Guaibim: as Águas do além

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

... ou para que uma pérola do Atlântico baiano não se transforme num inferno de Dante.Chegar a Guaibim é já um grande prazer! A estrada está relativamente bem conservada e a paisagem é muito bonita. Chegando à Bom Despacho, na Ilha de Itaparica, inicia-se o caminho mais rápido. 20 quilômetros depois se deixa a entrada da rodovia que leva à Caixa Prego – que fica na ponta da Ilha de Itaparica.

Guaibim: as Águas do além




Mais adiante uns 10 quilômetros se atravessa a ponte que leva do outro lado, ao continente novamente. Passa-se por Nazaré das Farinhas e já estamos em direção à Valença que abriga a Praia de Guaibim. A estrada está muito boa, quer dizer, está boa! Muito boa para os padrões nacionais. Aqueles que estão acostumados a auto-estradas européias, por exemplo, sente a diferença, mesmo em época de crise!

Valença, na segunda metade do século dezenove foi considerada centro de produção de tecidos no Recôncavo baiano e abrigou, ao que parece, a primeira fábrica de tecidos do Brasil utilizando as águas caudalosas do Rio Una. Guaibim, que fica a 17 km, adquiriu a sonoridade de seu nome que quer dizer em tupi-guarani, a língua dos seus antigos habitantes aborígines, Águas do Além. Por isso mesmo Guaibim é, acima de tudo, uma praia. Uma linda praia de verão que nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro está sempre cheia de turistas. Olhando da praia em frente é só mar! Ele leva através do Oceano Atlântico até o continente africano e mais precisamente, à baia de Luanda, capital de Angola. Olhando de frente para o mar, para o lado direito encontraremos a badaladíssima Morro de São Paulo, que talvez tenha adquirido este nome pela quantidade de paulistas que aprenderam a freqüentar esta ilha desde os anos 1970. Morro de São Paulo, hoje cheia de pessoas de todas as partes do mundo, não para e parece ser o fim de uma enseada que a ligaria às terras do final da Praia de Guaibim - no continente. A ilha do Morro fixou em seu ponto mais alto um farol para desejar, na medida do possível, a todos os marinheiros que se banhem nas suas águas um bom porto.




De fato, as “águas do além” não são nada calmas. De mar batido, com ondas apreciadas pelos surfistas que aproveitam para realizar campeonatos de surf, seu mar pede cautela, junto com os dedicados homens do Salva-Mar local! O trabalho deles (uma vintena) é duro, estressante, pois tem que lutar com o mar, e contra algo muito mais difícil: a incompreensão dos banhistas que querem sempre desafiar os caprichos daquelas águas. Não estaria aí a origem do seu nome na língua dos índios? A sensatez indígena jamais desafiava a natureza à não ser por uma causa justa!

A maior parte dos turistas que vão a Guaibim chega aos milhares para se aglomerarem, sobretudo nos finais de semana. Boa parte permanece mais tempo curtindo férias, buscando descanso e divertimento para a família, em grupos e algumas vezes na “solidão” dos casais. E aí, pelos finais de tarde, todos ou quase todos se encontram no burburinho que é de quase todas as cidades praieiras. A avenida que poderia ser chamada de Avenida da Orla vira uma passarela interminável para o vai-e-vem de crianças, jovens e velhos. Não obstante e desgraçadamente também, ela se torna da mesma forma em passarela para os carros e motos que disputam com as bicicletas e cavalos o espaço que seria de muito bom gosto, se calçado, para o passeio exclusivo de sua gente e dos visitantes que vêm, em geral, de Brasília, Goiânia, Mato-Grosso, mas também do sul do Brasil e do estrangeiro, além das cidades baianas mais próximas.

Guaibim é tudo isso e muito mais. Encanta seus turistas pela cortesia de sua gente simples e cheia de afabilidade que caracteriza um povo risonho quando provocado. As barracas de praia, umas mais, outras menos, estão equipadas e limpas e nos oferecem tudo que alguém pode pretender além de refrigerantes e cervejas, coco gelado, peixe frito ou de moqueca. Ao longo da Praia aparecem alguns restaurantes e pizzarias mais sofisticadas e também sorveterias.

Todavia, para os comerciantes desse pedaço do paraíso - sejam eles barraqueiros ou donos de pousadas, mas também para os nativos, existe algo que, impunemente, rouba muito de sua alegria e bem-estar: os famosos carros de passeio cujos proprietários se sentem como se fossem donos de trio-elétricos. São enormes caixas de som, colocadas nos porta-malas, num volume tão elevado que chega a ser ensurdecedor! O pior é que se trata da imposição de valores e gostos. Quem não aprecia e quem quer descansar é obrigado a ouvir! E não pensem que isso ocorre no meio do dia ou num final de tarde, não. Os “carros trio-elétricos” se instalam, não raro em frente às pousadas, bares, restaurantes e barracas que funcionam à noite, às vezes por volta das 22h para saírem apenas às 4h ou 5h da madrugada! Não somente os turistas que querem repousar, mais os habitantes do local se queixam muito.

A realidade deste fenômeno faz com que percamos a noção de vivermos num país onde existe uma legislação sobre poluição sonora com leis no âmbito federal (Lei das contravenções penais – Art 42), no âmbito estadual (Lei do silêncio) e no âmbito municipal também, que regulamenta a exibição pública de músicos, cantores e conjuntos musicais, ou serviços de som por alto-falantes, assim como a disposição e uso de equipamentos, mesas e cadeiras por bares e similares, além de proteger a população de ruídos. Contudo, no Brasil, quando se trata de diversão, mesmo que a princípio alguns e depois uma grande maioria se sinta incomodado, parece não existir espaço para leis.

O complexo de trio-elétrico é um fenômeno que vem se instalando em muitos pontos turísticos do país, particularmente nas praias e cidades praieiras de quase todo o litoral brasileiro, mas também em aglomerações urbanos do interior e nas capitais. Trata-se de um tremendo espetáculo do mau-gosto. E isto pela altura em que é colocado o som, mas também pela baixíssima qualidade daquilo que com muito esforço podemos chamar de música e que irrita, assim, duplamente.

O que pode explicar que jovens em carros pequenos e menos jovens em carros grandes (os famosos 4x4), tenham necessidade de se exibirem desse modo? Algumas vezes é possível ver garotas e garotos, ainda adolescentes ou apenas saídos dela, movimentando seus corpos em danças semelhantes àquela célebre da garrafa! Alguns nativos e comerciantes ousam mesmo a ver naquilo um falso espetáculo chamariz da delinqüência e das diversas contravenções de um mundo que se banaliza à luz do dia. Na verdade, a arrogância com a qual muitas vezes se exibem, pode levar à hipóteses pessimistas, muito embora não se possa generalizar! De qualquer modo, tudo é feito como se a obscenidade que “maquinisa” a sensualidade de um bom samba ou de uma salsa, fosse realmente de um elevado valor estético. Tal distorção subjetiva pode fazer de qualquer lugar uma espécie de “baixio de bestas” e é a mesma que pretende que a bestialidade humana pode ser considerada erotismo, equívoco que nenhum animal comete! Apenas uma subjetividade enormemente empobrecida pode explicar a adesão a textos (totalmente desprovidos de beleza argumentativa e de contextos) sem nenhuma beleza poética e de uma sonoridade paupérrima, repetitiva, que nada, absolutamente nada, tem sequer de minimalista! Muitas vezes o texto é tão pobre de imaginação que logo, logo, se fixa o seu enredo misógino, discriminatório com relação à feiúra de uma mulher negra, por exemplo, que tentou a sorte num encontro amoroso pela internet!

A generalização de tal subjetividade psicológica, pervertida pela deformação ou ausência absoluta de valores humanistas tem se tornado um verdadeiro fenômeno de aculturação e barbárie que se generaliza no planeta do fetichismo neoliberal! O curioso é que a indústria cultural fonográfica em crise consegue encontrar nesta faixa de consumidores uma alternativa para suas vendas que se alimenta de um terreno fértil às mais ilusionistas mercadorias. Não teria ela tanto sucesso assim se não encontrasse uma verdadeira rede de repetidores capazes de abraçar tão espontaneamente a degradação da vida e fazer disso um valor supremo! Os nativos da Praia e alguns comerciantes consideram-nos filhinhos de papai de uma classe média plena de desejo de afirmação, de visibilidade tentando compensar suas frustrações de classe média oriundas do vazio existencial de suas origens. A gente local considera-os filhos de fazendeiros e de comerciantes de Santo Antônio de Jesus, Feira de Santana, Nazaré, mas também de Valença, etc... Mas alguns dos mais conseqüentes habitantes desse lugar naturalmente paradisíaco fazem questão de acentuar o refrão que muitos dos filhos “bem criados” desse nosso Brasil varonil arrotam: ”não se meta com a gente, pois vocês não sabem quem somos nós” ou “com quem está se metendo”! Sem dúvida, o frágil policiamento da localidade propicia ameaças como estas!

O importante não é tanto a origem geográfica de tais contraventores, ou mesmo de delinqüentes, que associam aos menos avisados através de um processo mais ou menos consciente de constituição, na melhor das hipóteses, de modas de mau gosto. Esta é a mesma mentalidade que explica a banalização de crimes diversos que vemos desfilar nos canais de televisão, num país onde impera a corrupção, a ausência de valores humanistas na família, na escola – que de há muito deixou de ser pública, e na política dominada pelo espírito oportunista. Tal concepção termina impedindo que em locais diversos do país, como em Guaibim, que outras tantas oportunidades possam ser criadas para seu povo. Com certeza, a maior preocupação da população local, não é o “complexo de trio-elétrico” que foi descrito nestas linhas, mas o amanhã, o depois, o período da baixa estação quando os turistas tiverem ido embora! Aí a tristeza é desoladora e o nativo se vê só a afrontar a falta do que fazer para ganhar o pão nosso de cada dia! Mas não fosse o espírito do “salve-se quem puder” que graça no cenário da política nacional, em Guaibim já estariam sendo organizados festivais de baixa estação e de inverno, como se faz com as competições de surf. Eventos culturais, seminários internacionais, congressos científicos, festivais de música durante o ano inteiro e não só na baixa estação, pois não falta infra-estrutura. São vários os hotéis, pousadas e restaurantes que esperam os visitantes de braços abertos! 

 


Mas a força da natureza se impõe de modo incontornável apesar de tudo.  Por isso e por muito mais que as letras da nossa imaginação não conseguiram fixar, Guaibim merece ser visitada e apreciada. Pela sua praia e pelo seu povo hospitaleiro que ele sim, merece admiração! As associações locais e as iniciativas civis merecem bem ser copiadas pelas nossas capitais em muitos aspectos. Este é o caso, por exemplo, da coleta de lixo. A falta de recursos municipais destinados convenientemente para essa esfera levou-os com grande criatividade a criar um sistema de coleta de lixo seletivo que seguramente precisa ser aperfeiçoado.

E no retorno à Salvador, ou a qualquer das cidades brasileiras, não custa nada ou custa muito pouco parar em Maragogipinho. Ela é um verdadeiro laboratório da criatividade cultural e artística de nosso povo e uma fábrica inesgotável de suas figuras disformes, marcadas pela vida e por carências diversas, mas que guarda sempre um ar de pureza que jamais poderá ser trocado pelo mau gosto massificado. Comprar um caxixi bem pode ajudar ao povo sofrido de Maragogipinho! Mas por que não elaborar uma política de sustentação desse artesanato com uma feira municipal permanente ou a estruturação de um Museu com suas melhores peças escolhidas num concurso regional e que seriam expostas à visitação paga para ajudar a mantê-lo e a difundir de modo inteligente a cultura legítima dessa gente esquecida? Os simpáticos artesãos de Maragogipinho agradecem!

 


Autor: Luis Bezerra
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Existe 2 comentários para esta publicação
sábado, 24/1/2009 por Antonio Sapiranga
A Verdade é sempre oportuna
Olá, caro camarada! Muito boa a matéria, que, além de informar com honestidade sobre esse lugar que realmente é um paraíso, chama a atenção das pessoas para esse tipo de comportamento bestial. Compartilho desse sentimento... Mas, viva a sua beleza!
sexta-feira, 23/1/2009 por Nay Lauton
Parabéns pela matéria!!!
Belíssima reportagem! Infelizmente esse tipo de gente, sem o mínimo de bom senso e que desrespeitam os limites da Lei, assim como os de outras pessoas que querem o silêncio, tomou conta da maioria das belas praias em nossos litorais.
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