O MENSAGEIRO DA VIDA

Decorre a segunda metade da década de 40. O mundo festeja o final da II Guerra Mundial, Arthur Clark prevê a utilização dos satélites artificiais, o mundo espanta-se com a leitura do Diário de Ane Frank. Em Salvador, aterrissa no Aero Clube uma aeronave Paulistinha CAP-4 comandada por um adolescente imberbe de corpo franzino e fala mansa. No assento traseiro, um pálido padre da Congregação Marista acompanha o piloto Humberto Freire. Conheça um pouco da trajetória desse extraordinário cidadão.



  

O pai, Miguel Freire, era um bem sucedido comerciante de móveis finos em João Pessoa. A mãe, D. Felesmina, como a maioria das mulheres nordestinas da época, uma bem aplicada dona de casa. Humberto Freire O segundo de uma família de quatro irmãos virou primogênito com a morte de Gilberto, o mais velho. Determinado, convenceu aos pais de que deveria concluir o curso médio em Salvador e estudar medicina na Universidade Federal da Bahia. Equilibrado, bem articulado, aos dezesseis anos desembarcou sozinho em Salvador e apresentou-se com documentos ao Colégio Maristas, aonde se matriculou no curso como aluno interno.

O tradicional colégio soteropolitano tinha normas muito rígidas, Além das férias, as saídas só eram permitidas aos domingos e, mesmo assim, o aluno tinha de apresentar uma justificativa para ser avaliada pelos diretores. Numa delas Humberto escreveu apenas: “Saída para passear”. Indignado o diretor o convocou para que explicasse o que significava “Sair para passear”. Isso mesmo padre, quero sair para passear. Ou o senhor prefere que eu invente uma mentira e diga que vou visitar a minha tia? A permissão foi concedida e a partir daí o menino paraibano gravou o “script” que passou a ser oficialmente o seu motivo de saída; passear.

Parte do tempo dos “passeios” era consumido no Aeroclube da Bahia na Boca do Rio onde hoje está instalado um shopping com o mesmo nome. Brevetado antes dos dezoito anos, Humberto já era um menino diferente. Convidava colegas e professores para um passeio onde torrava a mesada alugando uma aeronave Piper ou Paulistinha para sobrevoar a capital da Bahia.

Aprovado no vestibular de medicina, concluiu o curso aos 25 anos. Entre os ilustres formandos da turma, o líder estudantil Antonio Carlos Peixoto de Magalhães que se transformaria num dos mais importantes políticos do país e passaria a ser conhecido pelo acrônimo ACM, com quem Humberto se reencontrará várias vezes durante sua trajetória.

Diplomado em medicina, especializa-se em Cirurgia pela UFBA e em Tisiologia pelo Hospital Curicica no Rio de Janeiro. Atua ainda como Professor em Clínica Cirúrgica da UFBA e na Escola Superior de Enfermagem da UFPB. Retornando a João Pessoa além de clinicar e atuar como cirurgião, assume o cargo de Diretor de Saúde pública do Munícipio e Diretor do Hospital Clementino Fraga.

Casado em Salvador com Vanda Freire, Humberto encanta-se em João Pessoa com Rejane, filha de tradicional família paraibana. Tradicional e valente! Para evitar um desastre o casal resolve fazer uma longa viagem em direção ao Sul. O destino; Porto Alegre. E é durante a viagem que ele se transforma no mensageiro da vida ao clinicar e salvar vidas em pequenas cidades do interior aonde raramente aparecia um profissional de medicina. Principalmente um profissional com aquele gabarito. Clínico Geral, Obstetra, Cirurgião de mão cheia e ainda por cima desapegado de coisas materiais. Nunca exerceu a medicina apenas pelo dinheiro.

A viagem transcorria em pressa. As paradas não tinham tempo determinado. Foi assim que durante a estadia em Caldas de Cipó, Humberto recebeu do tenente Santana, convite para conhecer Euclides da Cunha aonde o militar explorava uma farmácia. ”Saímos de Caldas de Cipó em direção a Euclides da Cunha. Santana me dissera que a cidade era próspera e evoluída. Ao chegarmos a Pinhões, o brincalhão me disse que já estávamos em Euclides da Cunha. Foi um susto logo desfeito pelo sorriso de Santana que finalmente informou que estávamos a dez minutos do nosso destino”.

“Hospedei-me no Lua Hotel onde também improvisei meu consultório. Á noite fui procurado por pessoas aflitas que pediam socorro para uma parturiente que estava prestes a morrer. Fui atende-la levando a minha maleta de mão onde costumo carregar instrumentos cirúrgicos. Chegando à casa da paciente constatei que havia necessidade de se fazer uma Cesária. Amarrei  num caibro o recipiente com o soro, apliquei a anestesia e minutos depois ouviu-se o choro do recém-nascido.”

O sucesso da primeira Cesariana efetivada Em Euclides da Cunha deixou a cidade em polvorosa. Todos queriam conhecer o homem que “cortou a barriga da mulher e tirou uma criança”

Em Cipó, a feira local era realizada às quartas feiras, dia no qual Humberto atendia entre cinco e dez pacientes. No sábado, dia da feira em Euclides da Cunha para onde afluem os moradores dos povoados, em consequência do parto improvisado, todos queriam se consultar com o homem que “cortou a barriga da mulher e tirou uma criança”. No primeiro dia de atendimento foram vinte horas de trabalho e noventa consultas. Estava selada a longa convivência entre o médico paraibano e a população de Euclides da Cunha. Acabará de nascer um grande amor. E foram muitos...

...E aí está uma faceta complexa desse homem que deu inestimável contribuição á mudança de costumes e evolução social da região. Não só pela coragem de assumir os dois casamentos e as cinco uniões estáveis que lhes presentearam com dez filhos, mas principalmente pelas atitudes que de público ou nos bastidores foram fundamentais para que a cidade mudasse.

Na igreja Humberto tinha dois grande amigos: O velho padre Berenguer em Monte Santo que embora ultra conservador era paciente e atento ouvinte das suas ideias. Em Euclides da Cunha, o padre Pedro, colega de magistério no Educandário Oliveira Brito e interlocutor. “O Pedro era um padre moderno. Já estava até namorando. Um dia eu o chamei e disse: Pedro, acaba com essa proibição burra de mulher entrar na igreja de calça comprida. É até melhor porque assim o malandro não fica olhando para as pernas delas. No sermão do outro dia ele foi lá e liberou a calça comprida”.

Eleito presidente do Clube Social e Recreativo de Euclides da Cunha, a sua primeira medida foi liberar o beijo. “Era um absurdo. No lugar onde as pessoas dançavam agarradinhas e demonstravam publicamente o seu carinho, era proibido beijar. Liberei o beijo!”, regozija-se.

Certa senhora casada e de família nobre conta abertamente que aos vinte e um anos apaixonou-se por ele que já passara dos cinquenta. Insinuou-se e terminou por seduzi-lo.

ACM, o antigo colega, agora governador da Bahia, visita Euclides da Cunha algumas vezes e em todas elas manifesta abertamente a amizade nutrida pelo médico já radicado na cidade. Em algum momento tentou fazê-lo prefeito, proposta recusada veementemente. Não quis ser prefeito mas fez muito pela cidade. Fundou e mantem até hoje, a clínica que leva o seu nome, onde apesar dos parcos recursos da região, com técnica aliada ao talento, fez centenas de cirurgias, muitas delas complicadíssimas. Salvou milhares de vidas! Foi professor e diretor do Educandário Oliveira Brito e do Hospital Municipal. Fundou a Santa Casa de Misericórdia, construiu a sede da Maçonaria, criou a Companhia Telefônica que deu origem a implantação da Telebahia conectando Euclides da Cunha com o resto do planeta. Mais tarde, semeou a primeira semente da rádio comunitária ao implantar um serviço de FM que deleitava a comunidade com peças musicais de extremo bom gosto; o dele. 

Não há registro de qualquer momento onde alguém o tenha visto alterar a voz. Talvez o tenha feito alguma vez em defesa de causa justa . O tom cortês e a elegância são suas marcas registradas. Marcas que ficaram indeléveis no coração dos seus imensos amores. Alguns, talvez até folclóricos. Certa senhora casada e de família nobre conta abertamente que aos vinte e um anos apaixonou-se por ele que já passara dos cinquenta. Insinuou-se e terminou por seduzi-lo. Como esta, outras histórias foram levadas a ele que nunca confirmou uma sequer. Sempre responde com um riso disfarçado como o faz outro espécime do gênero, o cantor Tony Bennett; “No comments”. Coisas de gentleman!

Rico, remediado, pobre, Humberto já passou por tudo isso e sempre de cabeça erguida, sereno. Um não tão belo dia D. Felesmina o procura apavorada. Um dos seus irmãos falecera deixando alguns débitos não saldados e os cobradores estavam à sua porta. No dia seguinte ele estava em João Pessoa a bordo do seu luxuoso automóvel Impala. Vendeu literalmente tudo o que possuía para honrar a memória do irmão e tranquilizar a mãe. Feliz, voltou de ônibus para Euclides da Cunha.

“O Pedro era um padre moderno. Já estava até namorando. Um dia eu o chamei e disse: Pedro, acaba com essa proibição burra de mulher entrar na igreja de calça comprida. É até melhor porque assim o malandro não fica olhando para as pernas delas. No sermão do outro dia ele foi lá e liberou a calça comprida.”

Generoso, educou os filhos e contribuiu para o crescimento de todas as suas companheiras. Senão materialmente, pelo menos intelectualmente. Aos oitenta e três anos completados em 07 de junho, Humberto vive atualmente com Zefinha Gois (na foto com a penúltima filha dele, Liliane Lopes Freire) e, apesar de estar se reabilitando de sequelas deixadas por um AVC, continua clinicando diariamente. Essa talvez, a sua paixão definitiva.

                 
Autor: Celso Mathias
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