O vinho de sobremesa – ou licoroso – ainda é um desconhecido, apesar das delícias que esconde. Entretanto, ele vai bem com salgados e doces, pode ser um bom aperitivo ou fechar a refeição com perfeição.
A maior parte dos vinhos de sobremesa é obtida a partir de um mosto dulcíssimo, naturalmente derivado de uvas supermaduras. Podem ser tintos (como grande parte dos Portos e o francês Banyuls) ou brancos (muitas vezes de uvas intensamente aromáticas, como a Moscatel e suas inúmeras variações, embora haja licorosos sublimes de uvas como Sémillon, Sauvignon Blanc, Malvasia etc.
A vinificação “em doce” requer estratégias especiais, como a utilização da podridão nobre (o fungo Botritys Cinera); a passificação; a colheita tardia, manual, grão a grão; o congelamento; a fortificação, a oxidação.
São néctares em que se busca a potência aromática, a doçura profunda. Essa doçura, entretanto, deve ser perfeitamente equilibrada com uma alta acidez, frequentemente com uma alcoolicidade elevada, e até algum amargor, de forma a não se tornar enjoativa, ao contrário. São vinhos sempre muito elaborados, em que a sabedoria do homem extrai sabores fantásticos da natureza.
Fortificados – Muitos vinhos licorosos são obtidos pela interrupção da fermentação, processo que transforma o açúcar em álcool. Com isso, o mosto preserva açúcares não transformados pelas leveduras, que adoçam o vinho final.
Para interromper a fermentação, existem inúmeros métodos: a adição de aguardente vínica é talvez a mais comum, usada nos inúmeros estilos de Porto, em Madeira e nos Moscatéis de Setúbal e Douro, em Portugal; nos Vin Doux Naturel franceses (como Muscat de Beaumes de Venise, de Frontignan, de Mireval, no tinto Banyuls, entre outras apelações do sudeste francês); nos italianos de Málaga e nos sensacionais vinhos andaluzes de Xerez, entre muitos outros. Esses são os vinhos fortificados, em que a doçura é natural da uva, mas a alcoolicidade, em torno de 17º a 20º, é adicionada.
Tokay – A fortificação não é o único meio de vinificar excelentes licorosos. O maravilhoso Tokay húngaro realiza primeiro a fermentação (de uvas Furmint, Harslevlú e Muscat) e depois recebe a adição de novo mosto fresco (sem leveduras), dulcíssimo, um creme das mesmas uvas botritizadas, passificadas (Essência; quando de uvas botritizadas chama-se Aszú).
A adição é feita usando-se barriletes-medida, chamados puttonyos. O número desses barriletes (de 20 kg a 25 kg) por 136 litros é usado como indicador de doçura nos rótulos desse néctar. O Tokay ainda oxida em garrafa, em adegas úmidas, sombrias, por alguns anos antes de nos fascinar.
A engenhosidade humana desenvolveu, ao longo de séculos, inúmeros métodos para obter concentrações excepcionais de açúcar e sabores exóticos, refinados, únicos.Sauternes – Os vinhos da região bordalesa de Sauternes (ao sul da cidade de Bordeaux) lideram a gama de vinhos do Sudoeste francês que se beneficiam do fungo Botritys Cinérea. No final da cuidadosa e prolongada maturação, as uvas (Sémillon, Sauvignon Blanc, Muscadelle) mofam, umedecidas pela névoa que o rio Dordogne esparge pela manhã. O fungo que ataca é curioso: toma de seu interior a água através dos micrósporos da casa. Com isso, o açúcar se concentra, e se concentram também o extrato, a acidez, as características desejáveis do suco da uva se acentuam. Além disso, não se sabe bem porquê, empresta à uva um gostinho típico, muito especial, um ligeiro amargor, e certa complexidade de sabor.
Vinificado, o suco dessas uvas produz maravilhas em Sauternes – onde as uvas são, nos melhores produtores, colhidas uma a uma, sem qualquer adição extra. Produz boas coisas também, em um nível ligeiramente menos cuidadoso (e menos caro), em Brasac, St. Croix du Mont e, mais ao sudoeste, Monbazillac e Juraçon.Há ocorrência de Botritys em outras régios do mundo, que dedicam igual cuidado à colheita. Na Alemanha e na Áustria, geram os Trockenbeerenauslese (grão secos selecionados à mão), o topo de uma classificação de vinhos doces não fortificados que inclui, decrescendo, Beerenauslese e Auslese.
Passas on the rocks – Postas a secar em caixas vazadas ou esteiras, uvas aromáticas (variações em torno da Moscatel predominam) resultam em vinhos densos e doces em todo o mundo. Na ilha italiana de Pantelleria, faz-se o mais famoso Passito daquele país, mas a técnica é utilizada em quase todas as regiões vinícolas da península.
Também adotada internacionalmente para a elaboração de vinhos doces é a colheita tardia, vendange tradive ou late harvest, Mesmo no Novo Mundo, a técnica dá excelentes resultados. Envolve risco: granizo, podridão cinza (não é nada nobre e estraga a colheita), ataques de animais e pragas.
A bem da verdade, quase sempre uma técnica é empregada ao lado da outra, incentivando-se a podridão nobre, realizando a colheita tardiamente, passificando as uvas etc.
Claro, nem todos os viticultores dispõem de clima para realizar o icewine (em inglês), eiswein (em alemão), o vinho de gelo. O Canadá, a Áustria e a Alemanha têm, mas o fenômeno pode ocorrer em outras partes do mundo, muito frias, claro.
O eiswein é feito com as uvas congeladas, colhidas nas primeiras horas de uma madrugada gelada (e assim mantidas até a vinificação), em um ano de inverno precocemente rigoroso. Na extração do mosto, a água em estado sólido se separa dos demais componentes de suco, concentrando-o em elementos aromáticos, saborosos, e em açúcar e extratos.
Há, enfim, uma miríade de sabores a desvendar também no mundo dos vinhos doces. O foie-gras grelhado é maravilhoso com um tipo Sauternes, Jurançon, ou outro desses néctares. Os caramelos à base de damasco amam o Tokay.
A regra geral para harmonizar os vinhos licorosos com sobremesas é que o doce no prato não seja mais açucarado que o vinho no copo. Doces muito potentes e untuosos, como o chocolate, costumam suplantar os vinhos. Problema para nós, brasileiros, herdeiros da tradição portuguesa de sobremesas dulcíssimas, doces conventuais, à base de gemas (às claras era reservado o nobre destino de engomar as batas e clarificar o vinho).