Quem, afinal, é tão pleno de perfeições que se dê ao luxo de apontar, no outro, a feiura como defeito. Eu diria que a feiura é normal; o belo, exceção. E uma rara exceção.
E estes juízos não nos vêm de pessoas incultas, excluídas do universo social que acrescenta uma boa formação intelectual ou mesmo um mínimo de aptidão para a vida em sociedade. Desqualificações deste tipo partem, na maioria das vezes que eu as escuto, de homens. E de homens cultos, bem formados, que parecem achar bonito fazer referências debochadas, irônicas ou sarcásticas a propósito da imagem de certas mulheres, especialmente quando elas, por qualquer motivo, se destacam.
Pudera! ― dizem. ― Só podia ser gorda, ou só podia ser feia, ou só podia ser uma velha, um bagulho, uma baranga, etc. E isso não parte de nenhuma Brastemp de homem, não! Parte de sujeitos comuns, por vezes bem longe de se constituírem no sonho de consumo feminino das areias de uma praia. De bermuda (sem grife) e de chinelo de dedo (também sem grife), parados numa esquina, privados de suas referências econômicas, sociais e culturais, não sei se arrumavam plateia ou fãs. Como diz minha querida amiga Verinha: ―“Eles se acham! Chamam mulher de baranga, de bagulho, de velha! Mas se a gente soltá-los na rua, sem o carro, sem os títulos, sem os cartões de crédito e sem a identidade pela qual são conhecidos, sobra o quê? Ah! Não arrumam nem uma só daquelas que chamam de feias para ficar com eles!” ― Palmas, Verinha! Adorei! E, cá entre nós, mulher quando quer, seja do jeito que for, feia, bonita, gorda, magra, velha ou moça, como se diz, “para o gasto”, arruma, sim, senhor!
Maldade por maldade, se você conferir com que mulheres estes homens convivem ou conviveram, descobre que nenhuma delas era assim um modelo de perfeição física. Poucos têm ou tiveram por esposas ou companheiras mulheres que sairiam em capas de revistas masculinas. Talvez nem mesmo tenham descolado alguma assim para “ficar” com eles ao menos... Alguns escondem a própria mulher! Têm vergonha dela. Outros simplificam: trocam. Eu me pergunto, então, que tipo de ressentimento pode ser este? Ocorre-me a famosa frase de Vinícius, que disse “as feias que me perdoem, mas beleza é fundamental”. Ao menos ele pediu perdão. Fora o fato de ter a seu favor a poesia, e um gosto pelo feminino que ele, melhor que ninguém, soube construir com sua literatura. Não se trata, pois, de uma opinião, como a que partiu do poeta, o tipo de desqualificação à qual eu me refiro. Falo das colocações estúpidas, pesadas, reducionistas. Falo daquelas que saem de bocas repletas de crueldade, e que buscam plateias e aplausos.
Ouvi um dia, de passagem, um diálogo entre um homem e uma mulher, esta última jovem e bonita, onde ele se divertia em descrever uma terceira figura feminina, aliás, famosa e empreendedora, como gorda, bagulho, juntamente com outros adjetivos que, de forma alguma, serviam para desmerecer qualquer uma das realizações levadas a efeito por esta mulher. Obviamente ele agiu assim por um motivo muito evidente. Não precisou dizer que a interlocutora era bonita, pois subentendeu o elogio através da desqualificação da outra, a terceira no diálogo, referencial do “não dito”. Nenhum homem diz para uma mulher que ele julgue feia que outra mulher é feia. A crítica feita a uma é um elogio indireto a outra. Há mulheres que caem nessa, infelizmente. Compreensível.
Eu nunca negaria que é bom sentir-se mais bonita do que “a” ou do que “b”, quando a competição é de ordem manifestamente sexual. Se querem competir para ver qual a mais gostosa, muito bem! Vale tudo. Até unhada e puxão de cabelo. Mas é coisa de mulher, ora! É entre gêneros! O terreno é o eminentemente sexual. A mais gostosa leva, a mais atraente, a mais bonita. Jogo limpo, sem disfarces, sem deslocar o alvo. A coisa se torna muito diferente, quando esta competência, de ordem sexual, é usada para negar todas as demais competências ou qualidades, que ficam invisíveis, só a fealdade sendo objeto de considerações, e base exclusiva de um juízo de valor.
Daí, então, a gente está diante de algo que, francamente, me incomoda muito. Porque não se trata de julgar ou de avaliar nenhuma outra qualidade. Trata-se, sim, de simplificar a questão: faça o que fizer, não vai prestar, porque é feia. E quando se trata de uma mulher envolvida em qualquer escândalo, ou acusada de algum crime, nem se fala. Se for feia, é condenada antes de qualquer julgamento. Nem é preciso dar exemplos. Seria cansativo, porque acredito que não há quem não saiba do que eu estou falando. Mais: acredito que muitos de meus ora leitores já fizeram ou fazem assim, ou já se acostumaram a conviver com isso. Pena. Talvez a coisa resulte ― de acordo com alguns ― do fato de vivermos numa sociedade que valoriza juventude e beleza. Bem, se isso explica, não justifica.
Enfim, acho que fazer referências pejorativas a mulheres feias já virou até mesmo uma banalidade. É algo de que se ri, algo de que se faz piada, como se ofensa e desqualificação, crueldade e sarcasmo fossem coisas socialmente corriqueiras. O pior é que são. E quando me dei conta disso resolvi escrever esta crônica. Só para ser do contra, só para dizer que eu não gosto. Sei que não vai mudar nada o fato de manifestar-me assim, mas queria dizer que eu me sinto profundamente ofendida quando ouço alguém, seja homem ou mulher, falar desse modo sobre outra pessoa, seja ela homem ou mulher. E me sinto ainda mais revoltada, quando a crítica parte de um homem e atinge uma mulher, pois isso me parece ainda menos justificável, exatamente pela banalização, e pelo fato de se tratar um comportamento quase que oficialmente aceito por sua circulação nas veias sociais que oxigenam os programas humorísticos. A propósito, nunca acho isso engraçado. Na TV, aliás, me parece ainda mais chocante e lamentável. Mas sou apenas eu e minha opiniãozinha. Eu a sustento, todavia. E gostaria muito de pegar pesado com quem adora debochar das mulheres ditas feias.
Pegar pesado, sim. Descobrir, lá na vidinha íntima desses homens, afinal, o lado invejoso e mesquinho que os leva a agir assim. E acho que mostraria, sem pena, sem remorsos, a insegurança mal camuflada que deve reger, e mesmo determinar, comportamentos deste tipo. Há homens dotados de uma masculinidade destrutiva. Homens que se afirmam, não competindo com outros machos, de homem para homem, mas colocando as mulheres umas contra as outras para, no final, ver se sobra alguma coisa para eles. Evitam confrontos diretos, valem-se de sarcasmos, tiram partido de um senso de humor destrutivo, ou agridem abertamente na base da desqualificação, deslocando o objeto de uma discussão para outra área. Se assunto é a maior ou menor aptidão para um cargo, enfatizam a obesidade, a feiura, ou o fato de tratar-se de uma mulher “passada”. Provocam o riso, ganham plateia, e o aplauso de todos os medíocres que acham bonito esse tipo de “espirituosidade”. Se alguém reclama, é porque não tem senso de humor, porque é do contra, porque não entendeu, porque distorce valores, etc. Se não funciona, e insistimos no protesto, o carimbo é o clássico. Além de ser chamada de feia, vem o carimbo de frustrada.
Mulher é mulher, e chega o dia em que o nosso feminino se esgota. Às vezes até decidimos que ele chegou ao fim, mesmo que ainda sobre alguma coisa de vaidade dentro da gente. A feminilidade é também algo de que se desiste, porque se trata de um império cujo rei se chama Tempo. Bonita ou feia, gorda ou magra, envelhecemos, e a feminilidade, ao menos esta que alimenta as fantasias masculinas, decai, apesar dos paliativos tipo botox, plásticas e silicones que vêm em seu favor. Beleza gasta. Beleza desgasta. Beleza até mesmo enjoa e passa de moda. Beleza é um produto altamente perecível. Resta saber o que vai nos sobrar em matéria de competências humanas, afetivas, intelectuais. Cedo ou tarde é hora de enfrentar o balanço.
É verdade que os preconceitos são hoje muito combatidos, mas alguns são tão corriqueiros que passam ao largo de nossa capacidade crítica. Eu mesma escrevi um romance, há muito tempo, onde criei uma personagem feminina na qual eu desejava salientar uma série de defeitos. Eu a criei gorda e, com isso, acabei perdendo qualidade literária no meu trabalho, uma vez que os leitores se orientavam muito mais pelo fato de a personagem ser gorda, do que por sua superficialidade, sua ambição, a pequenez de sua moral burguesa. Eu tinha muito mais a dizer sobre ela. Não precisava recorrer à gordura para criá-la menos rica em humanidades. Acabei derrapando num clichê, quando não precisava disso, seguramente. Errei, mas aprendi. Desisti de publicar, ao menos do jeito que está.
Procuro saber de mim. Dos outros não sei. De você, leitor, também não sei. Mas já que chegamos até aqui em mais esta crônica, que tal repassar alguns conceitos? Não custa. Não custa passar a limpo alguns dos tantos e tantos preconceitos que mais nos cegam do que nos dão a perceber do mundo e, sobretudo, da gente mesmo.