Lembro do quintal, da goiabeira, das bananeiras e da
mata rala de onde se podia colher e pode até hoje, Boldo, Capim Cidreira, Erva
Doce... e da velha Marocas sempre magra e com roupas escuras.Lembro de D.
Lelinha morena rechonchuda , doce e poderosa. Era a titular do Cartório da Vara
Criminal e uma quase viúva. O marido, assim como seu pai,marido de Marocas,
desapareceu no mundo logo depois do casamento e nunca mais voltou.Acho que ela
chegou a receber a Certidão de Óbito dele pelos Correios...
Mas e o nosso personagem principal, o Nelson? Bem, o
Nelson aprece na minha memória bem depois dos personagens citados. Quando nasci,
acredito que ele já era caminhoneiro, profissão posteriormente adotada por meu
pai que à época alugava bicicletas. Como caminhoneiro, sua freqüência à casa
materna ficava resumida às estadas em Euclides da Cunha. Além do mais, ao
esposar a bela Maria Eliza, mudou-se creio eu, para uma das casas da Rua da
Igreja.
Nelson é filho de Marocas, neto do famoso Capitão
Dantas e sobrinho de Zeca Dantas, outro personagem incrível e longevo. Deixou
esse mundo aos quase cem anos ainda lúcido e “piadista”. Maria Eliza veio de Serrinha
com os pais Amélia e Mariano Ribeiro. Lembro-me dele elegante e de terno branco.
Não vivia o tempo todo por aqui. Tinha atividades em outros lugares e dizem as
más línguas que levava uma vida digamos,boêmia.Charme não lhe faltava!
O pai de Nelson era de tucano como o meu pai. Chamava-se
Benjamin Miranda Bastos. Esposou Marocas, filha de tradicional família
euclidense e viveu por cerca de dez anos ali na centenária casa da Rua de Cima,
até que um dia fez uma viagem ao Rio de Janeiro e jamais voltou.
Por volta dos anos 50, Nelson já era um dos mais bem
conceituados caminhoneiros da região. Cortava esse Brasilzão de Norte a Sul e
de Leste a Oeste. Homens como ele eram para a população das pequenas cidades do
interior do país a única comunicação com o mundo civilizado, com o novo. Eram
eles que traziam as mercadorias, os tecidos finos, os perfumes, a moda e
principalmente a sedução. As moiçolas se encantavam com eles. Nelson era um
deles na melhor essência da palavra, aliado ao fato de ser considerado um homem
valente destemido e sistemático. Para alguns, “cismado”.
E foi por causa dessa “cisma que Nelson já passando dos
quarenta anos, resolveu revirar o Rio de Janeiro procurando o velho Benjamin, seu
pai, para lhe “tomar umas satisfações”. Foi na Lapa que encontrou o velho
rodeado de cervejas e de algumas “senhoras”. Entre esclarecimentos e lágrimas
se embebedaram por alguns dias e Nelson voltou para casa meio desconfiado mas
com a certeza da missão cumprida. Foi a última vez que se viram.
Antes de conhecer D.Maria Eliza, o intrépido viajante
já deixara sua marca na vizinha Tucano: Francisco Bastos,seu primeiro filho que
veio a falecer em Salvador aos quarenta e cinco anos de idade em circunstâncias
até hoje não totalmente esclarecidas. Mas essa não foi a sua única grande
tristeza dos oito filhos concebidos com Maria Eliza, o sexto deles, Juracy Ribeiro Bastos aos vinte e três anos, desapareceu tragicamente num acidente de
moto.
Após abandonar a vida de caminhoneiro, Nelson instalou
aquela que seria na época a melhor oficina Mecânica da cidade -Oficina Taurus-
que funcionava no local onde hoje está instalado o Hotel Mirante. Ali fez
história e contou estórias. Aos filhos, quase todos, ensinou o ofício e com a
renda dali retirada os criou, educou e os fez cidadãos.
Da “Taurus” também tirou dinheiro para suas impagáveis
farras no Bar de Zezito, o Café Society. Quantas vezes o vi ali tomando
cerveja, ouvindo e contando piadas com uma turma inesquecível.Seu tio e quase contemporâneo,Zeca
Dantas, Edson Lima, Edmundo Esteves,meu pai, meu avô e meu tio, Dr.José Mathias com
quem Nelson tinha uma relação muito especial.Vivendo em cidades diferentes e distantes,quando se encontravam,sempre trocavam presentes.Na verdade, o doutor e o mecânico
e ex-caminhoneiro, tinham os mesmos princípios, os mesmos valores.Por isso se
gostavam e se respeitavam tanto.
Das “cismas” de Nelson que podemos muito bem traduzir
por sistemática, lembro-me aquela do cigarro. Fumante inveterado e já perto dos
sessenta anos de idade, esmaga o cigarro ao chão e com a determinação que
sempre o marcou afirma: “Nunca mais ponho essa porcaria da na boca”. Nunca mais
o fez. Aos setenta anos, saudável como sempre e apreciador de uma cervejinha,
escorregou durante a festa de casamento de um dos filhos tomando um leve tombo.
Levantou-se, ajeitou o cabelo e dirigiu-se a alguém que por ali passava. ”Tá na
hora de deixar a cerveja”. Foi a última da vida.
Hoje Nelson completou 95 anos e tem um saldo de muitas
histórias que ainda não podem ser contadas. Todas honoráveis, diga-se de
passagem.Tem ainda muita saúde, leveza, um senso de humor inato e um batalhão
de filhos, netos e bisnetos,todos carregando a sua marca de determinação e principalmente
honradez.Feliz aniversário a todos os Bastos que podem comemorar os 95 anos do
Nelson. Que possam muito mais!