As baianas de Jorge

domingo, 14 de dezembro de 2008

Gabriela, Dona Flor, Tereza Batista, Tieta. Mulheres que deram nome a quatro romances de Jorge Amado, o escritor que um dia disse que gostaria de ser recordado como um romântico e sensual baiano. Exatamente como pintou as suas heroínas.

As baianas de Jorge



Uma vez um crítico acusou-o de ser um escritor de “vagabundos e putas”. Jorge Amado não se mostrou ofendido. Antes confirmou: “É o que sou.” Mas era muito mais do que isso. Nos romances onde retratou a sociedade nordestina, escolheu os heróis entre os marginalizados e pintou-os nas suas misérias. Deu-lhes outra condição sem lhes retirar o mistério. Negros, vagabundos, trabalhadores das plantações de cacau, pescadores da Bahia, meninos abandonados, prostitutas de rua ou de bordel... Na França, onde tinha a sua segunda casa, chamavam-lhe o Victor Hugo brasileiro. E se os meninos de rua foram eleitos em Capitães de Areia (1937) – numa fase em que Jorge Amado ainda militava no Partido Comunista e escrevia romances proletários onde se destacavam a ideologia e a necessidade de justiça social –, a partir de Gabriela Cravo e Canela (1958) seriam as mulheres as personagens preferidas de Amado para contar e projetar a vida da Bahia. Talvez seja mais correto dizer que Jorge Amado foi um escritor de mulheres. De todas as mulheres. Prostitutas e filhas de família, beatas e amantes, passionárias ou guerrilheiras. Deu-lhes voz e mitificou-as. No livro Navegação de Cabotagem, uniu-as num único nome: Maria. Mas nos seus romances chamou-lhes Gabriela, Flor, Tereza ou Tieta. Tão fortes e sedutoras que saíram das histórias e adquiriram vida própria. Jorge Amado, o seu inventor, falava delas como se fossem gente com alma para lá da ficção. 

Nome de mulher - São quatro os romances de Jorge Amado com nome de mulher: Gabriela Cravo e Canela, Dona Flor e Seus Dois Maridos, Tereza Batista Cansada de Guerra e Tieta do Agreste. Dos mais populares, diriam uns. Dos melhores, notariam outros. Foram dos mais lidos e alguns muitos marcantes na carreira do escritor.  Em 1958, quando inverteu o sentido da sua produção literária – menos política e mais crônica e costumes, picaresca e apimentada – Amado escolheu uma mulher. Chamou-lhe Gabriela. Deu-lhe o cheiro do cravo e a cor da canela. Fê-la livre e risonha. Sabedora na arte de amar, com tanto de ingenuidade quanto de malícia e sensual como nenhuma outra. Integrou-a no mundo onde nasceu: o do cacau e seus coronéis. E com ela procedeu a uma revolução dos usos tradicionais. No papel. 

Gabriela Cravo e Canela começa com um crime. O coronel Jesuíno Mendonça, fazendeiro, mata a tiros sua mulher, D. Sinhazinha, quando a encontra na cama com o dr. Osmundo Pimentel, cirurgião-dentista, chegado há pouco a Ilhéus. “... Honra de marido enganado só com a morte dos culpados podia ser lavada.” Assim foi, no tempo de 1925, época em que a Bahia prosperava à custa do dinheiro do cacau. O dia em que corre a notícia do crime é o mesmo em que o árabe Nacib, dono do Bar Vesúvio, fica sem cozinheira, vendo-se obrigado a correr mundo até encontrar, vinda do sertão, uma moça para todo o serviço. Debaixo da sujidade e dos trapos, Gabriela revela-se com o seu sorriso. Rasgado e a propósito de nada. Como uma criança, ela ria com os olhos e a boca. Nacib deixa-se seduzir pelo tempero e pelos suspiros de Gabriela. Larga o quarto dela e convida-a para o seu. “E como viver sem ela, sem seu riso tímido e claro, sua cor queimada de canela, seu perfume de cravo, seu calor, seu abandono, sua voz a dizer-lhe ‘moço bonito’, o morrer noturno nos seus braços, aquele calor do seio, fogueira de pernas, como?” 

Bonita demais- Casam-se e a liberdade de Gabriela perde-se atrás das obrigações de boa esposa. No dia em que Nacib a encontra nos braços de Tonico Bastos, ao contrário de Jesuíno, não é capaz de a matar. O jeito é anular o casamento. Mais tarde, há de perdoar-lhe. “O amor não se prova nem se mede. É como Gabriela. Existe, isso basta...” E voltará a suspirar com ela num tempo que coincidirá com a primeira condenação de um homem por matar a mulher e o seu amante em terras da Bahia. Esse homem é Jesuíno Mendonça. 

Gabriela não morre porque não percebe a traição e “é bonita demais”. Simplesmente dá-se a quem quer, imitando o que até então era a condição masculina. 

Jorge Amado confessou um dia que gostaria de ser lembrado como “um sensual e romântico baiano. Sou como as minhas personagens – às vezes as femininas.” Gabriela terá sido a mais popular de todas e ficará para sempre ligada à imagem de Sônia Braga, a atriz que a materializou no cinema e na televisão, com seus meneios, rebolar de ancas e palavras quentes. 

 Maliciosa relação - Em 1995, a propósito da feira do livro de Paris, Janer Cristaldo, jornalista e escritor brasileiro, publicou um artigo, disponível no site da revista “Lire”, onde comparava Paris a um bordel e Jorge Amado – o escritor homenageado desse ano – à sua maior prostituta. Acusava-o de ser um ex-comunista vendido ao conforto do capitalismo americano que tanto condenara, capaz de hipotecar a sua alma à fama. E pegava no desejo de Amado de ser lembrado através dos traços de caráter de algumas das mulheres que inventou, para estabelecer a maliciosa relação com Dona Flor, heroína do romance Dona Flor e Seus Dois Maridos (1966). “Talvez a sua personagem feminina que melhor representa a ambivalência do sensual e romântico baiano: Dona Flor, aquela que calmamente manobrava dois maridos.” Segundo este ponto de vista, ao prestar homenagem a Amado, Paris estava distinguindo com uma medalha um “escritor venal” que prestava um mau serviço ao Brasil, retratando-o como uma pequena república soviética. Tudo por uma rápida ascensão literária e ganhos pessoais. O tom do ensaio crítico, intitulado Dr. Fausto da Bahia, não terá impressionado o escritor baiano, que nunca ligou muito para críticos. Para ele, o que importava era o julgamento dos leitores e esses nunca lhe regatearam elogios. 

Pequena e rechonchuda - Quando foi editado o romance Dona Flor e Seus Dois Maridos, o sucesso não se fez esperar. A sua adaptação ao cinema por Bruno Barreto foi o maior êxito de bilheteria de todos os tempos no Brasil. Conta a história de uma mulher, professora de culinária, que fica viúva em pleno Carnaval, quando o marido – o mulherengo Vadinho – desfilava vestido de baiana dançando samba. Dona Flor é ainda muito jovem e, no dizer de Amado, ainda bonita. “... Pequena e rechonchuda, de uma gordura sem banhas, a cor bronzeada de cabo-verde, os lisos cabelos tão negros a ponto de parecerem azulados, olhos de requebro e os lábios grossos um tanto abertos sobre os dentes alvos. Apetitosa, como costumava classificá-la o próprio Vadinho em seus dias de ternura, raros talvez, porém inesquecíveis. Quem sabe, devido às atividades culinárias da esposa, nesses idílios Vadinho dizia-lhe “Meu manuê de milho verde, meu acarajé cheiroso, minha franguinha gorda”, e tais comparações gastronômicas davam a justa idéia de certo encanto sensual e caseiro de Dona Flor a esconder-se sob uma natureza tranquila e dócil. Vadinho conhecia-lhe as fraquezas e as expunha ao sol, aquela ânsia controlada de tímida, aquele recatado desejo fazendo-se violência e mesmo incontinência ao libertar-se na cama”. 

Dona Flor cansa-se de viver de recordações e casa em segundas núpcias com o farmacêutico Teodorico Madureira, homem pacato, sem o fogo de Vadinho, que lhe dá uma vida descansada, mas um pouco monótona. Até ao dia em que Dona Flor encontra Vadinho, nu, estendido na cama do casal, invisível a todos, exceto a ela. Vem retomar os seus direitos de marido. Com ele, regressa a alegria aos dias de Dona Flor, que passa a ter dois maridos: um no céu e outro na terra. 

Jorge Amado brincava e divertia-se com o destino que dá às suas personagens. Vargas Llosa, o escritor peruano, elogia-lhe o “engenho”, esse com que os seus heróis conseguem ultrapassar as desventuras do destino. Pode ser otimismo, pode ser ingenuidade. Llosa chama-lhe “amor pela vida” num artigo que escreveu para o “Jornal de Poesia de Fortaleza”, quando foi à Bahia celebrar a festa dos 85 anos de Jorge Amado: “O amor pela vida é tão grande neles, que são capazes, como ocorre à excelente Dona Flor e seu marido defunto, de ressuscitar os mortos e restituí-los a uma existência que, com todas as misérias que ela implica, está repleta de momentos de prazer e felicidade. Esse desfrute dos pequenos prazeres, ao alcance do ser anônimo, que vibra em todas as suas histórias – saborear um copo de cerveja gelada, uma gostosa conversa, contar uma piada espirituosa, elogiar um corpo desejável que passa, cultivar amizade fraterna, ver uma árvore que rasga o céu imutável – é intenso e contagia os leitores, que costumam sair dessas páginas convencidos


Autor: Celso Mathias
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Existe 1 comentário para esta publicação
segunda-feira, 15/12/2008 por Marizete Silva do Nascimento
As Bahianas de Jorge
Eu me sinto "UMA BAHIANA DE JORGE", me identifico muito com TIETA, claro que menos bela e com outras tantas, comparando minhas histórias de vida com as descritas por JA para suas Bahianas.Só que sou "sertaneja e não sulista.
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