Que as suas obras tivessem, antes de tudo, um impacto de decreto
no sistema nervoso do espectador. Era essa a metaprimeira de Francis Bacon.
Atingiu-a sempre. Desde os anos 40, quando começou a expor, até depois de sua morte, em 1992. Começou por causar horror e acabou por receber a admiração
do mundo artístico. A maior antologia dedicada ao pintor, que na semana passada
foi inaugurada no Museu do Prado, em Madrid, no ano em que se comemora o
centenário do seu nascimento, é mais uma prova disso. Organizada em 11núcleos
(que obedecem a uma ordem estritamente cronológica), a mostra, patente até 19
de Abril, pode mesmo ser vista ao ritmo das pulsações cardíacas que cada quadro
acelera ou diminui ao ser olhado.
neste primeiro trítico, capaz de transmitir intensidade
logo a partir da cor. O laranja que lhe serve de fundo e que abundantemente
Bacon vai usando com o desenrolar dos anos. Tal como se verá depois, mais à
frente, no verde, no azul, no rosa... Mas é na agonia, no abismo e, sobretudo,
no grito que se solta da imagem distorcida de um ser humano transfigurado num
animal mortificado que a metamorfose faz disparar o ritmo cardíaco. A morte é o
fim. Um ponto final. Não há duas vidas. Deus não existe. É perante esse final
que ali, na década de 40, Bacon atira para a tela pintada a óleo seres despidos
de um corpo humano. Agarra-lhes na cabeça e no rosto e retira-lhes a alma para
lhes oferecer o nada, que até pode significar o tudo, o tudo e o nada, que lhes
fixa na boca, nos dentes: “Head I”, “Head II”, “Head VI”... “Study from the Human Body”.
A transformação
consuma-se mais à frente. Há um “Chimpanzee”,
já houvera um “ Study of a Dog”, em
contraste ou em comparação com vários estudos de nus masculinos. E, mais à
frente, ainda haverá “Paralytic Child Walking on All Fours”, um dos mais
poderosos trabalhos de Bacon. Perante todos, o ritmo cardíaco assemelha-se a
uma convulsão.
Estamos já na década de 50, altura em que Bacon inicia
um trabalho obsessivo sobre a figura do Papa Inocêncio X a partir do retrato do
pontífice realizado por Velázquez (um dos seus mestres de sempre). Abrandam as
pulsações. O cérebro quer encontrar as diferenças e as semelhanças. Apalpar
terreno no departamento das memórias. Procurar informação adicional nos textos
inscritos nas paredes da quarta sala, designada por “Apreensão”. O olhar acalma
o corpo. A série “Man in Blue”
contribui para uma reflexão, mais do que para uma explosão de sentimentos. É a
simetria das obras que se instala, as linhas e traços que percorrem cada
quadro, os pontos de luz, a mestria de Bacon... É tempo de solidão, de
isolamento, as questões que se colocam são existenciais em toda a sua vastidão.
Estamos perante um homem só consigo próprio. Vazio. O tempo é o da maturação.
Maturação necessária para aguentar a vibração febril
que emana dos trabalhos que se agrupam sob o título “Crucificação”: “Three Studies for a Crucifixion” (1962)
e “Crucifixion” (outro trítico de 1965), encimados pelo retrato de Inocêncio X
considerado como definitivo por Bacon. É o grande momento da exposição que a
Tate Gallery, em Londres, já albergou e que o Metropolitan Museum de Nova
Iorque irá receber a seguir ao Prado. O sistema nervoso que o pintor inglês
nascido na Irlanda (1909/1992) tanto quis exaltar treme. De nervos?, de uma
angústia que desconhece?, ou porque a força das imagens entram dentro dele sem
filtro? Chacina, matança, guerra... Pedaços de carne humana esventrados num
talho qualquer. Carne para canhão, carne comestível como a de qualquer outro
animal. Carne. Sangue. Violência. A insanidade mental do homem que se come
vivo, sistematicamente, em guerras que Bacon presenciou. Julgamentos,
testemunhas, cúmplices e um Papa todo-poderoso enjaulado, efeminado, sinistro,
altivo num trono pesado. O campo de visão espraia-se no branco e no vermelho.
Retém aquela apoteose à morte como qualquer coisa de verdadeiramente épico. E
segue em frente. Viaja até Tanger, e o calor das tonalidades do Norte de África
tranquiliza-lhe o olhar.
A CONDIÇÃO animal do homem é uma questão central no
trabalho de Bacon. É a partir de estudos rigorosos sobre o movimento humano que nasce, entre muitos, este “Paralytic
Child Walking on All Fours” . Já o retrato de Inocêncio X,a partir de Velázquez, é das suas mais caras obsessões
Tomando literalmente o pulso, o visitante sente mais
lentas as pulsações que já lhe alimentaram o corpo. Nos anos 60 ainda, mas
dentro de um dos universos mais fantásticos de Francis Bacon: o retrato. Os
espasmos nervosos são aqui de admiração. Há uma espécie de êxtase que percorre
o tal corpo ao ver na tela o rosto de figuras e figuras (majoritariamente, o
grupo de amigos de Bacon e ele próprio) distorcido, difuso, confuso, quebrado,
ocultado, duplicado no espelho. De tão brutal, torna-se nítido, perfeito na sua
desestruturação planeada ao milímetro num ateliê caótico, já revelado ao
público numa outra sala da mostra. A apropriação da imagem fotográfica como
base de trabalho já é nessa altura conhecida do espectador, que, avançando para
o final da exposição, se confronta cada vez mais com o processo criativo,
refreando as descargas emocionais.
O diálogo com a morte toma então as proporções da
narrativa, aproxima-se da encenação teatral, associa-se à poesia, roça o cinema
panorâmico e apresenta-se em forma de tríticos. As dimensões (198 x 147,5 cm —
a medida da porta do ateliê do pintor) das telas ampliam a cor, o drama. O
sangue volta a correr mais depressa no corpo de um espectador que se sente cada
vez menor. É então que o círculo se fecha para deixá-lo respirar, embora
inquieto, o tempo que for preciso. “Second
Version of Triptych 1944”, uma obra realizada em 1988, encerra a mostra
como a começou. O grito e a agonia seguem para casa. Bacon deixa-se ficar no
corpo de quem o quiser sentir.