O autor das cartas, um rapaz de nome Francisco, as endereçava a uma moça chamada Maria. Esses documentos serviram de fonte ao trabalho acadêmico que versa sobre sensibilidades, sociabilidades e aspectos do imaginário no urbano.
Maristela Bleggi Tomasini é advogada em Porto Alegre, RS, e titular de escritório de advocacia desde 1986. Formada em Direito pela Universidade do Vale dos Rios dos Sinos, RS, em 1983, com habilitação específica em direito civil e é também tradutora da língua francesa.
O DIÁRIO DE FRANCISCO
03 de novembro, 1922 ― Maria! Hoje é teu aniversário. Esperei ansiosamente pela chegada deste dia, para poder fazer chegar às tuas mãos delicadas e frágeis um pouco de mim.
Serei formal, seguirei as normas, os postulados da etiqueta, a ditadura da elegância. No correio, a letra caprichada do funcionário da repartição desenha minhas carinhosas felicitações. Tudo daria para ver chegar esse telegrama à porta de tua casa na Rua Riachuelo...
Maria... Desde que tua imagem desenhou-se por dentro de mim, vivo à mercê das contingências, sempre a te procurar, ainda que inutilmente...
Aniversário.
Ele se lembrou do aniversário dela. Dia 3 de novembro. Ocorre-me que Maria era de escorpião, mas isso lá é coisa que se pense? De qualquer modo, um homem apaixonado não deve jamais se esquecer do aniversário de sua amada.
Penso que Francisco merece um ponto por isso.
Mas ela?
E Maria?
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O diário de Francisco!
Mais um desses descartes que percorrem o mundo com vontade própria. Papeis que coagulam a essência da humanidade, e que, tempos depois, dissolvem-se, num paradigma alquímico. Eles me fascinam, absolutamente. Hoje eu sei que são a cabala das sensibilidades, onde as sociabilidades revelam seus códigos nas maneiras de ser, de viver, de sentir e até de sofrer. Porque não se sofre mais como antigamente, como não se canta nem dança como então. Há mais por descobrir nesses papéis, no entanto. Porque eles falam de nós tanto quanto falam dos outros.
Esses velhos papeis nos refinam.
Permitem que viajemos por lugares inauditos, situados num tempo-espaço que se molda a uma relatividade desconhecida dos einsteins. Eles ora revelam, ora escondem, e pelo que revelam, omitem; tanto quanto pelo que escondem, revelam.
Hoje, tempos em que se aprendeu a viver num agora que é para sempre, não temos mais a memória do tempo em que se dizia não quando se queria dizer sim, e vice-versa. Nada mais sabemos dos desejos velados, nem dos amores contrariados, obrigados a viver numa espécie de masmorra cordial. Somos, no presente, muito ricos dessas máquinas que semeiam letras perfeitas numa folha de papel eletrônica, à qual falta, no entanto, a aspereza do atrito, o cheiro da tinta, a marca da hesitação assinalada no tremor da escrita.
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Pequeno, mofado, manchado.
A tinta, em parte, aparece borrada. Foi dolorido constatar que havia páginas arrancadas à caderneta que serviu de diário para um rapaz que aí confessava sua paixão. Há páginas escritas e páginas em branco. Muitas. De um branco amarelado pelo tempo.
Chamava-se Francisco. Sua amada, Maria. Escrito com uma letra bonita, desenhada a caneta tinteiro, o pequeno diário dá contas de um romance.
Tão logo percebi do que se tratava, senti uma espécie de impacto que, aos poucos, tornou-se um dilema. Ora me sentia apenas curiosa, ora me flagrava emocionada, ora me encontrava angustiada, como quem se esconde num confessionário. Eu segurava o diário, acariciava-lhe as páginas ressecadas. Passava os olhos pelas palavras, seguia as guirlandas da letra inclinada.
Li tantas vezes Maria, tantas vezes amor, tantas vezes saudade, tantas vezes...
Fui aos poucos me dando conta do significado de tudo aquilo. Meras conjecturas. Quem fora Maria? Pensei comigo que aquilo era real. E a palavra teve em mim o efeito de uma sombra sobre o sol de meu entusiasmo.
Como se eu fora uma intrusa.
É fascinante como esses velhos e insalubres papéis podem conter uma vida, podem nos tocar desde há décadas as cordas da emoção. Por mais que se procure o distanciamento refinado e a racionalidade limitadora, é impossível não se deixar, às vezes ― só às vezes ― invadir por essa alegria inocente de quem descobre um tesouro, a chave secreta que abre um coração. E mesmo que o tempo, inexorável, nos dê testemunho inconteste de que a morte já arrebatou esses amantes, eis que os despojos desse amor venceram-no e impuseram-se à minha, à sua, à nossa sensibilidade.
Mas como saber?
Como penetrar no não-eu que vive no não-tempo além do lugar?
O diário nada revela do que não nos é dado conhecer em nós.
Sou digna de ler esse diário?
E você?
Há perguntas que fazemos às coisas, mas que devemos nos responder antes disso. É preciso qualificar-se para saber, mas, sobretudo, para sentir. Ou os velhos papeis continuarão a ser apenas papeis velhos e, finalmente, lixo. Rebarbas de uma humanidade que aprendeu a se mecanizar, metodologicamente, aliás. Porque se teme o caos, a desordem e o imponderável que isso traz. Então, melhor raciocinar. Duvidar. E fugir dos diários amorosos.
Para começar, se você é destes que nunca amou, se você não tem com esse sentimento nenhuma intimidade, não tem por que ler o diário de Francisco. Tem? Essas palavras vão apenas entediá-lo, ora! Ou, talvez, diverti-lo. Vão despertar-lhe a ironia, essa superioridade que nos coloca sempre tão acima de todos os narizes. Bem, é uma escolha. Se você nunca amou, temo que desperdice seu tempo aqui, seus olhos, seus nervos, com todo esse pedantismo que o dia-a-dia da paixão escreve em seu eterno presente.
É que o amor torna os homens humildes.
Confere-lhes uma humanidade meio sagrada, meio sacrílega, mas ainda assim uma humanidade que lhes retira os rompantes do orgulho ou a ferocidade do eu.
Amar é estar com o outro presentificado em nós o tempo todo.
Não importa a distância. Não importam os obstáculos. Não se ama alguém porque é bonito, bem sucedido, charmoso, inteligente, elegante, genial, criativo, acinzentado pelos anos, nem mesmo quando tudo isso merece o acabamento que consiste em dois olhos profundamente azuis e, naturalmente, uma barba tão áspera quanto macia.
Não se ama alguém por nenhuma dessas qualidades que estão à venda ou que se pode conquistar pelo esforço. O que se ama no amado é um timbre intraduzível na voz, um brilho que escapa do olhar, uma presença silenciosa que, mesmo no escuro, nos pacifica o íntimo.
Ama-se o desconhecido, com tudo o ele tem de ameaçador.
Ama-se o que não se vê. O amor não é cego, criança e irresponsável? Anda armado por aí acertando flechas como balas perdidas.
O amor cria seu próprio objeto e abre seu próprio caminho. É maior do que nós e, ainda assim, nos engrandece.
Quando dá certo, é claro. Daí o amor é tudo isso, bem assim.
Quando não dá, a gente diz que não era amor de verdade. Que foi um equívoco. E isso, é claro, discretamente.
Não sei se o amor de Francisco por Maria foi um amor verdadeiro. Nem sei se existem mesmo amores verdadeiros. Acredito piamente, porém, em tudo aquilo que invento, em tudo aquilo que sinto, e isso, com uma convicção tão inabalável quanto o ceticismo com que acolho o produto de minha precária racionalidade.
Se o amor é uma crença, uma convicção, uma criação da alma, Francisco foi um grande artista.
Agora tenho seu diário em minhas mãos, mas não quero cometer sozinha o sacrilégio de profaná-lo. Quero descobrir os sentimentos de Francisco, mas sei que não desvenda segredos quem desconhece os próprios. De algum modo, admito certa culpa por invadir assim a intimidade de alguém. Algumas passagens estão ilegíveis, outras se perderam com páginas arrancadas, algumas palavras estão escritas de forma rápida, mas clara. Há poucas coisas nele, mas, ainda assim, é um diário. E é de verdade. O amor que ele noticia, eu não sei.
E tampouco sei se a simples transcrição desse diário poderá dar fé desse amor. Não sei, se nesse hoje de agoras, todo feito de um presente contínuo, existe em nós alteridade bastante para tomar o lugar do outro nesse passado cada vez mais distante.
Haverá lá alguma coisa que toque nossa sensibilidade presente?
Não sei.
Somos pessoas concentradas em momentos, recordes, performances. Gostamos de coisas tanto mais espetaculares quanto passageiras. O diário, contudo, se repete, porque é de outro tempo. Um tempo de sutilezas, de suavidades.
Sigo apenas meus impulsos nessa hora. E tento encontrar em mim alguma coisa que reflita a emoção que Francisco diz ter sentido. É um tanto quanto empobrecedor não ter amado dessa forma.
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Chega de falar.
Você deve ver por si próprio o que ele escreveu.
25 de maio, 1923 ― Maria! Descobri hoje que só se deve amar pela alegria de amar. Se me amares, querida, que não seja por meu sorriso, nem por meu olhar, nem por meu falar. Tampouco me ames pela piedade que seca as lágrimas. Ama-me, enfim, pela alegria de me amar. Espero que meus versos tenham chegado seguros para junto de ti. Usei para escrevê-los uma máquina e papel da repartição. Uma versão foi escrita a lápis, mas decidi remeter-te ambas.
Tanto tempo sem mensagens... De 3 de novembro até 25 de maio! Nada no diário. Sequer há páginas arrancadas. E, no entanto, ele anota que mandou para ela uma poesia, aliás, em duas versões.
Não sei.
Não sei avaliar se ele de fato crê no que escreve. Francisco parece mais querer convencer a si próprio que à amada de que se ama pelo amor. Então, apenas quem amasse por amar poderia realmente desfrutar da profunda alegria que esse sentimento desperta. Será?
25 de julho, 1923 ― Hoje estou amargurado. Escrevi versos onde transparecem minhas dúvidas. Tu dizes ser minha. Entretanto, quando ensaio aquele olhar profundo, agudo e longo, percebo-te no fundo da alma e... Sim, a dúvida. É preciso saber ser filósofo no amor.
Francisco! Francisco me parece tão cético. Ele trabalha um sentimento profundo com a razão. Não se entrega. Duvida. Como Orfeu, Francisco não consegue manter-se firme interiormente. Fala de olhares profundos e agudos que pretendem devassar a intimidade de Maria. Mal sabe ele que mulheres se guardam, se resguardam, quase que por uma espécie de instinto.
Mulher, teu nome é perfídia.
Pressinto em Maria um feminino que se diverte um pouco à custa da dúvida que provoca em Francisco. Ou ele não se proporia a tecer uma filosofia do amor.
Se eu fosse Maria...
E se você fosse Maria?
Entrevejo nessa página um feminino que primeiro provoca, mas que depois se recolhe. Que não dá a mão, mas que permite um leve roçar de pele que era tudo... Maria me sai bem uma sonsa. E isso a torna sedutora e irresistível.
Parece que os gêneros competiam. Disputavam uma batalha arbitrada pelo amor. Maria, quanto mais se recusava, mais provocava Francisco a lançar-lhe os tais olhares profundos. E por dentro... Ah! Lá por dentro, Maria bem que percebia e festejava, por certo, a conquista. O tal sexo frágil que submetia a masculinidade. Francisco desespera-se para entender, mas o amor não tem cognição, porque a douta razão só se estabelece a partir da dúvida, enquanto o pobre amor só tem certezas. Depois, desenganos. Mas a gente ainda não chegou lá.
27 de julho, 1923 ― Chove. Penso em ti. Uma sintonia fria e aguda fragiliza meus sentidos e me coloca em alerta. Penso em ti, em tua presença na sala, dourada pela luz que realça as sedas que cobrem teu corpo frágil.
Tua voz, teu sorriso me embalam.
Hoje compus para ti o Minueto de uma Noite de Chuva. Porque a chuva me faz lembrar das lágrimas, me fazem lembrar de nosso triste amor.
Fico imaginando quão delicada era Maria. Ela provocava em Francisco uma espécie de fascínio arrebatador, a ponto de continuar nele e com ele mesmo depois de encerrado o encontro.
Lembro-me então das velhas paixões. Quando era preciso isolar-se para melhor pensar no outro, um pensamento que, não raro, era assim orgânico, tenso, mas que não perdia sublimidade.
Fazer poesia.
Poemas para a mulher amada.
Extrair dos sentimentos uma arte moldada em palavras.
Estranho... Algo me diz que mulheres me lerão com mais agudez que homens. Tanto melhor, porque, de certo modo, os gêneros ainda conspiram uns contra os outros.
Acho que escrevo sempre sob a determinação do meu gênero, nem que seja para reconhecer-lhe o império.
Ser mulher é uma fatalidade.
É perceptível que, ao lidar com esse diário, tanto eu quanto você somos tentados a nos identificar, ora com Francisco, ora com Maria... Ela me parece poderosa. Impera sobre ele.
Definitivamente, essa sonsa me faz experimentar um pouco de despeito. E você? Já pensou nisso? Maria é sedutora. Opaca para Francisco, mas transparente diante de outro feminino: o da bruxa, que desvenda o oculto, tornando-o manifesto, rastreando-a na fonte, resgatando-a de papéis velhos junto aos quais recitamos esses encantamentos...
??de agosto, 1923 ― As praças, Maria, as praças... Gostaria que tu te detivesses algum dia a observar as praças que o tempo tornou velhas. São melancólicas, tristes, vazias.
Quando nelas, a sensação é de agonia, porque se sabe que, nos bons tempos em que eram novidade, elas viram a agitação dos passos, a alegria dos folguedos, conheceram as festas. No entanto, as velhas praças envelhecem.
Hoje te escrevi poemas que falam das praças e da monotonia dos arrabaldes, e de toda nostalgia que se pressente em seus muros quebrados, na penumbra que os encobre, em suas ruas cheias de pó. Maria, sou tristemente silencioso nessa dor aguda que sinto quando não te vejo. Maria...
As praças velhas sofrem pela falta de pessoas que as animem.
A velhice esvazia-as de pessoas e de sentidos.
Esta mesma falta de sentido acontece com quem é abandonado por seu amor.
Os lugares também ficam repletos de nostalgia. Lugares nos refletem.
É preciso um olhar de construtor que penetre as coisas e que as recubra com as cores da imaginação.
Penso em Francisco, na sua luta pelo soneto, na construção do verso. Vejo sua letra agora, num instante, ainda viva, porque é como se sua mão mal se afastasse do papel. É uma realidade percebida de um golpe, sintética.
Eu sinto, eu sei.
03 de novembro, 1923 ― Flores para minha Maria... do teu Francisquinho.
Claro! É o aniversário dela! Anotação do dia 03 de novembro.
Um ano, um ano do primeiro registro.
O aniversário dela, sim! De Maria.
Eu me lembro, eu mesma, do dia em que fiquei sozinha porque era o aniversário dela. Daquela uma. Imperdoável. Agora, folheando esse diário, me vejo presa de minhas próprias lembranças, reproduzindo uma tristeza que tem tantos anos.
O esquecimento do meu aniversário seria perdoável.
Mas a lembrança, por parte dele, do aniversário dela, não é.
A propósito, não pedirei perdão por ter escrito isso.
Foi imperdoável.
E continua sendo.
06 de junho, 1924 ― Apenas um poema, Maria.
Comparo-te à rosa, majestosa, indiferente, fria, que percorre a alameda dolorida, alameda que te vê passar, como eu te vejo te passar. Tua indiferença me afeta de um modo avassalador. Se soubesses o quanto minha felicidade depende de um sorriso teu... De um olhar... De um gesto... Maria...
Maria... Maria é malvada. Não há outra palavra.
Francisco faz dela uma rosa que recobre de majestade e de frieza. Sente-se ele próprio a alameda que ela, indiferente, percorre.
Homens gostam de mulheres malvadas.
Um quê de crueldade ao menos, uma pontinha de escárnio.
A literatura é incansável na produção desses exemplos. Um pouco de frieza, de simulada indiferença, um ar de sonsa e... Pronto! Eis o feminino provocante que deixa os Franciscos nocauteados, a caírem pelas alamedas.
Até mesmo para tornar crível um personagem feminino, creio que é mesmo indispensável dotá-lo de uma branda maldade. No mínimo.
Eu nunca derrubei nenhum homem pelas alamedas.
E você?
Repare bem! Repare bem agora no eu acabo de escrever.
Será este o lado avesso do sensível?
Algo que nos faz perceber, repentinamente, um rei nu ou um careca na plateia?
Um traço mal esboçado, e a arte se torna caricata.
Para escrever não se pode pertencer ao tempo, é preciso andar por ele, percorrê-lo distraidamente. Os apaixonados, contudo, só tem o presente do amor que acontece neles e com eles, e, assim, escrevem apenas para descrever o seu agora, que é eterno.
A não ser que, de tanto se espinharem nas rosas e levarem tombos pelas alamedas, o amor se canse, e voe, para nunca mais voltar.
Aliás, depois que passa, nunca volta.
Dois raios até caem no mesmo lugar, mas duas balas perdidas acertarem o mesmo alvo?
1º de agosto, 1924 ― Maria... A velha casa da Rua Riachuelo. Estive lá hoje, percorrendo aquele lugar onde teus passos ressoam ainda na calçada, a casa onde pensavas em mim, a casa que guarda o tempo que passou. A casa onde rezavas em frente à imagem de Santa Teresa... A casa onde uma vez choramos abraçados. Hoje te escrevi uma carta, uma longa carta, toda ela feita para recordar de tua velha casa.
Ah! Os lugares onde o amor acontece são solo sagrado para os apaixonados. Francisco volta à velha casa. Lembra-se de coisas...
E você?
Lembra daquela rua, daquele sofá, daquela casa?
Quantos de nós podemos nos orgulhar de ter construído no passado uma casa na Rua Riachuelo?
Amor é memória.
Daí, quando passa, a gente dizer que esqueceu.
17 de agosto, 1924 ― Maria, Maria... Acabo de deixar-te, mas tua presença permanece em meu corpo e afeta meus sentidos. Ouço tua voz, sinto tua presença, teu perfume! Contudo, a felicidade é fugidia. Ela consiste talvez em acreditar que se é feliz.
Não sei quanto a Francisco, o que ele entende por felicidade.
Talvez uma plenitude fugidia, enganosa.
Como ele ama, não pode amar sozinho.
Amar sozinho é a solidão pior. O grande mal do amor é ele não terminar sempre, para os dois, ao mesmo tempo.
Feliz no amor é quem se acredita amado.
A dúvida traz o ceticismo, a insegurança, a amargura.
Exagero?
Pode ser, mas quem ama sempre acredita, no fundo, que é correspondido. Nosso narcisismo recupera-se a custo de certos ferimentos. Nosso ego é sustentado pela vaidade, vaidade... A bíblica vaidade do Eclesiastes.
Amar sozinho.
Amar sozinho é experimentar o terror, porque é como ser privado de si mesmo. O único remédio para isso é amar com cálculo, reservar-se alguns mistérios, não fazer o tal mergulho de cabeça do qual tanto se ouve falar. Só que amar assim não tem a menor graça. Bom mesmo é correr o risco. A gente se machuca, mas descobre depois que a vida assopra. Que passa...
Acho que chega um dia que ninguém se atreveria a anotar num diário. Mas ele chega, sim. É o dia em que a gente descobre que o olhar de compreensão que se lê nos olhos do outro é muito superior àquele,agudo e penetrante, que os Franciscos lançam às Marias.
Eu não queria contar isso assim, estragar tudo. Mas é.
As feridas do amor saram.
Talvez você me fale de Orfeu. Mas transcendeu o amor. Foi além da morte. Era um deus. Adoeceu e permaneceu doente para poder melhor compreender a dor do outro.
Não se compreende a dor do outro, a não ser quando ela dói em nós. Orfeu fez de seu amor uma eternidade.
Todos os Franciscos têm um pouco de Orfeu.
Nós também. Só um pouco, felizmente.
Francisco está sempre com Maria, mesmo longe dela.
Penso nestes amores que aconteciam em outro tempo.
E penso em nosso tempo.
Tudo é tão diferente. Compreensível, mas diferente. Nosso sentir não é espiritual, mas glandular.
Há três verbos que nossa vida amorosa da pós-modernidade conjuga: pegar, ficar e ainda o antigo namorar, este último, uma sensibilidade que sobreviveu, parece, ao século XX.
Você pode optar por pegar. É uma atitude que presume que você solta rapidamente. No entanto, se você pegar e não soltar rapidamente é sinal de que está ficando. Ficar é sempre gerúndio. Você vai ficando até que fica assim... ficado. Sobrevindo o particípio, você descobre, enfim, a diferença dessas suas sociabilidades pós-modernas: pegar e ficar.
Quanto a namorar, obviamente, se você está lendo este meu texto até aqui, é sinal de que, como eu, é egressa do século XX e, certamente, já namorou algum dia.
Nem me passa pela cabeça que você já tenha pegado.
Mas, quem sabe, já ficou...
Certo.
Não é mesmo da minha conta.
Para ler o passado, é preciso ter o coração no passado. Quando olhamos o passado misturado ao nosso presente desafinamos, criamos artificialismos e distorções. Interpretamos as coisas para nós, e não por elas.
No entanto, este é o risco dessas jornadas.
Os diários antigos nem sempre se abrem.
Não serão os dados históricos literalmente o que o nome sugere?
Sólidos de seis faces numeradas que se lançam diante de nós num jogo de esfinge?
Francisco é do passado. Nós, do presente.
Aonde essas coordenadas se encontram?
??de setembro de 1924 ― Maria, Maria... Que saudade! Percorro a cidade e desanimo de não te encontrar. Pressinto teu vulto, mas ele se esvai tão logo me aproximo. Percebo sombras indistintas, enganosas, que me iludem. Sinto apenas saudade e a chuva que se mistura às minhas lágrimas.
Francisco aposta tudo num segundo.
De algum modo, me vêm à mente lembranças de um encontro frustrado, de uma decepção, de um adeus.
Corações apaixonados temem desencontros, frustram-se com excessiva facilidade, desapontam-se como crianças..
Sabem de uma coisa?
Isso me faz lembrar daqueles amores dramáticos. Encontros marcados. O olhar de quem espera, de quem espreita, o guetter à la Beaudelaire. Olhos vigilantes que procuram localizar no espaço físico a presença sensível do amado, materializando um desejo.
O esperar é repleto de segundos intermináveis.
31 de agosto, 1924 ― Maria, Maria... Como sofri naquele carnaval. Não foi tanto por estar longe de ti, mas foi o sofrimento imposto por minha imaginação. Você toda para os outros, tão bela...
Mas não para mim, para os outros. Maria...
Eu quase já me esquecia dessa dor, mas me mandaste agora esta foto.
Por que, Maria? Foste perversa, mas talvez sem o querer.
O ciúme.
Maria mandou uma foto...
E quem disse que ciúme é racional?
Pode-se exigir de Francisco que ele não imaginasse Maria sendo toda olhares para os outros, toda beleza para os outros, toda ela mesma, dele, para os outros?
Complicado.
Olhando o diário de ontem com esses meus nossos olhos de hoje, percebo também a palavra perversa aplicada à Maria.
Eis um ainda.
Nem todo passado fica por lá. Uma maldade que o próprio Francisco vai qualificar de inocente, de não intencional. Um maldade que persiste por aí, impregnando os femininos.
É preciso desprender-se da lógica externa da escrita, porque ela se deixa acontecer praticamente sozinha. A minha, a de Francisco. Confundem-se.
Como se confundem os sentires e as palavras. Espero que algum dia alguém se aproprie delas, como me aproprie das de Francisco, pressentindo essa cadeia de aindasque atravessa o tempo, e que se faz de acasos, que é repleta de imponderáveis.
25 de setembro, 1925 ― Não estou bem. Penso no tempo, que tudo faz passar. O tempo que sepulta nossas emoções. Estou doente, de cama. Maria me escreveu dizendo que “a saúde é nossa maior riqueza”. A saúde é nossa maior riqueza... Talvez justamente por isso eu a desperdice, malbaratando-a...
Eu não deveria ter escrito tal coisa na carta que mandei hoje para Maria, mas foi tentador...
Ela foi banal.
Ah! Se eu pudesse falar com Francisco!
Se eu pudesse contar para ele o que fiz de suas palavras...
Ele venceu o tempo...
Mesmo quem não teve nem nunca terá um amor como o dele, para Marias que nunca terão Franciscos, e para Franciscos que nunca terão Marias, não importa! Francisco atravessou o tempo. Chegou aqui.
Maria tem seus momentos de futilidade. A vida é assim. Saúde não tem preço. Amar é sofrer. A vida é bela...
Mulheres são profundamente superficiais.
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Tantas coisas se misturam.
Faltam só mais dois registros na pequena caderneta. Alguma coisa em tudo isso me incomoda, me constrange. Uma impossibilidade. Não podendo conhecer nem o inferno nem o céu que Francisco me descortina, eu o atiro para dentro desse limbo de tempo fracionado.
Com que direito faço tudo isso?
30 de setembro, 1924 ― Maria... Que saudade! Doente, vejo-me forçado a criar um universo próprio. Os homens, os homens nascem e vivem pelo amor.
Maria, terá elarecebido as minhas cartas dos dias 24, 25 ou 26?
Saudade. Amor também vive de saudade. Talvez viva melhor de saudade que de presença, pois saudade só aumenta e não desgasta. E depois, mesmo que passe, a saudade como que congela o saudoso. Basta rever a pessoa amada, para a coisa recomeçar. Pelo menos este é um argumento infalível quando se tratam de romances, ou de amores mal resolvidos.
E as cartas? Terão chegado? E essa história de universo próprio?
Não creio que isso tenha mudado. Quando se é presa de um sentimento muito forte, a tendência é que se procure mantê-lo constante. Isso explica o universo próprio, o isolamento, o mundo interior para o qual se volta Francisco. Ele se entrega ao culto Maria. Festeja o amor, vive do próprio sentimento e da esperança de ser correspondido.
E se não for?
E se Maria não passasse de uma dissimulada?
Pior: se Maria se visse forçada a ser essa mulher sublimada pelo amor de Francisco?
Não sei.
Ocorre-me que ser amada dessa forma deve pesar em Maria. Porque ela precisa ser perfeita, precisa corresponder a uma idealidade, comportar-se de maneira a não decepcionar Francisco.
Para falar bem em linguagem de tempos presentes, a manutenção de um eterno apaixonado implica num certo capital de sedução, porque, afinal de contas, todo mundo sabe que nem mesmo naquela época os homens ficavam assim tanto tempo esperando... Na fila?
Pobres homens.
Tinham de ser assim, um bom partido, bem ao gosto da pequena burguesia que procurava aristocratizar-se, sem perder, contudo, esse terrível sentido prático da vida, que coloca preço em tudo: pessoas e coisas.
Aliás, até hoje. Ainda.
03 de outubro, 1924 ― Maria, vivo meus dias a pensar em ti. Mandei-te hoje uma carta apaixonada, onde te recordo de nosso pequeno passado, que se desenrola diante de meus olhos. Nossa história romântica, que se resume a um olhar, a um passeio. Tudo no amor é promessa.
Esse lembrar...
Esse lembrar é tudo.
É disso que o amor é feito. De lembranças repetidas como jaculatórias, reiteradas a toda hora, tornadas obsessão.
O pequeno passado.
Quem não teve um pequeno passado para recordar?
É preciso guardá-lo, mesmo que tenha muito de insólito ou de insípido, ele é todo seu.
E mesmo que lhe faça mal, que lhe doa, que lhe envergonhe, ele é seu.
Ele é um pouco você.
Guarde-o. É sua herança.
Com sorte, depois que você passar, seu passado ficará.
Alguém vai herdá-lo, apropriar-se dele, e suceder você nas próprias emoções.
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Este foi o último registro.
Há uma parte rasgada, algumas páginas ilegíveis e depois uma sucessão de páginas em branco.
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Preciso lhe dizer uma coisa.
Estas são as páginas em branco do diário de Francisco.
Acredite. Elas estão em branco. Porque toda esta escrita que aparece aqui acontece agora bem aí, dentro de você.
Não existe passado.
Nunca existiu.
Nem o diário.
Eu inventei.
Perdemo-nos do passado no instante em que criamos o tempo.
Não há remédio para essa perda. Por isso, assim como os apaixonados, precisamos de um passado, dependemos dele para nos dar sentido.
Nem que seja um passado como este. Inventado letra por letra.
Para inventá-lo, contudo, é preciso fazer assim.
É preciso saber mentir de verdade.