O pai de um filho que não é seu. O novo marido que a
mãe escolheu. O homem que tem de gostar das crianças com quem vai viver e
muitas vezes não pode viver com os seus próprios filhos
A importância deste grupo social é tal que começam a
surgir estudos sobre a realidade dos padrastos. Até a algumas décadas, eles
eram, na maioria, a consequência da morte do pai biológico. Uma figura distante
que sustentava a família. “Era o padrinho ou o tio”, como explica José Gameiro.
A novidade é que, desde os divórcios, os padrastos
passaram a ter que competir com a imagem de um pai vivo. Qual é o papel do
padrasto? Que espaço a mulher lhe reserva na família? A quem cabe manter a
autoridade? A pesquisadora Susana Atalaia, está concluindo um estudo sobre o
lugar do padrasto no quotidiano familiar. “Os padrastos fazem depender os seus
papéis da atitude do pai biológico. Se não houver concorrência, melhor”,
conclui o trabalho.
Tudo porque, quando não há laços biológicos que legitimem
a relação, alguns homens sentem-se fragilizados na sua masculinidade. “A figura
masculina está associada à autoridade, que, neste caso, é delegada”, afirma
Susana Atalaia. Conclusão confirmada pelos três padrastos retratados. José
Gameiro reforça a tese. “A pior coisa que se pode dizer a um padrasto é: ‘Não
és meu pai’”.
Nos primeiros anos, os dias seguintes aos
fins-de-semana com o pai eram terríveis. Era a guerra. Se o confronto se
tivesse prolongado, não teria aguentado. A certa altura tive uma proposta para
ir para o estrangeiro. Ponderamos também que seria uma boa maneira de termos um
pouco de paz. Eles passaram a vir só no Verão.
Nunca me trataram por pai. Lembro-me de terem
perguntado ao Ricardo, já adolescente, quem era o pai, e ele ter dado o meu
nome. Tive algumas rusgas com a Catarina. Nunca houve rupturas.
Quando voltaram, para estudar na universidade, houve
uma reaproximação com o pai. Hoje fazem coisas juntos. Acho muito bem. Durante
o crescimento tiveram o azar de não terem tido dois pais. Houve um padrasto
presente e um pai ausente. Cometi a injustiça de confrontá-los com isso.
Arrependo-me. Aquela frase: ‘Se te chateia estar aqui podes ir viver com o teu
pai’, eu disse. Quando a nossa filha nasceu, a relação não se alterou. Sempre
tive o cuidado de ter com todos a mesma medida. Hoje, a Catarina já tem filhos.
Tratam-me por avô. Digo que sou ‘avô-afetivo’.
Não posso dizer que o amor que sinto pelos meus
enteados é paternal. A relação de sangue marca, mas pode gostar-se de forma
muito semelhante. Também não gostamos dos filhos biológicos da mesma maneira.
Talvez de meu, tenham herdado boa parte dos valores, certa maneira de olhar a
vida… Mas não têm o meu sangue. Isso nunca se poderá alterar. Tenho pena que
não sejam meus filhos. “Odeio a palavra padrasto.” Expostos à partida, estes
homens sabem que precisam entrar na relação conquistando a afeição dos
enteados, o que nem sempre é fácil. “Há o mito da família unida — ‘finalmente
isto vai correr tudo muito bem’ — e pensam logo uma coisa delirante que é:
‘estas crianças que não me conhecem de lado nenhum me vão adorar’. E muitas
vezes são postos no lugar pelos enteados”, explica o psiquiatra. O mais ingrato
desta situação dúbia é que o padrasto tem de gostar dos enteados, embora estes
não tenham de gostar dele.
Um dos problemas enfrentados é que “há pouca história
destas novas famílias e, por isso, não há ainda modelos alternativos
disponíveis”, diz Gameiro. Cabe assim às mulheres decidirem qual o espaço de
atuação do padrasto. “Num primeiro tempo, ela aguenta. As relações são muito
tensas no início. Depois elas têm de optar quem vão defender e defendem sempre
os filhos. Há perigo de ruptura das relações conjugais”, conclui.
Nestes contextos, a relação entre padrastos e enteados
depende sempre de fatores externos. Além da mãe, cabe sempre ao pai biológico
determinar até onde o padrasto consegue ir. “A adaptação é mais fácil quando o
lugar do pai biológico está vago, não há confronto. Mesmo que esteja vivo.
Nestas situações, o padrasto assume-se e ocupa o espaço”, afirma Susana Atalaia
porque “mais do que ocupar um lugar deixado vago pelo pai, nos tempos que
correm, o principal desafio lançado ao padrasto é o de construir o seu próprio
lugar na nova família”.
JORGE
CÂNDIDO 49 anos, empresário “Se a Flávia fosse minha filha
biológica, teria sido tudo muito diferente. Tenho um filho de 26 anos. A Flávia
tem quase 17 anos. Vive comigo desde os três. O pai dela sempre foi ausente.
Nunca pagou a pensão e depois de ter tido outra filha afastou-se ainda mais. Às
vezes ele telefona e ela pede-me para dizer que não está. Gosto de ter uma
menina como enteada.
Trabalho muito, nunca janto em casa. Tenho uma pequena
empresa de tratamento de águas. Gosto de jogar futebol e de beber umas cervejas
com os amigos. Ela é mais parecida comigo do que o meu filho. Fala alto, não
guarda nada. Pode ser da personalidade, mas também pode ser da convivência
comigo.
Nunca dei uma palmada em Flávia nem em meu filho.
Sempre soube que seria uma pessoa estranha e fui entrando devagarzinho. Ela
nunca me rejeitou, mas houve momentos em que me senti colocado de lado.
A frase ‘você não é o meu pai’ nunca me foi dita. A mãe
da Flávia separou-se quando tinha 25 anos e assumiu a filha sozinha. Para ela,
era um desafio provar que podia educar a filha. O nível de vida delas não
depende de mim. No Dia do Pai, a Flávia fazia sempre um presente para o pai e
outro para mim. Depois deixou de fazer para o pai. Ainda hoje, não se esquece
de pedir dinheiro à mãe para comprar um presente para mim.
Ser padrasto é muito diferente de ser pai biológico.
Gosto muito da Flávia, mas é diferente do que sinto pelo meu filho. Se calhar
se tivesse ficado com ela quando era bebê… acho que mesmo assim seria
diferente.
A Flávia tem muita cumplicidade com a mãe, mas muitas
vezes é minha a palavra que conta sobre as saídas dela. A mãe diz: ‘Vai falar
com o pai’. Chama-me pai. “Sempre fizemos tudo a três”. A nova tendência é que
as famílias recompostas organizem o seu quotidiano entre duas casas. O modelo
da guarda conjunta em regime de residência alternada, prevê que as crianças
passem o mesmo tempo com o pai e com a mãe. Apesar de estes casos representarem
ainda um número residual, nos últimos anos, esta prática tem vindo a ser cada
vez mais experimentada, sobretudo nos meios urbanos.
A dificuldade, contudo, é que “se as coisas não estão
bem conjugadas, pode criar-se uma dupla vida em que as mães se organizam com os
seus filhos e o padrasto não interfere e, quando ficam sozinhos, vivem
novamente uma situação de namoro”, explica Gameiro. Susana Atalaia concorda:
“Cria-se uma parentalidade paralela, em que a mãe assume sozinha as
responsabilidades dos filhos ou, na melhor das hipóteses, reparte-as com os
ex-companheiros”.
Por resolver ainda está o aspecto legal que suporta a
figura do padrasto. “A invisibilidade destas figuras parentais é uma realidade
na generalidade dos países ocidentais. O sistema de parentesco ocidental apenas
permite a existência de um pai e de uma mãe para cada criança”, explica a
pesquisadora. O padrasto é, assim, o elo mais fraco.
JORGE
LAMPREIA 53 anos, professor universitário “As minhas filhas
foram apanhadas de surpresa pela separação. Um dia anunciei: ‘amanhã saio de
casa’. Foi em Abril de 2001. A Maria do Mar tinha 19 anos, a Violeta 16. Quase
um ano depois, fui viver com a minha atual mulher, que tinha também duas
filhas: a Maria Ana, com 10 anos e a Beatriz com seis. Houve três episódios
difíceis com a minha enteada mais velha. Ela rejeitava-me, havia gritos e
choro. A minha reação foi sempre a mesma: sair de cena.
O que me deixa feliz é pensar que consegui com as
minhas enteadas o mesmo que tinha conseguido com as minhas filhas:
proporcionar-lhes uma ambiência solta e desanuviada. Gosto que tenham liberdade
para se fechar no quarto ou assistirem a TV em família, sem sentir que têm de
cumprir papéis.
A minha enteada mais velha pergunta à minha filha Maria
do Mar, porque é que gosta dela e da irmã. A minha filha responde que elas não
têm culpa de nada e que, na separação, elas foram o que de mais positivo lhes
aconteceu. Foi mais difícil estabelecerem laços com a minha mulher: a mais nova
nem a cumprimentava, mas nas primeiras férias, já estávamos todos juntos .
Nunca ouvi a frase sacramental: ‘não é o meu pai’. Mas,
se me perguntam o que é ser padrasto, não sei responder. Nunca me passou pela
cabeça entrar em discussões sobre quem é melhor pai, eu ou o biológico. Não
tenho de substituir ninguém. Houve uma situação em que fui desautorizado pelo
pai sobre uma decisão conjunta entre as duas famílias. Cheguei a ficar com febre.
Avisei a minha enteada que não se podia repetir. Não se repetiu. Podia ter
corrido mal. Fui duro com ela. Disse-lhe que nunca tinha passado por uma
situação semelhante com as minhas filhas.
O quotidiano é feito de bom senso. É só olhar para elas
e zzz, para um lado, zzz, para o outro e ir direcionando. Sou um homem de
sorte. Não me esforço para que elas gostem de mim. Se hoje me separasse da
minha atual mulher ia ter de encontrar uma forma de continuar a vê-las. “Neste
momento, a nossa relação é muito profunda”.