Dizem os místicos que isso mostra o quanto Porto Alegre está destinada a ser um importante centro iniciático.
Porque — segundo eles, os místicos — o contraponto de Porto Alegre, o paralelo 30 do hemisfério norte, passaria pelo Egito, em meio às grandes pirâmides. Confesso que jamais me preocupei em abrir um atlas e conferir a afirmação, pois há muito tempo já aprendi que computadores, místicos e mulheres a gente não contraria. Além disso, é muito interessante levar visitantes — paulistas em especial — e apontar-lhes o marco exato do paralelo, confidenciando-lhes que o “outro” paralelo 30 passa pelas pirâmides, naturalmente, um portal geográfico de onde devem emanar, com toda certeza, estranhas vibrações. É a lógica gaúcha. Ora, se isso vale para as pirâmides...
Pois bem. O paço municipal aqui de Porto Alegre é um prédio bonito. Um pequeno palácio gracioso e repleto de elementos arquitetônicos bastante ecléticos que não são sem elegância. Escadarias de mármore têm por guardas quatro leões deliciosamente fotogênicos, adorados por crianças, pombos e até mesmo por alguns adultos. Os leões são parte da cidade e, além disso, folclóricos. Há muitos anos atrás um jornalista brincalhão divertiu-se ao noticiar que um estranho fenômeno tinha lugar na Praça Montevidéu, pois, a certa hora do dia, alguma influência misteriosa provocava um inexplicável aquecimento no corpo dos leões do palácio.
No dia seguinte à publicação, ficou de guarda, controlando quem passava pelo centro. Nem preciso dizer que não foram poucos os que paravam na escadaria, olhavam a paisagem e, discretamente, alisavam os leões. O jornalista e alguns amigos, assim, divertiram-se a valer. Bem, eram velhos tempos em que brincadeiras deste tipo nem em sonho seriam interpretadas como contrárias à ética ou como capazes de gerar danos morais. Outros tempos.
Contudo, seja realmente à vista das misteriosas vibrações que se concentram na Praça Montevidéu, por força de sua situação geográfica, seja por qualquer outra razão que me escapa por completo, fato é que somos todos muito estranhos aqui no sul, ao menos do ponto de vista dos forasteiros que vem ter por aqui. A maioria ainda se surpreende com o chimarrão. Como pode essa gente cultivar o hábito de chupar água fervendo com gosto amargo por uma bomba de metal que passa de boca em boca? E essa história de só haver dois times de futebol? Todo gaúcho é bipolar, dizem. Politicamente, ou amam o PT, ou o odeiam. Em matéria de futebol, ou são gremistas ou são colorados. E quem torce para um desses times seca o outro, de sorte que a regra é torcer para o Inter e também para qualquer outro time que jogue contra o Grêmio, naturalmente.
Não, nós não queremos títulos nacionais ou internacionais, a não ser que o time agraciado seja o nosso. Se não for assim, prefere-se perder os tais títulos nacionais para outros estados. O que importa é ser campeão gaúcho. Depois vem o resto. Antes assim do que escutar a flauta “deles”. Dia de Grenal, é como se fosse o Armagedom. No estádio, um lado azul e outro vermelho. Inimigos que se encaram, exceto quando se ouvem os primeiros acordes do Hino do Rio Grande do Sul. Exatamente. Colorados e Gremistas cantam então, em coro, o hino rio-grandense, pois a letra é conhecida de qualquer gaúcho, que festeja o 20 de setembro desde pequeno.
Isso, contudo, não acontece apenas em estádios de futebol. Nas cerimônias oficiais, quem vem de outros estados do Brasil dificilmente entende o que acontece por aqui, quando toca o nosso hino e todos se levantam, colocam a mão direita sobre o coração e cantam com força. A maioria dos brasileiros conhece apenas o hino nacional, e ignora o hino do próprio estado. Aqui isso não acontece. O hino do Rio Grande do Sul é cantado e decorado por quase todos os gaúchos. Parece que de Porto Alegre ― paralelo 30 ― irradia-se assim alguma coisa que nos faz, por aqui, realmente muito estranhos.
E a fala? Só depois de conviver com outros sotaques, especialmente o paulistano, que é praticamente sem modulação, é que percebi o quanto somos expressivos. Um simples “mas bah” falado em diferentes entonações pode significar mil coisas. É claro que isso só é compreensível entre nós, nativos e iniciados nesse falar do sul, repleto de sutis diferenças. Temos o portoalegrês, um sotaque da capital, que alonga a pronúncia da vogal tônica e fala mais devagar. É de Porto Alegre o trilegal. Existe o falar da região serrana, carregado pelo sotaque dos imigrantes italianos e alemães e ainda o falar da fronteira, que é bem uma mistura de português com espanhol, o portunhol, que nos identifica muito, em termos culturais, com uruguaios e argentinos. Fora isso, o gauchês típico, tradicionalista, que possui não apenas um sotaque próprio, como ainda é composto de um conjunto de ditados populares muito característicos. E, por falar em linguagem, em qualquer lugar do Rio Grande do Sul se entende muito bem o espanhol, de modo que argentinos e uruguaios não precisam ― e dificilmente aprendem ― a falar português.
Recentemente descobri que somos um estado que gosta de consumir produtos fabricados aqui mesmo, enquanto outros estados do Brasil não fazem assim. Grandes supermercados sabem disso, e seu setor de compras é montado de outra forma, quando o assunto é comprar para a filial do Rio Grande do Sul, normalmente existente em Porto Alegre.
E a mania de grandeza também não é exagero. Acostumamo-nos a acreditar que nosso pôr do sol é o mais lindo do mundo. Nada se compararia ao nosso Guaíba, que se estende por quilômetros e quilômetros de orla na cidade. Esta nossa mania de grandeza tem ainda a seu favor vários argumentos: os melhores políticos do Brasil teriam saído daqui, o melhor jogador de futebol do mundo, a maior lagoa do mundo e também a mais famosa modelo do mundo, cujo nome é ― já disse um de seus muitos fãs gaúchos ― o mesmo da sua motocicleta, de uma marca muito vendida na região da serra: XL. Não há um repórter gaúcho que não pronuncie com solenidade o nome do Aeroporto Internacional Salgado Filho, caprichando no internacional.
E a roupa de gaúcho? Bem, aqui é lei estadual (Lei 8.813/89): a pilcha gaúcha ― bombacha, bota, lenço, vestido de prenda, etc. ― não é fantasia nem traje folclórico. É traje oficial, de honra. Detalhe: “Será considerada ‘Pilcha Gaúcha’ somente aquela que, com autenticidade, reproduza com elegância, a sobriedade da nossa indumentária histórica, conforme os ditames e as diretrizes traçadas pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho.” Isso, somado ao fato de todos saberem cantar o hino do Rio Grande do Sul, festejando o 20 de setembro como se fosse feriado nacional, no mínimo, acentua muito nossa identidade cultural, ou nosso bairrismo, conforme preferem alguns. Não há quem não conheça as piadas de gaúcho contadas em todo Brasil. Dificilmente a gente escapa de algum comentário irônico, normalmente, levado na brincadeira. A crítica, parece-me, reforça ainda mais nossos hábitos, ou nossas manias, regionais.
Vistos por gente de fora, parecemos muito diferentes. Há algumas semanas conheci um jovem colega advogado que veio da Bahia para cá há mais ou menos quatro anos. Perguntei como se sentia em relação ao sul, e ele disse que gosta daqui, embora ainda não entenda bem muitos de nossos hábitos, especialmente quando envolvem o comportamento de homens e mulheres. Como assim? ― perguntei. Ele me explicou então que ficou muito surpreso ao descobrir que, em lugares onde se namora e dança, as mulheres, todas muito enfeitadas, ficam de um lado do salão e conversam entre elas, apenas olhando para os homens. Estes últimos, todos do lado oposto, bebem e conversam entre eles, também apenas olhando para as mulheres. Entre os grupos fica um espaço vazio. A coisa toda, para meu colega, é de difícil interpretação, pois não há conversas, apenas olhares. Os homens olham para as mulheres; as mulheres olham para os homens. Cuidam-se de longe até que um ou outro deles, os homens ― por alguma razão que foge por completo ao entendimento de meu colega ― destaca-se do grupo, atravessa o salão e dirige-se a uma das mulheres. Então vão dançar. Para ele, alegre, comunicativo, nascido e criado na Bahia, essa forma de “curtir uma balada” só acontece aqui.
Outro hábito absolutamente típico é o de possuir e de presentear pessoas amigas com facas. Gaúcho adora facas! Quanto mais enfeitadas, com cabo de prata, brilhantes e afiadas, mais eles gostam. E também se usa andar cada um com sua própria faca por aí afora, afinal, nunca se sabe quando sai um churrasco, e a lasquinha de carne que se tira da picanha, é tirada com a própria faca, momento em que os gaúchos (e as gaúchas também, evidentemente) podem exibir a beleza de suas respectivas facas. Nem pensar no que isso dá em São Paulo! Não adianta argumentar com paulistas que faca é arma branca e não arma de fogo, porque eles se sentem melindrados com essa diferença. Mais uma razão para eu nunca levar nenhuma de minhas lindas a facas para São Paulo, quando vou para lá... Paciência! Em Roma, afinal, deve-se fazer como os romanos.