ele arrastou seu chefe para fora do buraco. Este saiu dali de bruços, exausto, imundo, fedendo e sangrando. Para piorar, antes de ser conduzido ao pequeno hospital da cidade, foi preciso retirar pelo menos parte do cocô que cobria quase inteiramente o corpo do pobre pecador, o que foi feito por meio de um banho de água gelada, ali mesmo, com uso da mangueira do jardim. César chegou ao hospital enrolado em um cobertor e quase morto de frio. O ferimento era grave, obra de algum caco de vidro, provavelmente parte de uma garrafa quebrada, que penetrara fundo na carne. Foi necessário tratar a ferida dado o alto risco de infecção. O cheiro nauseabundo persistiu na pele mesmo passadas horas do acontecido. Foram três dias de hospital. A cidade inteira murmurava, indiscretamente, que o delegado se acidentara ao pular uma cerca, quando ao encalço de perigoso gatuno que, todavia, jamais foi capturado.
César, mulherengo e libertino convicto, — como todo bom cachorro comedor de ovelha que, como se diz no Sul, só matando —, não desanimou. No hospital, ele foi amparado pela Irmã Angélica, freira pequenina, gentil, jovem e muito bonita. Era ela a encarregada da troca de curativos e dos banhos de benzina aplicados sobre a pele do delegado, carinhosamente, com uso de pequenas e macias buchas de algodão. Mas essa é outra história.