Uma vez um crítico acusou-o de ser um escritor de
“vagabundos e putas”. Jorge Amado não se mostrou ofendido. Antes confirmou: “É
o que sou.” Mas era muito mais do que isso. Nos romances onde retratou a
sociedade nordestina, escolheu os heróis entre os marginalizados e pintou-os
nas suas misérias. Deu-lhes outra condição sem lhes retirar o mistério. Negros,
vagabundos, trabalhadores das plantações de cacau, pescadores da Bahia, meninos
abandonados, prostitutas de rua ou de bordel... Na França, onde tinha a sua
segunda casa, chamavam-lhe o Victor Hugo brasileiro. E se os meninos de rua
foram eleitos em Capitães de Areia (1937) – numa fase em que Jorge Amado ainda
militava no Partido Comunista e escrevia romances proletários onde se
destacavam a ideologia e a necessidade de justiça social –, a partir de
Gabriela Cravo e Canela (1958) seriam as mulheres as personagens preferidas de
Amado para contar e projetar a vida da Bahia. Talvez seja mais correto dizer
que Jorge Amado foi um escritor de mulheres. De todas as mulheres. Prostitutas
e filhas de família, beatas e amantes, passionárias ou guerrilheiras. Deu-lhes
voz e mitificou-as. No livro Navegação de Cabotagem, uniu-as num único nome:
Maria. Mas nos seus romances chamou-lhes Gabriela, Flor, Tereza ou Tieta. Tão
fortes e sedutoras que saíram das histórias e adquiriram vida própria. Jorge
Amado, o seu inventor, falava delas como se fossem gente com alma para lá da
ficção.
Nome
de mulher - São quatro os romances de Jorge Amado com
nome de mulher: Gabriela Cravo e Canela, Dona Flor e Seus Dois Maridos, Tereza
Batista Cansada de Guerra e Tieta do Agreste. Dos mais populares, diriam uns.
Dos melhores, notariam outros. Foram dos mais lidos e alguns muitos marcantes
na carreira do escritor.
Gabriela Cravo e Canela começa com um crime. O coronel
Jesuíno Mendonça, fazendeiro, mata a tiros sua mulher, D. Sinhazinha, quando a
encontra na cama com o dr. Osmundo Pimentel, cirurgião-dentista, chegado há
pouco a Ilhéus. “... Honra de marido enganado só com a morte dos culpados podia
ser lavada.” Assim foi, no tempo de 1925, época em que a Bahia prosperava à
custa do dinheiro do cacau. O dia em que corre a notícia do crime é o mesmo em
que o árabe Nacib, dono do Bar Vesúvio, fica sem cozinheira, vendo-se obrigado
a correr mundo até encontrar, vinda do sertão, uma moça para todo o serviço.
Debaixo da sujidade e dos trapos, Gabriela revela-se com o seu sorriso. Rasgado
e a propósito de nada. Como uma criança, ela ria com os olhos e a boca. Nacib
deixa-se seduzir pelo tempero e pelos suspiros de Gabriela. Larga o quarto dela
e convida-a para o seu. “E como viver sem ela, sem seu riso tímido e claro, sua
cor queimada de canela, seu perfume de cravo, seu calor, seu abandono, sua voz
a dizer-lhe ‘moço bonito’, o morrer noturno nos seus braços, aquele calor do
seio, fogueira de pernas, como?”
Bonita demais- Casam-se e a liberdade de Gabriela perde-se atrás das obrigações de boa esposa. No dia em que Nacib a encontra nos braços de Tonico Bastos, ao contrário de Jesuíno, não é capaz de a matar. O jeito é anular o casamento. Mais tarde, há de perdoar-lhe. “O amor não se prova nem se mede. É como Gabriela. Existe, isso basta...” E voltará a suspirar com ela num tempo que coincidirá com a primeira condenação de um homem por matar a mulher e o seu amante em terras da Bahia. Esse homem é Jesuíno Mendonça.
Gabriela não morre porque não percebe a traição e “é
bonita demais”. Simplesmente dá-se a quem quer, imitando o que até então era a
condição masculina.
Jorge Amado confessou um dia que gostaria de ser
lembrado como “um sensual e romântico baiano. Sou como as minhas personagens –
às vezes as femininas.” Gabriela terá sido a mais popular de todas e ficará
para sempre ligada à imagem de Sônia Braga, a atriz que a materializou no
cinema e na televisão, com seus meneios, rebolar de ancas e palavras
quentes.
Pequena
e rechonchuda - Quando foi editado o romance Dona Flor e
Seus Dois Maridos, o sucesso não se fez esperar. A sua adaptação ao cinema por
Bruno Barreto foi o maior êxito de bilheteria de todos os tempos no Brasil.
Conta a história de uma mulher, professora de culinária, que fica viúva em
pleno Carnaval, quando o marido – o mulherengo Vadinho – desfilava vestido de
baiana dançando samba. Dona Flor é ainda muito jovem e, no dizer de Amado,
ainda bonita. “... Pequena e rechonchuda, de uma gordura sem banhas, a cor
bronzeada de cabo-verde, os lisos cabelos tão negros a ponto de parecerem
azulados, olhos de requebro e os lábios grossos um tanto abertos sobre os
dentes alvos. Apetitosa, como costumava classificá-la o próprio Vadinho em seus
dias de ternura, raros talvez, porém inesquecíveis. Quem sabe, devido às
atividades culinárias da esposa, nesses idílios Vadinho dizia-lhe “Meu manuê de
milho verde, meu acarajé cheiroso, minha franguinha gorda”, e tais comparações
gastronômicas davam a justa idéia de certo encanto sensual e caseiro de Dona
Flor a esconder-se sob uma natureza tranquila e dócil. Vadinho conhecia-lhe as
fraquezas e as expunha ao sol, aquela ânsia controlada de tímida, aquele
recatado desejo fazendo-se violência e mesmo incontinência ao libertar-se na
cama”.
Dona Flor cansa-se de viver de recordações e casa em
segundas núpcias com o farmacêutico Teodorico Madureira, homem pacato, sem o
fogo de Vadinho, que lhe dá uma vida descansada, mas um pouco monótona. Até ao
dia em que Dona Flor encontra Vadinho, nu, estendido na cama do casal,
invisível a todos, exceto a ela. Vem retomar os seus direitos de marido. Com
ele, regressa a alegria aos dias de Dona Flor, que passa a ter dois maridos: um
no céu e outro na terra.
Jorge Amado brincava e divertia-se com o destino que dá
às suas personagens. Vargas Llosa, o escritor peruano, elogia-lhe o “engenho”,
esse com que os seus heróis conseguem ultrapassar as desventuras do destino.
Pode ser otimismo, pode ser ingenuidade. Llosa chama-lhe “amor pela vida” num
artigo que escreveu para o “Jornal de Poesia de Fortaleza”, quando foi à Bahia
celebrar a festa dos 85 anos de Jorge Amado: “O amor pela vida é tão grande
neles, que são capazes, como ocorre à excelente Dona Flor e seu marido defunto,
de ressuscitar os mortos e restituí-los a uma existência que, com todas as
misérias que ela implica, está repleta de momentos de prazer e felicidade. Esse
desfrute dos pequenos prazeres, ao alcance do ser anônimo, que vibra em todas as
suas histórias – saborear um copo de cerveja gelada, uma gostosa conversa,
contar uma piada espirituosa, elogiar um corpo desejável que passa, cultivar
amizade fraterna, ver uma árvore que rasga o céu imutável – é intenso e
contagia os leitores, que costumam sair dessas páginas convencidos