Em primeiro lugar porque, embora haja tendências gerais, ele não é fixado, único e muito menos estático: está em disputa, como todas as categorias e formas de pensar a vida social. Em segundo lugar porque há quem, sendo antifeminista, se aproveite da disputa sobre essa visão de mundo para selecionar os casos mais esdrúxulos de sua interpretação e divulgá-los como uma caricatura de mau gosto de algo construído com tanto sangue, suor e — vejam só! — paciência.
A princípio, a ideia comum a todas as feministas é uma crítica aos papéis sociais sexuais e condições de vida por eles estabelecidos. Não se trata apenas de reivindicar direitos, mas de repensar, questionar, criticar. Reformular e construir uma nova ética, na qual as pessoas sejam tratadas da forma mais justa, igualitária e livre possível (inclusive quando isso significa estabelecer e reconhecer diferenças).
Aí é que o negócio começa a complicar.
Não é segredo que há uma série de mitos sobre feministas, como há sobre comunistas (que “comiam criancinhas”, lembram?) ou sobre qualquer grupo que, ao se insurgir, parece ameaçar, de alguma forma, os privilégios vigentes de uma sociedade absoluta e cruelmente desigual. Quantos mitos sobre a baixa capacidade de alunos cotistas negros em universidades públicas? Quantos mitos sobre as práticas sexuais gays? Quantos mitos sobre travestis? Homens dançarinos? Mulheres lutadoras? Militantes?
Poupo vocês dos detalhes sórdidos e da cara de choque quando as pessoas descobrem que a comunidade “Empetecando”, no Facebook, sobre maquiagens, esmaltes e dicas de beleza, foi criada, é gerida e está repleta de mulheres feministas. Regular, controlar e restringir as práticas sexuais e corporais das pessoas com base em dogmas próprios imutáveis não feminismo, é religião. Feminismo é outra coisa.
É aí que está o truque, a disputa: algumas militantes que se reivindicam feministas definitivamente discordariam. Poucas, é fato. Mas existem. Há quem se reivindique feminista e pense em regramento e controle do corpo como estratégia de combate. Meu exemplo favorito – e que, com o perdão da péssima ironia, não faz ao feminismo libertário que defendo favor nenhum – é a guerra anti-pornografia que se deflagrou nos EUA na segunda metade do século 20. Munidas de estratégias antiéticas, teóricas como Catherine MacKinnon e Andrea Dworkin foram à luta não só na esfera intelectual, mas também na esfera jurídica. Não mediram esforços para estabelecer mecanismos de controle extremo do Estado sobre as práticas sexuais de adultos em pleno exercício de sua razão.
Outro exemplo curioso é a verdadeira guerra que algumas militantes brasileiras têm travado “contra a prostituição” (para ficar no chavão que elas mesmas usam). Friso: não defendem a regulamentação da profissão, ou dispositivos legais trabalhistas que a tornem mais segura. São contra a existência em si deste tipo de prática. Ninguém conseguiu ainda me explicar a diferença – exceto o fato de haver sexo no meio – entre uma prostituta e uma profissional de qualquer outra categoria de trabalho, que congregue mulheres oriundas dos mesmos grupos sociais e ofereça salário semelhante.
Por que a prostituta é mais vítima? Porque o sexo é sagrado e não pode ser comercial, num contexto em que todos os outros tipos de trabalho e serviços o são? Ainda que me expliquem isso, continuarei sem entender por que lutar contra a prostituição seria mais útil do que lutar para que esta possa ser uma escolha – e, mais ainda, uma boa escolha – profissional. Defender a proibição ou a extinção da prostituição, neste sentido, me parece algo como defender a proibição ou extinção da prática do aborto.
Há aí uma outra questão interessante que deixo no ar para vocês. Muitas vezes vemos militantes de diversas causas (inclusive feministas) usando como argumento uma vitimização do sujeito que “defendem”, ou uma desconsideração total pela capacidade de tais sujeitos agirem com consciência e autonomia. Sobretudo quando suas práticas não agradam ou vão contra a cartilha desse tipo infeliz de militância. As feministas antiporn ou aquelas que lutam contra a prostituição, por exemplo, muitas vezes dizem que é impossível um “consenso esclarecido” de uma atriz pornô ou de uma prostituta. Mas é possível um “consenso esclarecido” de uma acadêmica ao escolher esta profissão? Por que? Porque acham que é uma “profissão melhor”? De onde vem essa ideia de que é “melhor”? O conhecimento escolar e acadêmico é a única fonte de iluminação, consciência, autonomia e verdade? Desde quando?
Agimos sempre na contingência. Isso quer dizer que, não importa o quão conscientes, autônomos e autônomas sejamos, há sempre um limite de possibilidades para nossas ações. Mesmo para Eike Batista – homem, branco, ex-milionário, mas ainda muito rico. Por que a minha contingência seria “mais livre” que a do outro (salvo casos em que as necessidades fisiológicas de sobrevivência não são cumpridas)?
Isso quer dizer que as feministas usam táticas das mais injustas em suas argumentações e reivindicações?
Não.
Isso quer dizer que algumas militantes que se reivindicam feministas utilizam-se das mesmas táticas fundamentalistas de militância que algumas/alguns militantes não-feministas das mais diversas causas, religiões, visões de mundo, sistemas políticos, opções de nutrição. Isso quer dizer que o feminismo está em disputa. Quer dizer que entro, como militante, acadêmica e autora, nesta disputa.
Não sei se consigo dizer o que o feminismo é. Sei que ele não é religião.