Que as suas obras tivessem, antes de tudo, um impacto de decreto
no sistema nervoso do espectador. Era essa a metaprimeira de Francis Bacon.
Atingiu-a sempre. Desde os anos 40, quando começou a expor, até depois de sua morte, em 1992. Começou por causar horror e acabou por receber a admiração
do mundo artístico. A maior antologia dedicada ao pintor, que na semana passada
foi inaugurada no Museu do Prado, em Madrid, no ano em que se comemora o
centenário do seu nascimento, é mais uma prova disso. Organizada em 11núcleos
(que obedecem a uma ordem estritamente cronológica), a mostra, patente até 19
de Abril, pode mesmo ser vista ao ritmo das pulsações cardíacas que cada quadro
acelera ou diminui ao ser olhado.de
energia. A arte também se vive. “Three
Studies for Figures at the Base of a Crucifixion”, de 1944, fixa-se na
retina à entrada da primeira sala. “Animal” é o título deste primeiro núcleo
expositivo. Estamos perante o cerne de toda a obra de Bacon: a redução do homem
à sua condição única de animal. Metamorfose talvez seja o termo mais adequado
para explicar aquilo com que se confronta o espectador, da primeira à última
das 78 obras expostas naquela que é a mostra temporária mais cara do Prado dos
últimos dez anos. A palavra não se diz. Vê-se. E vê-se!
neste primeiro trítico, capaz de transmitir intensidade
logo a partir da cor. O laranja que lhe serve de fundo e que abundantemente
Bacon vai usando com o desenrolar dos anos. Tal como se verá depois, mais à
frente, no verde, no azul, no rosa... Mas é na agonia, no abismo e, sobretudo,
no grito que se solta da imagem distorcida de um ser humano transfigurado num
animal mortificado que a metamorfose faz disparar o ritmo cardíaco. A morte é o
fim. Um ponto final. Não há duas vidas. Deus não existe. É perante esse final
que ali, na década de 40, Bacon atira para a tela pintada a óleo seres despidos
de um corpo humano. Agarra-lhes na cabeça e no rosto e retira-lhes a alma para
lhes oferecer o nada, que até pode significar o tudo, o tudo e o nada, que lhes
fixa na boca, nos dentes: “Head I”, “Head II”, “Head VI”... “Study from the Human Body”.
A transformação
consuma-se mais à frente. Há um “Chimpanzee”,
já houvera um “ Study of a Dog”, em
contraste ou em comparação com vários estudos de nus masculinos. E, mais à
frente, ainda haverá “Paralytic Child Walking on All Fours”, um dos mais
poderosos trabalhos de Bacon. Perante todos, o ritmo cardíaco assemelha-se a
uma convulsão.
Estamos já na década de 50, altura em que Bacon inicia
um trabalho obsessivo sobre a figura do Papa Inocêncio X a partir do retrato do
pontífice realizado por Velázquez (um dos seus mestres de sempre). Abrandam as
pulsações. O cérebro quer encontrar as diferenças e as semelhanças. Apalpar
terreno no departamento das memórias. Procurar informação adicional nos textos
inscritos nas paredes da quarta sala, designada por “Apreensão”. O olhar acalma
o corpo. A série “Man in Blue”
contribui para uma reflexão, mais do que para uma explosão de sentimentos. É a
simetria das obras que se instala, as linhas e traços que percorrem cada
quadro, os pontos de luz, a mestria de Bacon... É tempo de solidão, de
isolamento, as questões que se colocam são existenciais em toda a sua vastidão.
Estamos perante um homem só consigo próprio. Vazio. O tempo é o da maturação.
Maturação necessária para aguentar a vibração febril
que emana dos trabalhos que se agrupam sob o título “Crucificação”: “Three Studies for a Crucifixion” (1962)
e “Crucifixion” (outro trítico de 1965), encimados pelo retrato de Inocêncio X
considerado como definitivo por Bacon. É o grande momento da exposição que a
Tate Gallery, em Londres, já albergou e que o Metropolitan Museum de Nova
Iorque irá receber a seguir ao Prado. O sistema nervoso que o pintor inglês
nascido na Irlanda (1909/1992) tanto quis exaltar treme. De nervos?, de uma
angústia que desconhece?, ou porque a força das imagens entram dentro dele sem
filtro? Chacina, matança, guerra... Pedaços de carne humana esventrados num
talho qualquer. Carne para canhão, carne comestível como a de qualquer outro
animal. Carne. Sangue. Violência. A insanidade mental do homem que se come
vivo, sistematicamente, em guerras que Bacon presenciou. Julgamentos,
testemunhas, cúmplices e um Papa todo-poderoso enjaulado, efeminado, sinistro,
altivo num trono pesado. O campo de visão espraia-se no branco e no vermelho.
Retém aquela apoteose à morte como qualquer coisa de verdadeiramente épico. E
segue em frente. Viaja até Tanger, e o calor das tonalidades do Norte de África
tranquiliza-lhe o olhar.
A CONDIÇÃO animal do homem é uma questão central no
trabalho de Bacon. É a partir de estudos rigorosos sobre o movimento humano que nasce, entre muitos, este “Paralytic
Child Walking on All Fours” . Já o retrato de Inocêncio X,a partir de Velázquez, é das suas mais caras obsessões
Tomando literalmente o pulso, o visitante sente mais
lentas as pulsações que já lhe alimentaram o corpo. Nos anos 60 ainda, mas
dentro de um dos universos mais fantásticos de Francis Bacon: o retrato. Os
espasmos nervosos são aqui de admiração. Há uma espécie de êxtase que percorre
o tal corpo ao ver na tela o rosto de figuras e figuras (majoritariamente, o
grupo de amigos de Bacon e ele próprio) distorcido, difuso, confuso, quebrado,
ocultado, duplicado no espelho. De tão brutal, torna-se nítido, perfeito na sua
desestruturação planeada ao milímetro num ateliê caótico, já revelado ao
público numa outra sala da mostra. A apropriação da imagem fotográfica como
base de trabalho já é nessa altura conhecida do espectador, que, avançando para
o final da exposição, se confronta cada vez mais com o processo criativo,
refreando as descargas emocionais.
O diálogo com a morte toma então as proporções da
narrativa, aproxima-se da encenação teatral, associa-se à poesia, roça o cinema
panorâmico e apresenta-se em forma de tríticos. As dimensões (198 x 147,5 cm —
a medida da porta do ateliê do pintor) das telas ampliam a cor, o drama. O
sangue volta a correr mais depressa no corpo de um espectador que se sente cada
vez menor. É então que o círculo se fecha para deixá-lo respirar, embora
inquieto, o tempo que for preciso. “Second
Version of Triptych 1944”, uma obra realizada em 1988, encerra a mostra
como a começou. O grito e a agonia seguem para casa. Bacon deixa-se ficar no
corpo de quem o quiser sentir.