I.
Era o início de uma tarde de sábado quando o telefone
tocou. Meu marido subiu as escadas que o levavam ao quarto, onde empolgada, eu descobria a dualidade partícula-onda que compõe a matéria na física quântica.
– Qual a senha do seu e-mail?
Lancei-lhe um olhar que misturava despreocupação e
reprovação e voltei à leitura. O livro me enlouquecia ao reconstruir o conceito
de realidade, apontando-a como coisa indefinível, universo participativo que
transmuta diante do observador, se manifestando horas por partículas e horas
por ondas. Caía por terra a divisão de Newton, onde as partículas formavam a
matéria e às ondas cabia constituir aquilo que não era fundamental em si.
– Segura minha mão.
A mão do meu marido era partícula que tremia e suava.
Por um instante, me transformei em onda e fui o frio que brotava de seus dedos.
– Você tem um amante?
Quis mentir. Que diferença faria mais uma mentira entre
todas aquelas que havia inventado em dez meses? E o que era mentira senão uma
das faces daquele mingau de infinitas possibilidades que era a realidade, como
apontava o livro. Paradoxalmente, eu tinha e não tinha um amante.
– Tenho.
Minha confissão causou um colapso na minha existência,
assim como a realidade que se fixa quando observada. Repousei o livro sobre a
cama, a atenção se interiorizou em acusações e explicações que nunca seriam
possíveis. Vaguei no interior de um átomo e feito os elétrons de Niels Bohr, vi
a verdade saltar descontinuamente entre consciência e razão. De repente, quando
menos esperava, ela escapuliu num motim há muito ensaiado que uníssono me
açoitava: adúltera!
Traí uma relação de nove anos, pesava-me a razão.
Contudo não me traí, rebatia a consciência. Adultério é aquilo que acontece
quando nos recusamos a ouvir o que o corpo tem para dizer. Adultério, ad
alterum torum, palavra que vem do latim e significa na cama de outro. Na cama
de outro apunhalei pelas costas o que eu era, bicho morto, renasci.
II.
Não pude chorar, não se tratava de culpa. Meu marido
saiu. A casa permaneceu num silencio de angustia. Estagnei fixa a olhar pela
sacada. Buscava algum desespero e só encontrava sinalizações duras. Estava
feito. A casa nova, os móveis, as brigas, nada me segurara, todos me
compeliram.
Quis amar e amei. Não importava muito em quais braços,
desde que fossem os braços certos. Minha fé precisava de liturgia para se
manter viva, criei um santo para venerar. Um santo que não fazia milagres
porque estes eram de minha responsabilidade. E meu milagre seria separar-me. O
divorcio; uma instituição tão antiga quanto o próprio matrimonio, a dissolução
de laços social, cultural e jurídico. Babilônios, celtas, astecas, gregos,
romanos, todos puderam recorrer à separação. Mas quem podia sedar os seus
efeitos.
A flor de narciso quem sabe? Aquele do mito, que ao ver
sua imagem refletida num lago, se lança numa busca desesperada pelo outro, e ao
emergir descobre que não era o outro, mas sim, ele mesmo o objeto de seus
sentimentos. Narciso mergulha e morre.
Parei no alto do penhasco marrom e cor de abóbora do
meu sonho e me lancei ao mar, olhei para o significado daqueles nove anos. Não
foi fácil conceber que estar junto doía porque em algum instante deixei de só
ser. Em que momento essa massa sem formas, de regras e negligencias me abocanhou?,
não sei. Meu amante era um reencontro, o mergulho no outro para emergir em mim,
uma forma de não aceitar o fim.
Nove anos e o fim.
Éramos tão crianças… Todos os romeus e julietas estão
fadados a morrer por não saberem assistir ao próprio crescimento, fazendo
pactos para se manterem estreitos. Tanto amor num só olhar e agora o fim. Onde
foi parar aquele tempo onde o mundo eram dois corpos a serem descobertos? Tanto
amor e fim. Uma intenção simples de querer bem e fim. Onde está o amor agora,
minha angustia? Atolado na avareza de nosso amadurecimento?
Era o fim e eu tentava velar meus mortos. O telefonema
revelou-me o óbito. Velar os mortos. Sentei-me e espremi algumas lágrimas; não
dos olhos, porque esses não eram a sua morada. As lágrimas vinham do estômago
que se contraia num nó só.
Há uma fronteira que nenhuma mulher pode cruzar. As
transpus para deixar de ser menina, do contrário ainda seria uma porção de
carne, músculos e ossos, vazios, restritos. Fui além, decidi que merecia viver.
Pela primeira vez, vi-me por dentro num espelho.
Confessei a mim desejos que condenava; condenei-me. Daquele instante em diante,
seria eu mesma.
Em busca de mim rejeitei todos os valores que me foram
apresentados. Dignidade, decência, moral, orgulho, todos se apequenavam diante
da fome voraz por vida.
Distraída feito voyeur escondendo-se do mundo,
percebi-me. Havia me acostumado a fingir não ver, percebi-me de surpresa, feito
uma figura num quadro que retribui o olhar. Assustei-me, caí, mas mantive o
comportamento daqueles que vêem o mundo como uma faz de conta. Fiz de conta que
era imaginação e aceitei a brincadeira. Não havia como me machucar;
enganava-me.
III.
Mais uma vez a porta bateu, encerrando-me agora num
sepulcro cheio de sombras. A pena era aplicada: a insuportável vida latejava.
Um passo fazia a carne vibrar em toneladas de energia,
olhar pedia uma força que a consciência não liberava. Agora, sim, a culpa.
Redimi-me ouvindo o que tinha para ser dito em ligações
que cortavam a madrugada em xingamentos. Nenhum sentimento me tomava, eu era a
pura abstração aprisionada no sentido de cada palavra: fraca, inconstante,
volúvel, insatisfeita; porém desperta.
Não havia como me esconder da própria existência. A
prova do meu crime eram as marcas em meu corpo. A ferro e fogo imprimi-as sobre
a pele como castigo por ousar existir. Não, não havia como dizer que não era
nada, contudo só valeria a pena se fosse amor.
Fechei os olhos em busca de amor num dos quartos de
motéis que se misturavam em minhas lembranças.
Meu amante nu, sentado à beira da cama, sorria enquanto
estendia as mãos entregando-me um copo de suco de laranja. Deitei-me de bruços
ao seu lado, enquanto ele acariciava os cabelos que se esparramavam por minhas
costas.
– Acho que nunca amei ninguém, ele me dizia.
Um perfeito estranho com o qual me sentia à vontade. Um
homem que mal me conhecia e não fazia questão de me conhecer. Eu também não
queria perguntar quem ele era, queria apenas sua mão escorregando por minhas
costas nuas, queria o desejo refletido em seus olhos, queria o mistério que sua
boca encerrava. Queria descobri-lo sem palavras.
Sua partida não causou saudade, causou estranheza, como
letras sem significado num livro. Ele fechou os olhos, e me cegou. Valores,
princípios e idéias, ele trouxe o vácuo que fez o mundo perder todo o sentido.
Sem querer, a descoberta de hábitos que não eram meus, deuses que não era meus,
mas que estavam lá, em algum lugar de mim.
Amor era sentimento nada abstrato que não se contenta
em ser palavra; uma vez chamado ganha forma, vida, como havia me ensinado
Virginia Woolf. Amor é a oração que nos faz dar um passo adiante, ato de fé.
Tomei coragem e disquei os números.
– Sua esposa ligou para o meu marido.
Meu amante ficou mudo e depois negou. Sua esposa estava
deitada sobre a cama, remoendo a dor por ter lido nossas confidências. Sabíamos
disso, mas em nome do que iríamos desestabilizar a mentira que a fazia
sentir-se segura?
Pus-me de joelhos num altar sem velas. Espaço vazio de
desejo morto, sem pernas. Arrastava-me nas afiadas ruas da lembrança, o meu
deus se misturava a mim, abençoava-me, me tornava humana.
Sorte. Há pessoas que levam a vida inteira sem perceber
que não têm vontades, desejam o que esperam que desejem. Meu deus é feito de
carne e osso, repleto de imperfeições e tristezas, meu deus finge ser feliz
porque almeja ser feito de éter; e é. O meu deus precisava ganhar sentido.
IV.
Vaguei pelo quintal num mês de separação. Quintal que guardava poeira, mato que crescia entre as pedras, subia pelas paredes. Quintal que sussurrava em ameaça: a vida reivindica seu espaço, não há como escapar!
Uma teia de aranha cortava o teto da garagem. O
perverso inseto negro estava lá, longas pernas desconfiadas. Negra e ágil.
Negra. Negra e bela. E com sua beleza caminhava devagar. Dia após dia
alimentei-a com baratas e moscas mortas. A aranha causava-me arrepios no
interior da pele, punha cada pêlo em polvorosa. Seu movimento cuidadoso me
seduzia; havia algo de atroz que seqüestrava meu olhar. Ela era uma aranha, um
ser negro venenoso de medo, com pernas longas de raízes de medo. Mas medo do
que?
Todas as noites ela se arrastava em busca dos insetos
que sua teia colhia durante o dia. Medo de quê, se essa traiçoeira agia pelas
costas, recolhia-se amedrontada ao canto do telhado sempre que sua teia
balançava.
Medo, ela tinha medo e passou a vida inteira no canto
do telhado até que um pássaro, num vôo premeditado a capturou. O fim, no bico
de um passarinho, bicho frágil que não causava medo. O passarinho com o seu
canto não tinha medo de viver. Voava e mesmo que uma pedra o fizesse cair dos
céus, ele voara a vida inteira.
Eu não era passarinho, mas feito o mito do passeio das
almas de Platão ganhei asas, num amor que me trouxe lembranças de
acontecimentos que vi quando andava pelo paraíso. As asas me tornaram
anjo-pássaro-purificado. Anjo capaz de amar; amor é tudo o que move, diz a
letra da canção. Eu me movia.
Tanto amor e fim. Fui embora. Ficar só era desejo
latente. São Paulo, a maior metrópole da América Latina, cidade fria e cruel me
acolheu. Fui embora porque nem amor nem ódio seguravam-me de pé. Fui-me porque
não estava mais perdida, perde-se aquele que quer se encontrar, me encontrara.
Restava saber o que era aquilo em vertiginosa existência à minha frente.
Aquilo era alguém que olha pela janela, num vazio
tremendo, buraco sem passado, barco à deriva, folha ao vento, alguém que olha
pela janela em busca de vida, de outras histórias, alguém que ri quando o
marido desajeitado varre a casa com afinco, que se comove quando a mãe sai à
varanda em busca de ar com o bebê nos braços, a amamentá-lo, alguém que se
distrai com o porre dos adolescentes na festa do apartamento em frente, alguém
que ouve o galo dos chineses da mercearia suja cantar, transformando a noite em
dia. Que alívio, o dia!
A claridade trouxe a miragem de uma bruxa com lenço
amarrado na cabeça e calças mijadas, com pés de unhas grandes e enegrecidas que
pisavam na calçada suja, agitando-se de um lado ao outro em gritos de coisas
incompreensíveis, numa voz ritmada de menina que destoava das rugas do rosto.
Foi a última imagem que vi antes de me atirar do nono
andar, do numero 180 da Barão de Campinas. Uma queda rápida na ansiedade de
descobrir quem eu era. E eu não era a mesma pessoa que olhou para baixo e teve
fé ao não acreditar. Pisei no nada sabendo que aquele vácuo não me sustentaria.
No dia anterior, numa esquina, uma moçoila, de saias curtas e barriga saliente
fez-me um convite à diversão; as suas costas uma escadaria encardida. Um homem
vestido de mulher, tão desencontrado quanto eu naquela vida.
Parei. Havia prazos que não poderia cumprir, não estava
pronta; amores que não poderia amar, não estava pronta. Na vida, eu era uma
prostituta sem malicia que não poderia sobreviver.
Fechei os olhos, estava no coração de São Paulo, com
suas ruas que levavam a canto algum. Sentia batidas pulsarem em minhas têmporas
e inundarem meus ouvidos. Tum-tum, tum-tum, tum-tum, Srvam, bibi-bibi. Uma
pomba parou perto da janela, nos encaramos por alguns instantes, não nos
reconhecemos. Cansada ela se lançou ao ar alçando vôo para longe. Não muito.
Várias outras apareceram e seguiram o mesmo caminho.
Algo acontecia dentro de mim que não sabia explicar.
Era uma mutação que horas me envelhecia e horas me punha insana. Não cria mais
no que via, podia passar através de portas, mas esse encontro doía. Doía porque
me modificava e porque não queria me misturar à madeira da porta, madeira
morta. Queria passar através dela.
Lá embaixo os carros continuavam a enviar sangue ao
coração de São Paulo numa música sem ritmo que entontecia.
Lá na frente, meu marido caminhava de um lado ao outro.
Passos de um homem que mergulharia com maestria num novo corpo, descobrindo com
sutileza outros prazeres, avançando e conhecendo.
O que me tortura é o bálsamo de meu coração. Meu marido
não é mais o que foi; a criança ingênua que dormiu em meus braços, que chorou
sobre meu corpo não existe mais. Morreu quando meu sofrimento me renasceu.
Lá atrás, deitamos numa cama de areia e o céu nos presenteou com estrelas que caiam. Um pedido!
– Alguém com quem eu possa sentar e olhar a linha do
horizonte.
É possível tocar um coração fragmentado. Minha alma foi
banhada com lagrimas pontiagudas que se perderam num instante que eu não
poderia alcançar. Era longe, tempo de terra seca que não quer ver o mar contido
num olhar, aquele primeiro que nos uniu.
Marejou, meu corpo inteiro marejou. Quem rachou o céu
que nos protegia? Sim foi amor, agora posso ver na pontinha do rastro do cometa
que nos transformou.
Sindia
Santos é colaboradora de Outras Palavras e Biblioteca Diplô. Jornalista,
pós-graduada em Jornalismo Literário pela ABJL (Academia Brasileira de
Jornalismo Literário), adora narrativas e é movida por um imenso encantamento
pelo ser humano e tudo o que ele é capaz de criar. Atualmente mora no Rio de
Janeiro. Mantém o blog Fiandeira ["Fia quem confia que o algoodão pode
virar linha, que linha entrelaçada é tecido, palavra, texto"]