A origem das
agressões pode não ser chinesa. Estas revelações, que parecem saídas de um
livro de ficção científica, estão numa matéria publicada ontem pelo New York
Times, que as atribui a uma fonte envolvida nas investigações dos ataques. O
autor é John Markoff, repórter e
escritor especializado em computação e informática
Embora ainda não confirmadas, as informações são muito
verossímeis. O motivo de fundo declarado pelo Google para sua saída parcial da
China — censura a seu serviço de buscas — não pareceu convincente. As
restrições à liberdade existem há anos (e são severas, embora contornáveis).
Mas os 500 milhões de usuários da internet na China parecem compensar o
incômodo. Aos críticos fundamentalistas no Ocidente, a Google lembrava que sua
presença na internet chinesa pesa a favor da ampliação das liberdades. Mesmo
agora, sua retirada parece deixar margem a uma recomposição: a empresa migrou
para Hong Kong, que desfruta de um
regime jurídico especial mas é, efetivamente, território chinês.
Porém, o incidente da invasão, revelado em janeiro, foi
suficientemente dramático para mobilizar a secretária de Estado dos EUA,
Hillary Clinton, que pediu ao governo chinês “transparência nas investigações”.
As especulações de John Markoff, possivelmente verdadeiras, ajudam a
compreender o que pode ter ocorrido.
O ataque maciço dos hackers ao Google durou menos de 48
horas (uma “ação-relâmpago”, considera a reportagem), mas foi cuidadosamente
planejado. Primeiro, os invasores conseguiram acesso ao Moma, o diretório que
reúne informações sobre centenas de engenheiros de programação do Google em
todo o mundo, e suas respectivas atribuições.
Estes dados permitiram identificar os responsáveis pelo Gaia, um sistema cercado de mistérios.
Seu nome presta homenagem à deusa grega da Terra. Referências públicas a ele —
e breves — haviam sido feitas publicamente uma única vez, há quatro anos.
Os hackers não tiveram, aparentemente, acesso às senhas
de centenas de milhões de usuários dos serviços Google. Mas o ataque levou a
empresa a fazer, preventivamente, inúmeras alterações de segurança no sistema.
Seu próprio nome mudou: ele é, agora, o Single Sign-On, ou “Assinatura Única”.
Que buscavam os hackers? Da matéria, emergem duas
hipóteses. Numa, eles pretendiam inserir um “cavalo-de-Troia” (uma janela
secreta, para roubo de dados) no Gaia e replicá-la, em seguida, em dezenas de
centros de dados que o Google espalhou pelo mundo. Nesse caso, violariam a
chamada “computação em nuvem” da empresa, um arranjo no qual uma única brecha
pode causar danos desastrosos. As chances de este intento ter sido alcançado
porém, são desprezíveis — inclusive porque a descoberta do ataque foi
relativamente rápida.
Também é possível que o objetivo dos hackers fosse ter
acesso vasto aos algoritmos nos quais se baseiam os programas do Google — ou
para facilitar ataques futuros, ou como apropriação de segredos comerciais.
Nesse caso, a chance de terem sido bem-sucedidos é real — e talvez explique a
pressa com a qual o Google abandonou o Gaia.
A fase final do ataque teria sido perpretada de maneira
curiosa — e em seus detalhes reside a dúvida sobre a verdadeira origem dos
autores do ataque. Ofereceu-se a um engenheiro do Google na China (num instante
em que usava o MSN, da Microsoft…) o link de um site envenenado. Ao clicá-lo, o
funcionário abriu acesso a seu computador e aos de um grupo crítico de
desenvolvedores na própria sede do
Google, na Califórnia. Ao final, os hackers conseguiram chegar ao
repositório de software compartilhado pela equipe.
O rastreamento dos ataques levou até dois campi
universitários na China. Mas o próprio New York Times ressalta que disfarçar o
local de onde atua é algo inerente à ação de qualquer hacker. A tarefa poderia
ter sido executada com facilidade por peritos capazes de produzir uma invasão
como a realizada. Os dados recolhidos na Califórnia foram transferidos
provisoriamente para servidores de aluguel mantidos por uma empresa no Texas —
a Rackspace, evidentemente não informada a respeito. De lá, foram novamente
deslocados, não se sabe aonde. Embora não revelados pela maior parte das
vítimas, ataques semelhantes atingiram cerca de vinte empresas que lidam com
alta tecnologia e atuam na China.
Tanto os fatos que começam a ser revelados quanto às circunstâncias
que os cercam são um convite a refletir sobre a proteção dos dados na era da web2.
0 e, além disso, ao futuro de empresas como o Google.
Seu papel tem sido, até o momento, amplamente
democratizador. Seu modelo de negócios exige radicalizar o caráter da internet
como espaço para trocas não-mercantis. De correio eletrônico a programas
sofisticados — passando por espaço para armazenamento de textos e material
multimídia, agendas, buscas na net e nos computadores pessoais, digitalização
de livros e obras de arte — quase tudo o Google oferece sem cobrar (a imagem
que ilustra este post é um detalhe do olho
do pintor Albrecht Dürer, num autorretrato existente no Museu do Prado,
segundo fotografia do… Google Earth). Sua ação ajuda a espalhar um padrão de
gratuidade na rede.
Suas receitas conhecidas são pulverizadas: milhões de
usuários, de megaempresas a prestadores individuais de serviço, anunciam em
suas páginas, para tirar proveito ao mesmo tempo de sua imensa audiência e
capacidade de entregar cada mensagem publicitária a seu público específico.
Além disso, o Google mantém abertos os códigos de grande parte de seus
programas (fecha os “estratégicos”), contrata ativamente desenvolvedores de
software livre, lança versões Linux de seus programas e plataformas
simultaneamente às versões para sistemas fechados (que ainda povoam um número
muito maior de computadores).
Mas fora da internet e sua poesia, a empresa é forçada
a lidar — e interage, obrigatoriamente — com uma realidade muito mais brutal e
selvagem. A ação de Hillary Clinton, no caso envolvendo a China, sugere como
são vastas as relações entre a empresa e o governo norte-americano. Empresa de
capital aberto, o Google está sujeito a uma aquisição. Quais seriam as
motivações de seus controladores? Mesmo no formato atual, que usos —
comerciais, publicitários, de invasão de privacidade — podem ser dados às
informações cada vez mais vastas que a empresa acumula sobre centenas de
milhões de pessoas?
Diante destas questões, é inevitável propor um desafio
teórico. Que medidas (descarte “estatização”…) seriam capazes de fazer do
Google um bem comum da humanidade? Enquanto isso,os seus fundadores,Larry Page e Sergey Brin,quando não
estão passeando no seu Boeing 777, o fazem a gravidade zero .