Eu cresci a ver woodysmos e a amar woodysmos. A
primeira vez que vi Nova Iorque como deve ser vista foi com o plano de abertura
de Manhattan e as chuvadas sonoras
da rapsódia de Gershwin. Vi todos os filmes dele e comprei todos os livros. Li
as entrevistas (raras nesse tempo) e adquiri a “New Yorker” cada vez que um
texto vinha anunciado (nunca fiz isto por John Updike). Fui ao Carlyle ver o
clarinete. Woody Allen tinha uma inteligência pós-existencialista e pós-moderna
e pós-tudoista que reunia o melhor da cultura literária e da tradição
filosófica européia (na versão e o melhor do humor intelectual judeu
nova-iorquino (na versão original). Um tipo cheio de Piadas em Pensando bem é a
linguagem da síntese da alta cultura alemã com a média da cultura judaica.
Woody é um judeu americano, norte, costa Leste, Brooklyn nascido, Manhattan
localizado. Pensando bem, uma grande mistura.
Mistura que se transformou no mais bebido na segunda
metade do século XX nos salões bem pensantes das capitais da Europa e da
América (só uma) onde as senhoras queriam ser Annie Hall para o seu Alvy Singer
e os homens queriam ser “the strong silent type” que Allen satirizava. As
mulheres preferiam um Woody palrador e inseguro, baixote e narigudo, sexual e
genial. Não havia entrevista em que uma estrela não anunciasse a sua
candidatura a Mrs. Allen. Diga o nome do homem mais sedutor do mundo: Woody
Allen. E o mais bonito: no seu gênero, Woody Allen. E o mais misterioso: Woody
Allen. Mulheres como Jacqueline Bisset
diziam isto. O homem era o James Bond das inteligentes. Tinha que acabar mal.
Eu adorava os filmes e os livros. Uma das maiores discussões da minha vida foi com uma criatura de sexo oposto que detestou “Annie Hall”, um sinal inequívoco de desconforto cosmogónico. “O Episódio Kugelmass”, uma história em que o Sr. Kugelmass (massa de kugel, receita judaica) professor de literatura e maçador encartado aterra em Yonville à procura do tempo perdido e trai a legítima com Madame Bovary é tão imortal como “Um Dia Perfeito para o Peixe-Banana” de J.D. Salinger. Para não falar na “Prostituta de Mensa”. Ou lembrar aqui a “Lista da Lavandaria de Metterling”, uma peça de erudição.
Quando ele foi buscar a ninfeta Hemingway para contracenar com a Sra. Rampling devia ter desconfiado; a relação moral e a parceria intelectual com Diane Keaton salvaram as aparências. Woody gostava de raparigas numa idade em que ainda podia.
O de Mia Farrow como mulher e
musa foi o princípio da decadência. Mia fora roubada a uma ideia e um filme de
Polanski, outro prevaricador do gênero Humbert Humbert. Os filmes ainda eram
bons, ótimos mesmo (“A Rosa Púrpura”, etc.) o que não era tão boa era a atrás,
que acentuava aquela trágica mania para deixar de ser Woody e passar a ser
Fellini ou Bergman de segunda. Mia era a Liv Ullman de dramas com vista para
Central Park, ideias liberais, monomanias, hipocondrias, pequenos adultérios e
comiserações. Felizmente para nós, não deixava de ser um woodysmo. Quando traiu
Mia Woody regressou ao esplendor, o que fez com “Mighty Aphrodite”.
Até ao escândalo com a filha adotiva. E a América sendo a América não lhe perdoou a
espécie de incesto, que o separou de Mia, do filho que ambos tiveram (um sobre
dotado que não fala com o pai) e da reputação. Casou com a coreana, que parece
ter envelhecido mais do que o marido. Woody anda agora como Orson Welles,
filmando na Europa. É amado pelos franceses como Jerry Lewis, dizem os
americanos. Woody odeia Hollywood e nunca lá pôs os pés, num sartriano manguito
ao Óscar. A academia não gostou. Ele ainda menos. Era impossível continuar a
exigir obras-primas todos os anos e o número final é o mais elevado de sempre
na história do cinema, com exceção de John Ford. O pior é que Woody Allen está
a deixar de ser Woody Allen. Em “Vicky Cristina Barcelona” perdeu a cabeça e
fez um filme idiota. Parece obra de epígono. O último livro de histórias, o
único publicado em 27 anos, é uma maçada pior do que o Sr. Kugelmass. “Mere
Anarchy” (Random House, 2007). É como se Woody se fundisse com Salman Rushdie e
ambos se estragassem, derretidos em adjetivos, paródias, desperdícios e tolices.
Nem quando recupera o pastiche a um escritor russo, o velho Dostoievski em “The
Rejection”, Woody consegue aproximar-se do que foi. Como ele escreve, “on a bad
day you can see forever”. Woody Allen tem metabolismo acelerado e devia
divorciar-se.