Mais adiante uns 10 quilômetros se atravessa a ponte
que leva do outro lado, ao continente novamente. Passa-se por Nazaré das
Farinhas e já estamos em direção à Valença
que abriga a Praia de Guaibim. A estrada está muito boa, quer dizer, está boa!
Muito boa para os padrões nacionais. Aqueles que estão acostumados a auto-estradas
européias, por exemplo, sente a diferença, mesmo em época de crise!
Valença, na segunda metade do século dezenove foi
considerada centro de produção de tecidos no Recôncavo baiano e abrigou, ao que
parece, a primeira fábrica de tecidos do Brasil utilizando as águas caudalosas
do Rio Una. Guaibim, que fica a 17 km, adquiriu a sonoridade de seu nome que
quer dizer em tupi-guarani, a língua dos seus antigos habitantes aborígines,
Águas do Além. Por isso mesmo Guaibim
é, acima de tudo, uma praia. Uma linda praia de verão que nos meses de
dezembro, janeiro e fevereiro está sempre cheia de turistas. Olhando da praia
em frente é só mar! Ele leva através do Oceano Atlântico até o continente
africano e mais precisamente, à baia de Luanda, capital de Angola. Olhando de
frente para o mar, para o lado direito encontraremos a badaladíssima Morro de
São Paulo, que talvez tenha adquirido este nome pela quantidade de paulistas
que aprenderam a freqüentar esta ilha desde os anos 1970. Morro de São Paulo,
hoje cheia de pessoas de todas as partes do mundo, não para e parece ser o fim
de uma enseada que a ligaria às terras do final da Praia de Guaibim - no
continente. A ilha do Morro fixou em seu ponto mais alto um farol para desejar,
na medida do possível, a todos os marinheiros que se banhem nas suas águas um
bom porto.
De fato, as “águas do além” não são nada calmas. De mar
batido, com ondas apreciadas pelos surfistas que aproveitam para realizar
campeonatos de surf, seu mar pede cautela, junto com os dedicados homens do Salva-Mar
local! O trabalho deles (uma vintena) é duro, estressante, pois tem que lutar
com o mar, e contra algo muito mais difícil: a incompreensão dos banhistas que
querem sempre desafiar os caprichos daquelas águas. Não estaria aí a origem do
seu nome na língua dos índios? A sensatez indígena jamais desafiava a natureza
à não ser por uma causa justa!
A maior parte dos turistas que vão a Guaibim chega aos
milhares para se aglomerarem, sobretudo nos finais de semana. Boa parte
permanece mais tempo curtindo férias, buscando descanso e divertimento para a
família, em grupos e algumas vezes na “solidão” dos casais. E aí, pelos finais
de tarde, todos ou quase todos se encontram no burburinho que é de quase todas
as cidades praieiras. A avenida que poderia ser chamada de Avenida da Orla vira
uma passarela interminável para o vai-e-vem de crianças, jovens e velhos. Não
obstante e desgraçadamente também, ela se torna da mesma forma em passarela
para os carros e motos que disputam com as bicicletas e cavalos o espaço que
seria de muito bom gosto, se calçado, para o passeio exclusivo de sua gente e
dos visitantes que vêm, em geral, de Brasília, Goiânia, Mato-Grosso, mas também
do sul do Brasil e do estrangeiro, além das cidades baianas mais próximas.
Guaibim é tudo isso e muito mais. Encanta seus turistas
pela cortesia de sua gente simples e cheia de afabilidade que caracteriza um
povo risonho quando provocado. As barracas de praia, umas mais, outras menos, estão equipadas e limpas e nos oferecem tudo que alguém pode pretender além de
refrigerantes e cervejas, coco gelado, peixe frito ou de moqueca. Ao longo da
Praia aparecem alguns restaurantes e pizzarias mais sofisticadas e também
sorveterias.
Todavia, para os comerciantes desse pedaço do paraíso -
sejam eles barraqueiros ou donos de pousadas, mas também para os nativos,
existe algo que, impunemente, rouba muito de sua alegria e bem-estar: os
famosos carros de passeio cujos proprietários se sentem como se fossem donos de
trio-elétricos. São enormes caixas de som, colocadas nos porta-malas, num
volume tão elevado que chega a ser ensurdecedor! O pior é que se trata da
imposição de valores e gostos. Quem não aprecia e quem quer descansar é
obrigado a ouvir! E não pensem que isso ocorre no meio do dia ou num final de
tarde, não. Os “carros trio-elétricos”
se instalam, não raro em frente às pousadas, bares, restaurantes e barracas que
funcionam à noite, às vezes por volta das 22h para saírem apenas às 4h ou 5h da
madrugada! Não somente os turistas que querem repousar, mais os habitantes do
local se queixam muito.
A realidade deste fenômeno faz com que percamos a noção
de vivermos num país onde existe uma legislação sobre poluição sonora com leis
no âmbito federal (Lei das contravenções penais – Art 42), no âmbito estadual (Lei
do silêncio) e no âmbito municipal também, que regulamenta a exibição pública
de músicos, cantores e conjuntos musicais, ou serviços de som por
alto-falantes, assim como a disposição e uso de equipamentos, mesas e cadeiras
por bares e similares, além de proteger a população de ruídos. Contudo, no
Brasil, quando se trata de diversão, mesmo que a princípio alguns e depois uma
grande maioria se sinta incomodado, parece não existir espaço para leis.
O complexo de trio-elétrico é um fenômeno que vem se
instalando em muitos pontos turísticos do país, particularmente nas praias e
cidades praieiras de quase todo o litoral brasileiro, mas também em
aglomerações urbanos do interior e nas capitais. Trata-se de um tremendo
espetáculo do mau-gosto. E isto pela altura em que é colocado o som, mas também
pela baixíssima qualidade daquilo que com muito esforço podemos chamar de
música e que irrita, assim, duplamente.
O que pode explicar que jovens em carros pequenos e
menos jovens em carros grandes (os famosos 4x4), tenham necessidade de se
exibirem desse modo? Algumas vezes é possível ver garotas e garotos, ainda
adolescentes ou apenas saídos dela, movimentando seus corpos em danças
semelhantes àquela célebre da garrafa!
Alguns nativos e comerciantes ousam mesmo a ver naquilo um falso espetáculo
chamariz da delinqüência e das diversas contravenções de um mundo que se
banaliza à luz do dia. Na verdade, a arrogância com a qual muitas vezes se
exibem, pode levar à hipóteses pessimistas, muito embora não se possa generalizar!
De qualquer modo, tudo é feito como se a obscenidade que “maquinisa” a
sensualidade de um bom samba ou de uma salsa, fosse realmente de um elevado
valor estético. Tal distorção subjetiva pode fazer de qualquer lugar uma
espécie de “baixio de bestas” e é a mesma que pretende que a bestialidade
humana pode ser considerada erotismo, equívoco que nenhum animal comete! Apenas
uma subjetividade enormemente empobrecida pode explicar a adesão a textos
(totalmente desprovidos de beleza argumentativa e de contextos) sem nenhuma beleza poética e de uma sonoridade paupérrima, repetitiva, que nada,
absolutamente nada, tem sequer de minimalista! Muitas vezes o texto é tão pobre
de imaginação que logo, logo, se fixa o seu enredo misógino, discriminatório
com relação à feiúra de uma mulher negra, por exemplo, que tentou a sorte num
encontro amoroso pela internet!
A generalização de tal subjetividade psicológica,
pervertida pela deformação ou ausência absoluta de valores humanistas tem se
tornado um verdadeiro fenômeno de aculturação e barbárie que se generaliza no
planeta do fetichismo neoliberal! O curioso é que a indústria cultural
fonográfica em crise consegue encontrar nesta faixa de consumidores uma
alternativa para suas vendas que se alimenta de um terreno fértil às mais
ilusionistas mercadorias. Não teria ela tanto sucesso assim se não encontrasse
uma verdadeira rede de repetidores capazes de abraçar tão espontaneamente a
degradação da vida e fazer disso um valor supremo! Os nativos da Praia e alguns
comerciantes consideram-nos filhinhos de papai de uma classe média plena de
desejo de afirmação, de visibilidade tentando compensar suas frustrações de
classe média oriundas do vazio existencial de suas origens. A gente local
considera-os filhos de fazendeiros e de comerciantes de Santo Antônio de Jesus,
Feira de Santana, Nazaré, mas também de Valença, etc... Mas alguns dos mais
conseqüentes habitantes desse lugar naturalmente paradisíaco fazem questão de
acentuar o refrão que muitos dos filhos “bem criados” desse nosso Brasil
varonil arrotam: ”não se meta com a gente, pois vocês não sabem quem somos nós”
ou “com quem está se metendo”! Sem dúvida, o frágil policiamento da localidade
propicia ameaças como estas!
O importante não é tanto a origem geográfica de tais
contraventores, ou mesmo de delinqüentes, que associam aos menos avisados
através de um processo mais ou menos consciente de constituição, na melhor das
hipóteses, de modas de mau gosto. Esta é a mesma mentalidade que explica a
banalização de crimes diversos que vemos desfilar nos canais de televisão, num
país onde impera a corrupção, a ausência de valores humanistas na família, na
escola – que de há muito deixou de ser pública, e na política dominada pelo
espírito oportunista. Tal concepção termina impedindo que em locais diversos do
país, como em Guaibim, que outras tantas oportunidades possam ser criadas para
seu povo. Com certeza, a maior preocupação da população local, não é o
“complexo de trio-elétrico” que foi descrito nestas linhas, mas o amanhã, o
depois, o período da baixa estação quando os turistas tiverem ido embora! Aí a
tristeza é desoladora e o nativo se vê só a afrontar a falta do que fazer para
ganhar o pão nosso de cada dia! Mas não fosse o espírito do “salve-se quem
puder” que graça no cenário da política nacional, em Guaibim já estariam sendo
organizados festivais de baixa estação e de inverno, como se faz com as
competições de surf. Eventos culturais, seminários internacionais, congressos
científicos, festivais de música durante o ano inteiro e não só na baixa
estação, pois não falta infra-estrutura. São vários os hotéis, pousadas e
restaurantes que esperam os visitantes de braços abertos!
Mas a força da natureza se impõe de modo incontornável
apesar de tudo. Por isso e por muito
mais que as letras da nossa imaginação não conseguiram fixar, Guaibim merece
ser visitada e apreciada. Pela sua praia e pelo seu povo hospitaleiro que ele
sim, merece admiração! As associações locais e as iniciativas civis merecem bem
ser copiadas pelas nossas capitais em muitos aspectos. Este é o caso, por
exemplo, da coleta de lixo. A falta de recursos municipais destinados
convenientemente para essa esfera levou-os com grande criatividade a criar um
sistema de coleta de lixo seletivo que seguramente precisa ser aperfeiçoado.
E no retorno à Salvador, ou a qualquer das cidades
brasileiras, não custa nada ou custa muito pouco parar em Maragogipinho. Ela é
um verdadeiro laboratório da criatividade cultural e artística de nosso povo e
uma fábrica inesgotável de suas figuras disformes, marcadas pela vida e por
carências diversas, mas que guarda sempre um ar de pureza que jamais poderá ser
trocado pelo mau gosto massificado. Comprar um caxixi bem pode ajudar ao povo
sofrido de Maragogipinho! Mas por
que não elaborar uma política de sustentação desse artesanato com uma feira
municipal permanente ou a estruturação de um Museu com suas melhores peças
escolhidas num concurso regional e que seriam expostas à visitação paga para
ajudar a mantê-lo e a difundir de modo inteligente a cultura legítima dessa
gente esquecida? Os simpáticos artesãos de Maragogipinho agradecem!