E quem circula pela área não é considerado cidadão da metrópole mais rica do país.Quem ocupa as esquinas, quadras e avenidas, se mistura com o lixo e divide espaço com os ratos, que cruzam as ruas a procura de comida. À noite não há quem desvie dos moribundos ou crianças alucinadas. E, vez em quando, se tem a impressão que não há uma alma viva sequer, mesmo que oitenta usuários de crack estejam ocupando uma mesma sarjeta. Até quem tenta se inserir nesse meio — por política, trabalho ou missão — dificilmente consegue penetrar nessa outra realidade, onde o olhar não pára, nem brilha, mas ainda busca, desesperadamente, por 8 segundos.
“De 5 a 8 segundos é o tempo que dura o ‘barato’ do crack. Nesse curto espaço de tempo, dizem, a sensação é equivalente a 8 orgasmos” conta um dos missionários do Cena, que conversa com os dependentes durante a noite, para convidá-los a conhecer o projeto e, quem sabe, embarcar numa outra viagem — a de reabilitação. Ele circula normalmente entre a aglomeração de usuários.
Diferente do que os telejornais ensinam, a cracolândia não é um lugar sem leis. Religiosos são respeitados e, muitas vezes, ignorados pela massa. Quando a polícia derrapa com as viaturas nas ruas e saca seus (desnecessários) sprays de gás de pimenta, todos vão para outra esquina. Quando um segurança de uma loja qualquer manda eles saírem, o mesmo acontece. Não há sexo e violência explícita na rua. Não o tempo todo. Não tempo suficiente para concorrer com qualquer balada de classe média alta em uma sexta à noite. Os usuários vez em quando discutem entre si, mas os gritos são, em sua maioria, parte da negociação de droga.
“Quem dá dois por uma pedra? Quem tem uma nota de cinco? E um cachimbo novo?” Com frases desse tipo a “bolsa do crack” funciona a noite inteira, com usuários pra lá e pra cá comprando e vendendo tudo o que podem, de cigarros a 25 centavos até salsichas vencidas achadas no lixo. Nesse mercado quase todos são compradores em potencial, menos os que chegam em bicicletas, trazendo mais pedras em sacolas plásticas, para fazer girar a roda da dependência. Quem não está negociando, só pode estar consumindo, procurando restos na calçada ou tentando tirá-los do cachimbo. Nesse ciclo nada que não tenha ligação com o crack importa. Ninguém liga para os carrões que cruzam a região noite adentro para comprar a droga. E não é raro ver pessoas bem vestidas e com tênis da moda fumando ao lado de moradores de rua. Não existe mais rico ou mais pobre quando se está rente ao chão.
Nesse contexto, crianças de dez anos agem como se tivessem o dobro. São chamadas de “dimenor”, mas só isso as diferencia dos demais. Com uma casca dura de sujeira preta ou incrivelmente limpas, elas sabem o próprio nome, há quanto tempo estão nessa vida, onde doem as feridas e, principalmente, que precisam de uma pedrinha. Os traços infantis quase se perdem em meio a tanta opressão, mas quando pedem ajuda para conseguir a próxima brisa, são como tantas outras crianças pedindo um doce. E são frágeis, muito mais frágeis do que aparentam quando as olhamos de canto de olho, andando a passos rápidos. Mas essa não é uma característica só delas.
Os usários de crack vistos de perto e em seu habitat, em nada lembram os retratados em telejornais. No lugar do medo e do ódio, despertam uma tristeza imensa, acompanhada por um sentimento de impotência. Nada que não seja a pedra parece tocá-los — inclua aí a sua presença. Mas quem, mesmo assim, tenta se aproximar tem uma surpresa. A mão áspera é quente, os olhos ainda lacrimejam, a voz embarga ao contar sobre o passado, ainda há pulsação e sorrisos sinceros. Apesar de toda a ânsia pela droga, há outros tipos de carências não supridas, tão importantes quanto. E para tratá-las é preciso bem mais que 8 segundos. Mas isso o paulistano ainda não sabe.
* Talita Ribeiro é uma das integrantes do Coletivo Cracolândia, que mantém um site participativo sobre a região da Luz e as formas de enfrentar seus problemas