Beira do mar, lugar comum (...)
A água bateu, o
vento soprou
O fogo do sol, o sal do senhor
(Lugar Comum – Gilberto Gil e João Donato)
Posteriormente, a descoberta das propriedades
terapêuticas dos banhos de sol desencadeia um processo social de
institucionalização de novos gostos nas classes sociais mais abastadas, levando
este espaço a se converter definitivamente num lugar da moda, passando a atrair
um contingente cada vez maior de banhistas em busca de lazer, diversão e,
especialmente, de um corpo bronzeado, apresentado como marca de distinção e
sensualidade, por sua vez, auxiliado pela redução dos trajes de banho e pelo
emprego dos recém-surgidos cremes bronzeadores, que, mais tarde, foram
desenvolvidos tanto para garantir o bronzeado como para tentar proteger o corpo
contra o perigo do câncer de pele cada vez mais freqüente nestes tempos de
incidência crescente dos raios ultra violeta, decorrente do buraco - com
vocação para cratera-, provocado na camada de ozônio.
Odores
e sabores - Após esta breve retrospectiva, vamos dar
um passeio numa praia de “Salvador da Bahia”.Ao chegarmos vemos um mar a perder
de vista e observamos a baiana com seu tabuleiro cheio de odores e
sabores.Também nos deparamos com um palco previamente preparado na areia à
nossa espera, cujo espetáculo a ser apresentado quase sempre nos desagrada.
Compreende as cadeiras e os guarda - sóis das barracas
(carregados de publicidade de cervejarias, cartões de crédito e lojas de jogo
do bicho) - cujos proprietários, muitas vezes, ampliam indevidamente os espaços
ocupados -, as espreguiçadeiras e cadeiras de aluguel, distribuídas
estratégicamente pelos melhores lugares e em quantidade excessiva,
consubstanciando um verdadeiro loteamento com a privatização deste espaço
público de lazer que é a praia.
Somando-se a estes “inquilinos” já estabelecidos no
local “pelo tempo de praia”, existe todo um comércio ambulante, expressão do
nosso drama social, formado por subempregados, desempregados e demais pessoas
que vieram “dar na praia” - atraídas
pela possibilidade de venda de mercadorias a consumidores potenciais -,
oferecendo uma série de produtos e fazendo com que este “espaço de
socialidade”, conforme denominado apropriadamente por Thales de Azevedo (1988),
pelas transações de compra e venda aí realizadas, também seja transformado num
espaço de trabalho, passando a funcionar como um autêntico mercado a céu
aberto.
Piri pompom, piri pompom olha o queijo bom.Pois é, além
do queijo coalho cantarolado e esquentado na brasa dos fogareiros itinerantes,
são anunciados, dentre outros, cremes bronzeadores e protetores solares de
variada eficácia; redes, cangas e vestidos; as “louras” estúpidamente geladas,
os refris e a água mineral “do Candeal”, o churrasquinho de gato “da melhor
qualidade”, o cachorro “prá lá de quente”, o côco-da- baía oferecido em
profusão, o amendoim e os ovos de codorna tendo alardeadas suas propriedades
afrodisíacas de viagra natural, o picolé da rediviva Capelinha, sendo
apresentado segundo as regras do mais inventivo marketing, concorrendo no mesmo
espaço com o picolé da multinacional, e, por último, mas não menos importante,
o lanche natural para reafirmar simbolicamente a celebração e contato com a
natureza.
Sem
espaço - E se ainda não decidimos o que vamos consumir, os
vendedores das pequenas barracas se revezam na oferta de produtos. Entre uma
oferta e outra é colocada em prática uma gentileza recente que consiste na
vinda de uma pessoa que molha os pés do banhista para abrandar o calor e,
principalmente, cativar e ganhar a preferência da clientela numa possível
compra.
Além destes trabalhadores que batalham para não “morrer
na praia”, pode-se também mencionar a presença do principal vilão da área, o
descuidista, praticante de pequenos ou grandes furtos, preocupação constante
dos banhistas, que fica à espreita, aguardando um momento de falta de
vigilância para entrar em ação.
E os banhistas, para onde vão? Ou melhor, como é que ficam? Quando não sucumbem à oferta das cadeiras de aluguel, resta pouco espaço para estender a canga ou a toalha e, até mesmo, para as crianças se divertirem, desenhando e construindo seus castelos de sonhos com porções generosas de areia molhada.Nesta mesma faixa de areia situada entre o mar e o muro, além da presença das atividades comerciais fixas e da passagem constante dos vendedores itinerantes, os banhistas, por vezes, sofrem a concorrência da prática de esportes, cujos aficcionados, mais preocupados em proporcionar espetáculo para si próprios, nem sempre respeitam o espaço das pessoas que se encontram nas proximidades.
Infelizmente a prática social de ir a praia, pensada
como algo prazeroso e diferente do habitual do dia a dia, uma espécie de
piquenique com banho, entremeada por momentos de interação, descontração e
relaxamento onde se usufruiria as “virtudes da preguiça” reivindicadas por Lafargue (1999), por vezes, acaba se transformando na repetição de situações do
cotidiano e permeadas de dissabores.Mas todo este esforço não poderá ter sido
em vão.Afinal, o deslocamento de casa para a praia dá trabalho, exigindo algum grau
de preparação, paciência e, sobretudo, altas doses de motivação.
Ciente deste fato, o banhista não se dá por vencido e
vai à luta.Ao tempo em que mantém o seu pedaço de areia e garante o direito de
estar ali, ele também, busca o lúdico vivenciando momentos alegres tais como,
conversar, beber e brincar com os familiares e amigos, contemplar - dentre a
“infinidade de mensagens” presentes na praia mencionada por Barthes (1978) - o
mar verde azul iluminado pelo céu de brigadeiro, as embarcações que passam a uma certa distância e apreciar (com
a devida moderação) as pessoas desfilando seus corpos e seus sotaques captados
nos fragmentos de conversas entrecortadas pelo som das ondas que quebram na
beira da praia.
O
autor é Doutor em Ciências Sociais, pesquisador do Núcleo de Estudos Ambientais
e Rurais (NUCLEAR) da UFBA e integrante da equipe técnica da CAR/SEDIR.
Referências:
AZEVEDO,
Thales de. A Praia:espaço de socialidade. Salvador:Centro de Estudos Baianos da
UFBA,1988.
BARTHES,
Roland.Mitologias.São Paulo:Difel,1978.
LAFARGUE,Paul.O
Direito à Preguiça. São Paulo:Hucitec, Unesp,1999.