Não se deve atribuir a iniciativa a nenhum mandatário
contemporâneo. Dividir o deflúvio do Rio São Francisco é uma alternativa
sugerida desde os tempos de Dom Pedro II, recrudescida com Getúlio Vargas,
reavaliada por Itamar Franco, analisada por Fernando Henrique Cardoso e
colocada no esteio da execução por Luís Inácio Lula da Silva. Tão antiga quanto
polêmica, a transposição é uma discussão apaixonante, entre seus defensores e
seus críticos. Há quem veja nas novas vazantes a esperança de dias melhores
para milhares de comunidades. Do outro lado, prevalece o ceticismo de quem já
viu tal história, com o final feliz apenas para os donos do poder.
O debate arrefeceu ao mesmo tempo em que 600 homens do
Exército arregaçaram as mangas para dar início à transposição. Quem assiste
tudo de perto não duvida das transformações que estão por vir. “A água nem
chegou e já temos uma nova realidade. O semi-árido está se revitalizando com o
movimento econômico aquecido pelos operários. Em Salgueiro (PE), no antigo
polígono da maconha, há grande expectativa de desenvolvimento social”, diz
Francisco Campos de Abreu, diretor de projetos estratégicos da Secretaria
de Infra-Estrutura Hídrica, do Ministério da Integração Regional.
Quanto à resistência que o programa enfrentou,
Francisco refuta as suspeitas infundadas. “Com apenas 1,4% da vazão de 1.850 m³
por segundo, registrado na foz do São Francisco, será possível dar uma nova
vida a cerca de 12 milhões de pessoas. O deflúvio do rio será preservado e a
esperança da população do agreste e do semi-árido, devolvida.” O engenheiro
Jorge Vernaglia, que presidiu o Conselho de Transição do Consórcio das Vias Hidrográficas
dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, descreve a dimensão geográfica da
transposição: “a princípio os benefícios se concentram no Nordeste
Setentrional, onde se verifica o drama secular da fome e miséria do povo que a
habita. Para elucidar melhor, compõem esta área os estados do Ceará, Paraíba,
Rio Grande do Norte, o Agreste e o Sertão do estado de Pernambuco e parte do
estado de Alagoas”.
A obra se divide em duas frentes: o Eixo Norte, com
extensão de aproximadamente 450 km, avançando por Pernambuco, Ceará e extremo
sul do Rio Grande do Norte; e o Eixo Leste com 220 km, passando por outra zona
de Pernambuco e pela Paraíba. Nas duas etapas estão sendo construídos os canais
de aproximação e reservatórios. “Até 2010 vamos concluir o Eixo Leste e atingir
até 60% do Eixo Norte. Os trabalhos vão ganhar ritmo com reforço de 800 homens
das empreiteiras que se juntam ao Exército”, explica o diretor da Secretaria de
Infra-Estrutura Hídrica. Mas Jorge Vernaglia faz um alerta pertinente: “O
cineasta Rodolfo Nanni lançará em setembro o seu segundo filme, O Retorno,
sobre a situação de vida do nordestino (o primeiro é de 1958). Uma fala do
agricultor Manoel Francisco do Nascimento é oportuna: 'Não adianta nada colocar
um mar de água como aquele (aqui se refere a um dos enormes açudes construídos
pelo governo do Estado do Pernambuco) se o agricultor não tem dinheiro para
fazer a irrigação, é preciso comprar bomba, mangueira, parte elétrica e quem
tem dinheiro? '“.
Francisco Campos de Abreu tem a resposta providencial:
“Uma portaria do Ministério da Integração Regional criou um grupo
interministerial para tratar dos impactos e necessidades da transposição. Foram
instituídos conselhos gestores e existem 36 projetos básicos que atendem às
questões ambientais. Com todo esse respaldo, cada comunidade será orientada e
financiada na busca dos meios de desenvolvimento mais apropriados”.
Vernaglia reforça essa possibilidade com um exemplo de
sucesso: “temos a CODEVASF, Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São
Francisco e do Parnaíba, um projeto que transformou a região em pólo formador
de riqueza e desenvolvimento sustentável, fixando o homem à sua terra.
Transformou a fruticultura no seu maior vetor de crescimento econômico. Para
ratificarmos a importância da fruticultura, como atividade geradora de trabalho
e renda, lembramos que, para uma mesma área de plantio de soja, onde se emprega
um único homem, no plantio de frutas se empregam 76 homens”. Se o curso do
projeto for tão harmonioso quanto o curso do São Francisco, o engenheiro diz
não ter por que duvidar do êxito: “Quem assume a defesa ou a crítica ao projeto
entra em debates passionais, messiânicos ou eleitoreiros. A transposição deve
ser tratada como um assunto de Estado e não de governo. Tenho a crença firme de
que, se o programa for levado a termo, daqui a alguns anos iremos conviver com
o sucesso do projeto. Aí, sim, poderemos nos orgulhar de nós mesmos e do nosso
país.”
Que as “asas-brancas” voltem a voar no sertão. Que os
“paus-de-arara” virem lendas do Cariri e que os “remansos e casas novas”
decorem o novo cenário que brota no agreste. Que as abençoadas águas do Velho
Chico conduzam à redenção de uma saga chamada seca, sem servir de fertilizante
para os cursos coronelistas do Nordeste.