SARAMAGO *16 DE NOVEMBRO DE 1922 + 18 DE JUNHO DE 2010 Que pensará Deus de Ratzinger? Que pensará Deus da igreja católica apostólica romana de que este Ratzinger é soberano papa? Que eu saiba (e escusado será dizer que sei bastante pouco), até hoje ninguém se atreveu a formular estas heréticas perguntas, talvez por saber-se, de antemão, que não há nem haverá nunca resposta para elas.
Como escrevi em horas de vã interrogação
metafísica, há uns bons quinze anos, Deus é o silêncio do universo e o homem o
grito que dá sentido a esse silêncio. Está nos Cadernos de Lanzarote e tem sido
frequentemente citado por teólogos do país vizinho que tiveram a bondade de me
ler. Claro que para que Deus pense alguma coisa de Ratzinger ou da igreja que o
papa anda a querer salvar de uma morte mais do que previsível, seja por
inanição, seja por não encontrar ouvidos que a escutem nem fé que lhe reforce
os alicerces, será necessário demonstrar a existência do dito Deus, tarefa
entre todas impossível, não obstante as supostas provas arquitectadas por S.
Boaventura, como a de esvaziar os oceanos com um balde furado ou mesmo sem furo
nenhum. Do que Deus, caso exista, deve estar agradecido a Ratzinger é pela
preocupação que este tem manifestado nos últimos tempos sobre o delicado estado
da fé católica. A gente não vai à missa, deixou de acreditar nos dogmas e
cumprir preceitos que para os seus antepassados, na maior parte dos casos,
constituíram a base da própria vida espiritual, senão também da vida material,
como sucedeu, por exemplo, com muitos dos banqueiros dos primórdios do
capitalismo, severos calvinistas, e, tanto quanto é possível supor, de uma
honestidade pessoal e profissional à prova de qualquer tentação demoníaca em
forma de subprime. O leitor estará talvez a pensar que esta súbita inflexão no
transcendente assunto que me havia proposto abordar, o sínodo episcopal reunido
em Roma, se destinaria, afinal, a introduzir, com mais ou menos jeito
dialéctico, uma crítica ao comportamento irregular (é o mínimo que se pode
dizer) dos banqueiros nossos contemporâneos. Não foi essa a minha intenção nem
essa é a minha competência, se alguma tenho.
Voltemos então a Ratzinger. A este homem, decerto
inteligente e informado, com uma vida activíssima nos âmbitos vaticanais e
adjacentes (baste dizer que foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé,
continuadora, por outros métodos, do ominoso Tribunal do Santo Ofício, mais conhecido
por Inquisição), ocorreu-lhe algo que não se esperaria de alguém com a sua
responsabilidade, cuja fé devemos respeitar, mas não a expressão do seu
pensamento medieval. Escandalizado com os laicismos, frustrado pelo abandono
dos fiéis, abriu a boca na missa com que iniciou o sínodo para soltar
enormidades como estas: “Se olhamos a História, vemo-nos obrigados a admitir
que não são únicos este distanciamento e esta rebelião dos cristãos
incoerentes. Em consequência disso, Deus, embora não faltando nunca à sua
promessa de salvação, teve de recorrer amiúde ao castigo”. Na minha aldeia
dizia-se que Deus castiga sem pau nem pedra, por isso é de temer que venha por
aí outro dilúvio que afogue de uma vez os ateus, os agnósticos, os laicos em
geral e outros fautores de desordem espiritual. A não ser, sendo os desígnios
de Deus infinitos e ignotos, que o actual presidente dos Estados Unidos já
tenha sido parte do castigo que nos está reservado. Tudo é possível se o quer
Deus. Com a imprescindível condição de que exista, claro está. Se não existe
(pelo menos nunca falou com Ratzinger), então tudo isto são histórias que já
não assustam ninguém. Que Deus é eterno, dizem, e tem tempo para tudo. Eterno
será, admitamo-lo para não contrariar o papa, mas a sua eternidade é só a de um
eterno não-ser.
Autor: José Saramago Publicação vista 2233 vezes
Existe 12 comentários para esta publicação
segunda-feira, 21/6/2010 por José Jorge Brito Deus e Ratzinger
Sempre na história da Igreja pessoas cresceram como intelectuais - Ou discursando a seu favor ou contra. É normal que comentem sobre ela...é sinal que existe. Quando deixarem de comentar estarei preocupado...será seu fim?
sábado, 19/6/2010 por Maria Aparecida JOSÉ SARAMAGO
Chorei a sua morte!! mesmo sabendo que é um fato... Deus existe... Paulo Stefano falou tudo! tbém penso assim. Meus sentimentos aos amigos e familiares deste insquecível ser humano.
sábado, 19/6/2010 por hc-maia Funk-se quem puder...é imperativo viver...
O Mago Sara,(SARAMAGO ao contrário),terá uma conotação maior da sua Obra,com a sua morte...claro!! O Ratzinger está aí pra pongar.Então diria Gil:- "Funk-se quem puder..é imperativo viver" ( a censura liberou!!!)
quarta-feira, 28/1/2009 por Lorene Figueiredo O Foco e a Falsa Polêmica
O autor não está quetionando a existência de Deus,mas usando a polêmica tão antiga quanto a própria fé para criticar o anacronismo da Igreja em "escolher" um Papa fundamentalista, pernteceu aos quadros nazistas, e perseguiu padres progressistas na A.
sábado, 24/1/2009 por Edvaldo deAlmeida Salve, salve José Saramago!!!
Como tudo que tem escrito, tanto seus livros como máterias como esta, é de sublime categoria e inteligência! Leitor assíduo de Saramago, gosto especialmente do Evangelho Segundo Jesus Cristo!!! Incomparável, José Saramago, salve , salve!
sexta-feira, 23/1/2009 por Ester Janczeski Sim, existe dentro de nós!
Penso como vc , Paulo Stefano.
E um dia toda humanidade irá pensar assim.
Estamos além do nosso tempo por pensarmos assim!
sexta-feira, 23/1/2009 por Rosália - SSA/BA Deus e Ratzinger
Deus existe. Concordo plenamente com Paulo Stefano. Parabéns Paulo.
sexta-feira, 23/1/2009 por Nadir Evangelho Segundo Saramago
Nada mal para quem já escreveu um Evangelho segundo ele mesmo, o próprio. Mas não se enganem, com ou sem "ratio", só se atiram pedras em árvores carregadinhas de frutos...
sexta-feira, 23/1/2009 por Adelina SEM PALAVRAS...
Digno de lástima a leitura deste Texto...
SEM PALAVRAS...
sexta-feira, 23/1/2009 por Artur coitado dele
sem palavras
sexta-feira, 23/1/2009 por SILVIO ABREU CAMPOS NEM RATZINGER, NEM SARAMAGO
Penso que Deus, na sua onisciência e ubiquidade assiste perplexo essa diatribe entre Saramago e Ratzinger, preferindo alhear-se dessa discussão sem importância, preferindo a comodidade da fé daqueles que jamais deixarão de amá-lo.
sexta-feira, 23/1/2009 por Paulo Stefano Deus existe !
Deus existe no coração de cada um , cada ser humano é o templo do seu Deus , ele existe com Papa sem Papa com Igreja sem Igreja com Biblia sem Biblia basta querer e respeitar cada ser na sua Individualidade e ponto final.