Entramos em um trem com hora e destinos marcados e, assim que trocamos a nervosa estação ferroviária pelas ruas desconhecidas, ganhamos a sensação de entrar numa máquina do tempo. Roterdã é assim. Uma pequena metrópole que perdeu a conta da idade, onde tão facilmente se descobrem velhas e sombrias casas que, três séculos antes, abrigaram os peregrinos antes de navegarem rumo ao Novo Mundo, como se esbarra em edifícios de arquitetura futurista capazes de desafiar a gravidade. Da mesma forma que se entra numa rua onde flutuam aromas de especiarias indianas e se sai com os ouvidos e o olhar inundados por ritmos nascidos na África. Um coquetel de surpresas e contrastes servido com requintes europeus. É exatamente este cenário sem fronteiras que Roterdã faz questão de apresentar como cartão-de-visita. E a imagem não podia fazer mais sentido. Afinal, aquela que apelidam de “a outra cidade da Holanda”, numa óbvia alternativa ao buliço de Amsterdã, refugia cerca de 125 nacionalidades em pouco mais de 600 mil habitantes. Uma realidade que ajuda a fazer dos tradicionais moinhos, tulipas, queijo e socas de madeira boas sugestões para brindes e postais ilustrados. Signo da água - Dona do maior porto do mundo, não é de estranhar que Roterdã viva sob o signo da água. Aliás, a própria origem do nome vem daí: “Rotte” (nome do rio que a atravessa) e “dam”(que significa dique, a proeza de engenharia com a qual os holandeses roubaram terra ao mar).
Mas não é pelos imponentes navios e cargueiros que todos os dias atravessam o famoso canal de Nieuwe que ela é mais conhecida. Grande parte da sedução desta cidade holandesa mora na arquitetura moderna e abstrata, de traços alheios aos padrões mais convencionais, que a tornam um verdadeiro ateliê vivo e em grande estilo. O coração da cidade, arrasado em maio de 1940 pelos bombardeios das tropas de Hitler, acabou por se transformar no terreno de ensaio de arquitetos, engenheiros e artistas cotados entre os melhores do mundo, caso de Jahn, Foster, Quist, Klunder, Maaskant e muitos outros. Totalmente reconstruído, o centro de Roterdã apresenta hoje marcas bem vivas de espírito criativo, sobretudo nos últimos 20 anos. A começar pelas fantásticas Casas Cúbicas (Cubes Houses), desenhadas por Piet Blom, que mais parecem um delírio arquitetônico digno de uma Alice no País das Maravilhas. Surpreendentemente, ainda nenhum dos seus inquilinos revelou sinais de loucura, pelo que uma olhadinha na única casa disponível para visitas é recomendável, sem perigo de contra-indicações. Logo atrás, a torre que batizaram de O Lápis (The Pencil) é só mais uma prova de que a ironia também se materializa no concreto. Não muito longe, a discreta entrada para a estação subterrânea de trens de Blaak ganha dimensão com uma escultura de aço e vidro que se ergue no ar como uma concha.
Surpresas-E dar de cara com esculturas moldadas pelo gênio de Picasso, de Kooning, Gabo, Zadkine ou Rodin é um imprevisto que pode ocorrer ao dobrar a esquina. Maravilhas da arte e da arquitetura moderna que se repetem ao longo da pacata cidade, em obras tão insuspeitas como as sedes da Nationale Nederlanden, o edifício mais alto de Roterdã, e da Unilever ou o quartel-general da KPN Telecom, que fica próximo de um dos últimos orgulhos dos seus habitantes: a ponte de Eramus. Uma obra em homenagem a um dos fundadores do Humanismo e, provavelmente, o cidadão mais famoso da cidade. O mesmo que agora empresta seu nome a uma das estruturas mais marcantes da paisagem de Roterdã, juntamente com o Euromast, uma torre de 100 metros construída como símbolo de uma cidade dinâmica. Em constante mutação. Parte pré-histórica - O mesmo já não poderá se dizer de Delfshaven, a bucólica zona velha da cidade, em tempos o porto de Delft. Sobrevivente ao tempo e aos ataques da Segunda Guerra Mundial, a parte histórica de Roterdã mantém-se fiel à época dos peregrinos que, no século XVII, abalaram a descoberta da América. Hoje as casas aconchegam discretos antiquários, alfarrabistas e restaurantes, com vista para um velho canal que ainda mantém suspensa uma ponte de madeira. Mesmo curto, o passeio vale a pena. Nem que seja para conhecer o moinho que ainda hoje mói os cereais usados na cerveja artesanal, com o qual fabricam também velas, manteiga, mostarda e xarope. Além da antiga destilaria de gim holandês, sobram ainda vestígios da memória de Piet Heyn, um verdadeiro herói desde o dia em que se lançou ao mar desconhecido e acabou capturado pela Armada Espanhola, em 1628.
Dois dedos de prosa-Histórias que se podem revisitar no museu local de Dubbelde Palmboom. Museus, aliás, é o que não falta em Roterdã, desde os típicos herdeiros da história até aos que exibem feitos mais recentes. A maioria concentra-se em pequenos edifícios e quarteirões ao redor de Museum Park, como o de Boijmans Van Beuningen, onde obras assinadas de Bosch, Bruegel, Rubens, Rembrant, Degas ou Monet convivem com as de Dalí e Van Gogh. Ou o Chabotmuseum, que aloja quadros e esculturas do pintor holandês Hendrik Chabot. Ou mesmo o famoso Kunsthal Rotterdam que, sem uma exposição permanente, marca a vida cultural da cidade com constantes iniciativas.
Tudo isso sem esquecer o imperdível Prins Hendrik Maritime Museum, para quem os segredos do mar e dos portos ainda têm muito a desvendar. E esta é só uma amostra do que há para ser visto por lá. É que, mesmo numa cidade em que o sol tem vergonha de aparecer todos os dias, as esplanadas e os passeios marcam pontos entre uma população descontraída. Sobretudo entre os numerosos estudantes que a tornam mais colorida e vibrante que o normal. E enchem os cafés e danceterias todas as noites. Afinal, não é à toa que Roterdã tem o maior número de pubs por metro quadrado da Holanda. Os seus habitantes preferem gastar a hora do almoço entre um sanduíche e um café, mas não abrem de dois dedos de prosa, ao final da tarde, com uma generosa cerveja e a companhia dos amigos.
Nos arredores-E se a pacatez da cidade alguma vez for maçante, nada como seguir a recomendação de alguns holandeses mais cosmopolitas para quem “o melhor de Roterdã é ficar só a uma hora de Amsterdã...” Quem andar fugido das multidões apressadas da capital e das “coffe shops” apinhadas, decerto apreciará o ambiente mais recatado da segunda maior cidade holandesa. Mesmo as lojas onde se podem comprar drogas leves afastaram-se do centro, sendo mais fácil encontrá-las nos bairros periféricos, onde o ambiente é bem mais sombrio e as diferentes nacionalidades dos residentes marcam as cores e os cheiros das ruas. Mas, seja onde for, o cenário repete-se em pequenos detalhes, como as pachorrentas bicicletas que se multiplicam pelas estradas, a paisagem eternamente plana, as pessoas apinhadas nos bancos de jardim como lagartos apaziguados pelo calor sempre que o sol lhes sorri por instantes. Discretos prazeres de uma cidade que vive no ritmo do seu rio. Serena, mas sempre em movimento Guia Hotéis Uma visita ao centenário Hotel New York, na zona ribeirinha de Wilhelminapier, é obrigatória, nem que seja só para se embebedar de memórias e do ambiente romântico de final de século. Se preferir um lugar mais central, a escolha é variada, mas os preços rondam o topo.
A começar pelo Hilton, na rua Weena, perto da estação de trens. Logo em frente, o Grand Hotel Central é um quatro estrelas mais pitoresco que oferece acomodações quase pela metade do preço, muito embora as reduções também cheguem ao serviço. Mas o ambiente mais jovem e descontraído pode compensar. Para um alojamento mais histórico, nada como procurar o Ocen Paradise, um hotel flutuante de inspiração chinesa, em Parkhaven, junto ao gigante Euromast. Restaurantes Se está habituado a jantar tarde, prepare-se para mudar o ritmo. Os holandeses não são grandes apreciadores de ceias, e encontrar um restaurante com cozinha funcionando depois da dez da noite é quase um milagre. Justiça seja feita a Porto Bello, no número 28 da rua Kruiskade, que além de se estender até às duas e meia da manhã com pratos de inspiração francesa e italiana, recria o ambiente de uma tradicional taverna holandesa. Restaurantes estrangeiros, sobretudo indonésios, gregos, chineses e argentinos, são muitos. O difícil é escolher, mas no centro da cidade o que não falta são opções. Para estômagos mais requintados, nada como tentar o Magido Café Restaurant, no número 185 da Spui, em Hague – que além de colecionar prêmios, reúne especialidades do mundo inteiro – ou o T’Kokkeltje, em Scheveningen, especialista em pratos de peixe. Aliás, é junto à zona portuária de Oude Haven que se encontram as especialidades do mar em ambientes mais refinados e bucólicos. Vá a Roterdã!