Cigarros e carros

terça-feira, 1 de maio de 2012

A quarta parte do espaço público da cidade de São Paulo é ocupada por veículos particulares. Isso, sem dúvida, ocorre em detrimento da utilização desse mesmo espaço para finalidades mais socializadoras e menos individualistas. Contudo, a expectativa de que esse quadro possa mudar parece estar na dependência de fatores pouco discutidos. Não se trata apenas de criar regras que forcem a socialização dessa porção física da maior cidade do Brasil; trata-se de mudar uma mentalidade.

Cigarros e carros



A mentalidade  que reserva ao automóvel um espaço no imaginário talvez até bem maior do que esses 25%.

Carro simboliza liberdade, independência; ele confere, ao seu feliz proprietário, atributos altamente desejáveis. Não obstante tratar-se de um bem indispensável ao desempenho das atividades profissionais de boa parte da população, ser dono de um automóvel é um objetivo a ser alcançado na vida, uma conquista não menos almejada que a casa própria ou o diploma. Quanto mais sofisticado é o carro, maior o ganho social. Ter um automóvel atesta competência, inteligência, sagacidade, dá status e faz crer que seu possuidor é até mais atraente, mais bonito, mais desejável.

“Que carro você tem?” – é uma pergunta que muita gente faz aos outros, e até a si mesmo, simplesmente porque o automóvel exerce fascínio, atrai, conquista, encanta, é fetiche. Seu carro define quem você é. É, pois, objeto de desejo e, como tal, integra a própria personalidade do adquirente. Aquele que se torna dono de um carro adquire um diferencial social, cresce aos seus próprios olhos e aos olhos dos outros. Há tempos, o carro desfruta de personalidade. Tornou-se membro da família e reclama espaço, espaço este que vem conquistando cada vez mais, até chegar a esta quarta parte de São Paulo da qual estamos falando.

Pensar em fazer recuar essa conquista espacial do automóvel implica numa mudança de mentalidade. Até lá, os 25% permanecem ou mesmo avançam, visto que refletem tão-só um espaço imaginário, simbólico, que tem a ver com a própria imagem social incansavelmente procurada em uma sociedade voltada ao consumo, uma sociedade onde não ter carro nos expõe até mesmo à discriminação. Não ter casa própria ou diploma é compreensível, mas não ter nem mesmo um carrinho usado é imperdoável. Não dispor de uma Brasília amarela e, naturalmente, a mina para levar à praia, é ser muito, mas muito pobre, é algo que faz mal para a saúde social do sujeito: sua imagem e sua autoimagem sofrem com isso. Daí as coisas serem como são: a quarta parte do espaço urbano toda ela reservada para eles, os automóveis, e seus felizes proprietários.

Cigarros e mentalidades

Tentador especular sobre isso. Mentalidades mudam, oras. É complicado, mas mudam. Vejamos um caso. Com o cigarro aconteceu uma mudança bastante significativa, mudança que se refletiu na diminuição do espaço urbano reservado ao fumo. A lei ajudou, ao editar as proibições e ao atribuir pesadas multas aos infratores. Contudo, lei é reforço, não resolve nada sozinha, apenas pelo fato de vigorar. Caso contrário, não haveria mais crimes, para os quais ela reserva as penas mais graves. A lei ajuda, reforça, mas não transforma mentalidades.

O que mudou então em relação ao cigarro? A edição de leis, somente? Não. Mudou a mentalidade. Esta nova mentalidade trouxe consigo uma considerável diminuição no status social do fumante. Ele perdeu charme, perdeu encanto, deixou de ser desejável, quando os atributos de elegância e de refinamento associados ao hábito de fumar foram sendo, pouco a pouco, alterados. Não demorou tanto tempo assim para que isso viesse a se refletir justamente no espaço urbano reservado aos fumantes e aos seus cigarros, uma vez que, até então, não se concebia um sem o outro, assim como hoje não se concebe o proprietário sem o equivalente espaço para seu automóvel. Ambos são como se fossem um, definindo-se reciprocamente: o carro que você tem diz quem você é.

Assim como o automóvel desfruta hoje de um verdadeiro culto, o cigarro também teve os seus dias de glória. Havia cinzeiros em aviões, em restaurantes, havia refinadas cigarreiras, piteiras, designers sofisticados para embalagens e mesmo cigarros 120 mm, coloridos, envoltos em anéis dourados. Fumar era muito chique. Fumar fazia diferença: era coisa de adulto, de gente grande, decidida, independente, que se impunha socialmente. Fumar passava uma mensagem de firmeza, decisão e determinação. Até o inesquecível 007 fumava antigamente. Que fim levou tudo isso? Nem mesmo o saudosismo conseguiu restaurar o velho charme de fumantes tão encantadores quanto os mais famosos astros de cinema. Acabou. No máximo, a sociedade tolera os fumantes, esses infelizes, coitados.

A mentalidade mudou. Não fumantes continuaram assim depois de adultos, e adultos fumantes abandonaram o triste vício, tornando-se os heróis que conseguiram “vencer” o hábito. Como todos os heróis, passaram a ser imitados. A imitação se propagou, as campanhas publicitárias fizeram outra vez o seu papel, agora na contramão, e finalmente a lei veio como reforço, para dar um basta frente aos resistentes e aos recalcitrantes, os que ainda insistem em desfrutar desse pequeno prazer. E a indústria? Simples. Foi confrontada com o prejuízo que o cigarro causava. Parece que funcionou. Ela sobrevive ainda, é verdade, mas onerada com impostos, assediada com processos indenizatórios e ainda pagando bem caro para publicar aquelas fotos nada atraentes nas embalagens do produto que fabrica.

Carro: solução ou problema?

Ora, o cigarro, de solução que era, virou problema. Até então, socializava-se o seu ônus. Contudo, uma vez a população persuadida de que os inocentes não fumantes eram prejudicados pelos ora demonizados fumantes, tudo mudou. A mentalidade vigente aos tempos áureos do cigarro levava a pensar que um belo dia todos seriam fumantes, porque era elegante ser assim. Com isso, o custo social do cigarro era absorvido. Ninguém reclamava, e os espaços se abriam. O automóvel particular, no entanto, permanece como uma solução, e uma solução altamente desejável. Quem não tem carro, um belo dia, espera ter um, concentra nisso os seus esforços, porque é altamente desejável que seja assim. Ora, como todas as coisas que se tornam objeto de desejo, existe nesta escolha um ônus significativo, só que, no caso, um ônus que toda a sociedade se mostra pronta a assumir, tanto que assume, cedendo a quarta parte de seu espaço urbano ao automóvel.

Em se tratando de São Paulo, seria interessante que alguém mais afeito às matemáticas mostrasse, em reais, o valor de todos esses metros quadrados, fora o custo da poluição e seu reflexo na saúde. Não seria mesmo difícil demonstrar onde está o ônus implicado na adoção desse modelo de desenvolvimento. Nossa sociedade de consumo, porém, é toda voltada ao automóvel e à satisfação de seus felizes possuidores. Quanto mais um bairro é nobre, menos os moradores dependem do transporte público. O acesso aos melhores restaurantes, às melhores lojas, aos mais requintados locais onde existe apelo ao consumo, passa pelo automóvel, pois normalmente tudo isso funciona em lugares aonde só se vai de carro. Quem não tem carro simplesmente não vai. Há nisso uma seleção de públicos, e o exercício de uma sofisticada discriminação. Quem não tem carro conta menos, e faz parte do grupo que depende do transporte público. Essa condição, no entanto, é imaginada e vivida como provisória, na medida em que se estimula o sonho de todo mundo, um dia, ter um carro e, enfim, vir a ser feliz. Enquanto isso, o custo social desse modelo econômico toma ares democráticos e vai sendo tolerado.

Como esperar, dentro de tal mentalidade, que alguma coisa mude? Será possível algum dia pensar o transporte coletivo como desejável, e ver o carro como algo que, afinal, não faz tanta falta assim? Optou-se por um modelo econômico que gera essa mentalidade, alimentando o imaginário popular que, por sua vez, atua no sentido de perpetuar o modelo matriz. Diante dessa conjuntura, porém, seria muito difícil vencer as implicações econômicas que atuam em prol de sua manutenção. No caso do cigarro, não eram tantas; no caso da indústria automobilística, são implicações bem mais complexas. De um jeito ou de outro, sabe-se que a cidade não tem mais para onde se expandir. Um colapso é previsível e bastante provável, tudo indicando que alguma coisa terá de mudar nessa disputa por espaço vital. Em todo caso, enquanto isso tudo não muda, afinal, que carro você tem?


Autor: Maristela Bleggi Tomasini
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Existe 2 comentários para esta publicação
sexta-feira, 4/5/2012 por Maristela Bleggi Tomasini
Obrigada, Lisbete
Agradeço a publicação do artigo aqui na Revista Vida Brasil, e o elogio da leitora Lisbete. Eu também fui fumante e compreendo bem quanto custa mudar.
domingo, 29/4/2012 por Lisbete Faria
Abordagem realista
Adorei a matéria!! Muito oportuna, realista e coerente. Não sabemos onde isso tudo vai parar, e se vai. Para ser o mais direta possível, eu parei de fumar, e adoraria poder pedalar livremente em minha cidade (Goiânia-Go), à passeio ou à trabalho!
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