Em Hollywood, ter cabelo loiro é fator relevante apenas quando falamos de atrizes. Ninguém se vai incomodar a falar de loiros, embora do Robert Redford ao Brad Pitt, passando pelos Lord Jim, Lawrence d’Arábia e Peter O’Toole, quase pareça haver nisto substância suficiente para defender que o cabelo loiro, também aqui, merece uma categoria luxuosa à parte na história da caracterização, podendo mesmo passar a ser visto como típico do espírito livre e libertário, raro, incompreendido. Sensibilidade e estoicismo, tudo representado numa cabeça masculina de ouro! Ideal para filmes de aventuras e heróis imbatíveis, não acham? Mas não. O loiro masculino, infelizmente, aparece apenas ligado à nobreza de caráter, ou algo assim cerebral, isto quando tal traço não é ignorado de todo. Dá idéia que, quando passa a ser preciso reduzir um ser humano a uma característica exterior, a mulher platinada do cinema é quem fica sempre com o frete. Este aqui é o maquinista benevolente, ali temos o marido angustiado, aquele é o senador corrupto, e tu... olha, toma lá, tu és a loira... Mais uma atriz a caminho do sucesso via departamento das perucas.
Nunca uma cor de cabelo foi tão posta ao serviço de tantas idéias. Hitchcock parecia que tinha um fraco por loiras da vertente traiçoeira, dizia ele que por causa da sua inocência aparente. Delas podia vir tudo. Nunca se sabia. Não é que elas fossem todas víboras. Ou inocentes. Ou más. Ou boas. Não é que elas fossem sempre frias, mentirosas ou, simplesmente, de ficção, como a Kim Novak no “Vertigo”. Não é que elas fossem isto ou aquilo, mas se o copo de leite fatal tinha de ser servido por alguém, então era uma loira que o trazia na bandeja, ela branca de cabelo branco a servir um copo branco... Dali podia vir tudo. Era uma surpresa do princípio ao fim.
Tal como uma pedra preciosa, a loira de sangue sueco (ou pelo menos herdado depois de uma ida ao cabeleireiro) representa aquilo que não existe em quantidade. Se os olhos caem nela é porque, na tela como na vida, ela significa o que não é comum. Seleta e exclusiva foi transformada em utilidade pela indústria do cinema, onde uma imagem vale milhões. Dizem que o valor começou por necessidade: quando o cinema era apenas a preto e branco, foi preciso distinguir o claro do escuro.
Mesmo sem contar com a Angelica Houston no “The Grifters”, com a Rita Hayworth no “Dama de Xangai”, com a Barbara Stanwick no “Double Indemnity” ou com a Uma Thurman no “Kill Bill”, o cinema tem uma lista longa de loiras imprescindíveis. A Daryl Hannah e o Rutger Hauer, do “Blade Runner”, não podiam ser senão loiros, sendo ela uma boneca robótica e ele uma criatura sublime, literalmente do outro mundo. A mesma lógica vai para metade das meninas bondosas da Disney. Sem elas não havia história. Porque a cor do cabelo já nos revela tanto quando combinada com a roupa e com a dicção, torna-se desnecessário perder tempo a explicar quem é aquela gente, que relação tem entre si, o que é que devemos pensar deles e tudo o resto que ocupa demasiado tempo no espaço atravancado de um filme.
Por vezes, até seria aceitável presumir que o cabelo loiro tem superpoderes. Pelo menos é essa a única explicação plausível para a escolha estranhíssima que Marlon Brando fez no “Super-Homem”. Nos filmes de ficção científica, as crianças malditas têm sempre cabelo loiro, sobretudo quando estão quase para ser comidas pelo monstro que vive dentro da televisão. Nos filmes do James Bond, as loiras parece que são especialistas em nadar de biquíni com martinis na mão ao mesmo tempo que acoplam minas submarinas no casco de iates ancorados em Portofino.
E Brigitte Bardot, como se sabe, pôs ponto final à hipocrisia dos anos 50 quando, no “E Deus Criou a Mulher”, irrompeu pelos bons costumes adentro envolta numa cabeleira loira. A cena do mambo não seria a mesma se ela não tivesse enlouquecido o amante com a sua juba dourada luxuriante.
No “Vertigo”, a hipnose é idêntica. James Stewart encontra-se tão enamorado de uma visão que vai, ele mesmo, à drogaria comprar tinta para que a Kim Novak volte a ser a loira metalizada dos seus sonhos, prova de que até os detetives da polícia mais bonacheirões alimentam fantasias Clairol. Aquela mulher (como aliás todas as outras, da Janet Leigh do “Psycho” à Eva Marie Saint do “North by Northwest” e incluindo a Tippi Hedren de “Os Pássaros”) não seria absolutamente beijável se não fosse absolutamenteloira. Glaciar sim. Fria não.
Dá vontade de começar a sentir que a magia vem toda da loira, embora nem sempre queiramos dela a mesma coisa, o que não fica mal porque a moça adora mudar de forma de cada vez que aparece. Santa ou terrorista emocional parece que se adapta bem aos dois extremos. Não se importa que seja vista como baby, mesmo que por vezes o tom seja sujo ou sexual. Num e noutro lado, a mulher sente-se em casa e, com a eficiência do costume, já passou uma laca pelo cabelo e está toda apresentável.