Ayrton Senna: "Se contar eu nego" -
Este capítulo é uma parte do livro Ayrton Senna - O
Herói revelado, onde se fala da face humanitário de Ayrton Senna da Silva. Ai
vai.
"Se contar, eu nego."
Julian Jakobi não revelou os valores, mas confirmou que
Ayrton, de tempos em tempos, costumava ligar para ele de algum lugar do planeta
e pedir que doasse dinheiro para instituições ou pessoas. Durante os conflitos
da Bósnia, no início dos anos 90, Senna ligou e orientou Julian para que ele
ajudasse as crianças vítimas da guerra. E, como sempre, determinou: - Não fala
nada disso para o Fábio. O primo Fábio Machado, principal responsável pelos
negócios de Ayrton no Brasil, não ficava sabendo. E quando recebia ordem de
Senna para mandar dinheiro para alguma pessoa ou instituição no Brasil ou do
exterior, ela também vinha acompanhada de uma determinação: - Não fala nada
disso para o Julian.
Todas as pessoas íntimas de Ayrton guardavam a mesma
impressão: Ayrton detestava a possibilidade de seus gestos de caridade serem
interpretados como promoção pessoal. Por isso, poucas pessoas souberam que, depois
de numa reunião com Senna em seu escritório de São Paulo, no início dos anos
90, diretores da APAE, do Hospital do Câncer e da Associação de Apoio à Criança
Deficiente receberam, cada um, 100 mil dólares. Nem todos os beneficiados
conseguiram manter o compromisso de calar sobre sua generosidade. Na primeira
vez em que esteve no hospital de reabilitação onde Linamara Battistella
trabalhava, em Vila Mariana, São Paulo, Ayrton ficou encantado com o trabalho
de assistência e resolveu ajudar: - O que eu posso fazer para ajudar vocês
aqui? Linamara precisava de um equipamento de avaliação isocinética que custava
algo em torno de 100 mil dólares. Parte dos recursos ela teria com a Secretaria
Estadual de Saúde e outras fontes oficiais, mas faltava dinheiro. E Ayrton
decidiu doar dez mil dólares.
A preocupação ia das crianças hemofílicas de São Paulo
aos índios e seringueiros da reserva extrativa de Alto Juruá, no Acre, que
receberam, em 1994, cerca de 50 mil dólares para a formação de uma equipe
médica para a reserva. Em alguns momentos, a decisão de ajudar foi precedida de
momentos de profundo sofrimento. Como no dia em que Ayrton visitou uma entidade
de assistência a crianças portadoras de graves deficiências. De tão chocado com
o quadro que viu, três irmãos portadores de graves deformações, Ayrton começou
a passar mal e foi amparado pelas crianças que ele ajudaria.Voltou para a casa
dos pais devastado com o que vira.
A reação do filho não surpreendeu dona Neyde. Desde a
infância, Ayrton demonstrava um sentimento genuíno de compaixão pelos
desfavorecidos. Como no dia em que um dos meninos pobres que moravam perto de
sua casa, em Santana, bateu à porta. Era um Natal no final dos anos 60. Dona
Neyde descobriu, nas palavras do menino, que Ayrton tinha cuidado do presente
dele: - Vim buscar a bicicleta.
Dois meses antes de morrer, Ayrton manifestara a
Viviane e ao resto da família o desejo de transformar aquela caridade sigilosa
num projeto mais abrangente e duradouro para as crianças e jovens do Brasil. E
dois meses depois de Imola, estaria criada, em Londres, a Ayrton Senna
Foundation. Em 24 de novembro, em São Paulo, o Instituto Ayrton Senna. As duas
entidades passariam a receber 100% dos royalties gerados pelo uso da marca
Senna e da imagem de Ayrton Senna no mundo inteiro. Viviane, como presidente
das duas entidades, convocou intelectuais, artistas, educadores e empresários
para desenvolver as idéias e projetos inspirados no desejo original de Ayrton.
Já em 1994, a receita das duas instituições foi de três milhões de dólares.
Nove anos depois de Imola, o Instituto Ayrton Senna se tornou a única
organização não-governamental brasileira a receber a Cátedra UNESCO em Educação
e Desenvolvimento Humano, uma chancela rara concedida a entidades de destaque
no apoio ao desenvolvimento humano. Única pessoa da família a não se afastar da
mídia, Viviane passou a ser associada não só à do irmão, mas também ao trabalho
de ativista na área da chamada "advocacia social".
O primeiro grande contrato do Instituto Ayrton Senna aconteceu
já em 1994, quando a Fuji adquiriu licença de comercialização da imagem de
Senna no Japão e gastou dois milhões de dólares para montar um memorial
multimídia chamado "Senna Forever", que percorreu dez cidades do país
exibindo preciosidades como as certidões de nascimento e óbito do piloto, a
bandeira que cobriu o caixão, sua bíblia pessoal, o smoking usado na premiação
do primeiro título, macacões das várias equipes, a pasta executiva, peças de
sua casa, brinquedos eletrônicos, a camisa do Kashima Antlers que Zico
autografara para ele em 1993, e até o kart usado por Senna no último campeonato
mundial que disputou.
Junto com a exposição, a Fuji colocou à venda 60 mil
camisetas com a imagem de "Senninha", cada uma delas a 39 dólares,
enquanto o pôster "Senna Forever" custava dez dólares. O pacote de
licenciamento incluía o livro oficial de fotografias feitas por Norio Koike,
por 36 dólares, quebra-cabeças, casacos, camisetas, bonés do Banco Nacional,
chaveiros, decalques, toalhas e bandeiras. Outro produto licenciado pelo
instituto foi um sonho de consumo para poucos: a moto Ducati Senna 916, que teve somente 300 unidades produzidas na
Itália, 30 delas importadas para o Brasil. A moto fora um dos últimos projetos
de Senna e utilizava materiais de última geração, como a fibra de carbono.
Preço: 39 mil dólares.
Aquela altura, além da moto Ducati, já tinham sido lançados um relógio sofisticado, uma bicicleta ecológica com gerador antipoluente, uma caneta de fibra de carbono, um barco offshore e uma linha de óculos. Nove anos depois de sua criação, ainda instalado no mesmo edifício Vari, construído por Ayrton na Rua Doutor Olavo Egídio, em Santana, o instituto controlava todo e qualquer uso das marcas e da imagem de Senna. No final de 2003, com o trabalho de cerca de 51 mil educadores, o instituto e seus parceiros na área institucional atuavam em 24 estados brasileiros, atingindo 3.375 escolas, entidades e universidades em 463 cidades. Mais de 977 mil crianças e jovens eram atendidos em programas de educação formal, educação complementar centrada em artes, esportes e comunicação, apoio à juventude, qualidade em saúde e voluntariado. O investimento, só naquele ano, foi de 19 milhões de reais - provenientes dos royalties religiosamente cobrados pelo instituto.