Miguel de Cervantes, falando de seu Dom Quixote.
Era uma vez um quando em que as coisas eram tão singelas que a gente simplesmente escrevia. Do outro lado, alguém nos encontrava. Não nos estranhávamos. Nem eu à minha escrita, nem o leitor ao que lia. Antes nos reconhecíamos.
Mas esse quando passou, ou desapareceu, ou não está mais ao alcance da minha consciência. Foi substituído por este presente incerto, instável, onde as coisas não são o que parecem ser. Nem as pessoas. Estas se me afiguram tão irresgatáveis quanto as palavras, aquelas que então livremente seguiam escrita afora, sem medo algum de serem distorcidas. Com prodigalidade, apareciam enfileiradas atrás do cursor ou da ponta do grafite macio que gosto de usar na lapiseira deslizante sobre o papel. Esse detalhe importa ao leitor? Acredito que sim. Explico. Cervantes encerra seu Dom Quixote assumindo o herói que nascia dele, para praticar as ações que ele escrevia com uma pena de avestruz que nos é descrita como grosseira e mal aparada. E isso então não prova que se escreve mais pela escrita em si do que pelas ideias? Eis uma tese não mais esdrúxula do que muitas que nos cercam.
Falo, enfim, de um quando nostálgico: eu nem sabia o que ia escrever, e a escrita acontecia. Não era necessário ser calculista. Não era necessário ser metódico, nem dizer precisamente alguma coisa comprometida com um sentido qualquer. Porque quem confere sentido ao que lê é o leitor. Tampouco era preciso anunciar de antemão exatamente do que se ia falar nem como se ia falar desse quê, para, finalmente, concluir alguma coisa.
O leitor sempre me adivinhava. Reconhecia aquelas pistas secretas escondidas entre pontos, vírgulas e travessões. Hoje duvido do que reconheço nesse real proteiforme. Porque me assustam as mudanças de humor quixotescas nas quais se precipita uma gente que, até bem pouco, me parecia tão normal. É. Normal. Tipo assim: previsível, ponderada, receptiva às linhas que minha escrita deixava atrás de si. Mas não. Deparo-me com gente que ataca ideias com o mesmo ímpeto do herói de Cervantes, quando ele investia contra moinhos de vento.
A outra opção seria a minha anormalidade e não a dos outros. Será? Longe de mim descartá-la. Mas não. Aliás, faz tempo que eu não surto. Vai ver são os hormônios repostos que impedem as terríveis oscilações onde calor e frio se alternam com sorrisos e lágrimas. Até que sou estável. Então, resta-me desconfiar do resto do mundo, que não se deixa resgatar de quando algum.
Confesso que tenho experimentado uma brutal falta de referências para me relacionar em um ambiente que se bipolariza. Mesmo vivendo em um estado da federação onde as coisas são muito coloradas ou muito gremistas, onde a identidade não é um conceito, mas uma prática cotidiana que se evidencia no sotaque, no mate, no vestuário. Posso conviver sem maiores estranhamentos com tais hábitos, ainda que com eles não me identifique. Sou tolerante. Só que ultimamente...
Talvez nem devesse escrever isso. Mas como o leitor é sempre uma referência querida, fico a imaginar que talvez haja mais gente que às vezes se sinta à parte do resto do mundo. Afinal, por que devo estar posicionada estrategicamente aqui ou lá? Alienada não sou. Jamais me alienaria de minhas contradições, renunciando a qualquer coisa ou a qualquer afeto meu em nome de uma coerência que me fosse estranha, de uma natureza que não fosse a minha. Podemos experimentar ideias e palavras, tanto quanto podemos, ― talvez mesmo devamos ―, exercitar a alteridade. Ser um pouco o outro e descobri-lo como a um personagem. Eu até tento. Mas a obviedade que tenho descoberto por aí me desanima profundamente, porque moldada sobre uma lógica meramente ideológica, que não dá lugar aos pesos e às medidas ditadas por nossos afetos. Uma lógica pobre, que investe pesadamente em um arsenal demagógico e vazio. Há ideologias alienantes por si próprias, uma vez que continuamente nos posicionam frente a um inimigo. Porque — diz-se — toda política requer um inimigo, um adversário, algo a combater.
Claro, aí penso em Dom Quixote, em cuja história, todavia, eu não me encaixo. Careço de donzelice para ser Dulcineia. Para Sancho Pança, falta-me o jumento, a pinta de patriarca, a expectativa de governar uma ilha. Sobra-me, então, Rocinante? O eterno companheiro de todos os caminhos e carreiras percorridos pelo romântico, mas obtuso herói, que recomendou expressamente jamais fosse este seu cavalo esquecido por nenhum cronista de sua história. Toda essa comparação me ocorre porque Dom Quixote é um personagem anacrônico. Em plena Renascença ele vivia uma fantasia medieval, imerso em um doce romantismo de cavalaria, idealizando o mundo e a mulher amada. Inofensivo, no caso dele. Mas iludido. Sinto o resto do mundo que me cerca um pouco assim. Singularmente irracional, crédulo, presa fácil de frases de efeito, não raramente reducionistas e pretensiosas. Nem sempre, porém, inofensivas. Talvez sejam ainda os encantamentos, as pendências, as batalhas, os desafios, as feridas, os requebros, os amores, as tormentas e, enfim, ― por que não? ―, os tais disparates impossíveis.
Não falo apenas do que vemos hoje mais perto de nós. O mundo inteiro parece estar polarizado moralmente, como se todos reagissem a ameaças potencialmente identificadas com outro que, em tese, é diferente, ou hostil, ou por qualquer razão nos parece como tal. Armagedom: entre o bem e o mal. O tempo como referência desaparece. Porque ele não empresta mais aos fatos um sentido, uma coerência interna, sistemática. Falo de quando havia o antes e o depois. Hoje vivemos uma realidade que materializa o que foi uma vez a asserção metafísica que afirmava que são os efeitos que criam as suas próprias causas, e não o inverso. Porque as coisas podem, finalmente, ser exatamente o que queremos que elas sejam, e motivadas por elementos que nos damos ao luxo de escolher. Inventamos uma nova razão que se parece demais àquela que enfeitava a nossa infância narcísica, quando então tudo e todos conspiravam para que não nos frustrássemos. Heróis desse agora com cavalos que falam uma língua que não é necessário aprender, porque ela sempre nos diz aquilo que desejamos ouvir.
Percebo-me como alguém fora do tempo, como habitante de um planeta onde a até espacialidade já sucumbiu. Tudo acontece aí simultaneamente, mas não consigo mais encontrar o conforto de algum outro que não me venha cheio das novidades de um amanhã que acontece agora. Não encontro mais em ninguém — nem em você talvez — aquele distanciamento filosófico mágico que pode situar a dialética em polos que não precisam, necessariamente, nos polarizar também, absorvendo-nos, a nós e à nossa liberdade que pode, sim, não ser senão renúncia.
Queria mesmo era poder conversar sobre essas coisas sem que elas signifiquem coisas minhas ou suas. Apenas almejo a liberdade de primeiro contemplar e depois, quem sabe, entender não causas e consequências lineares, mas todo esse imenso processo que nos transforma em delicados que alguém divide, alistando-nos uns de um lado, outros de outro, designando ódios recíprocos, temperados com rancores amargos, desenterrados de memórias imprecisas, obedientes a interesses.
Penso sempre que o que se perde nesse desgaste é irrecuperável, porque não se trata de literatura, de idealidades. Porque nos leva pessoas, nos subtrai amigos, nos força a conviver com gente que nos estranha e que estranha inclusive a si mesma. O diagnóstico de Cervantes é apenas metáfora. E não há o que fazer, porque a realidade não pode competir com sonhos e fantasias. Ela recua, humildemente, por vezes não encontrando sequer um aonde ir ou ficar, buscando enfim esse quando do qual me perdi um dia.