(OS NEM SEI QUANTOS TONS DE CINZA)
Mulheres disputavam exemplares, trocando olhares de cumplicidade. Muitas queriam saber do que se tratava, e isso gerou conversas entre as que leram e as que não leram. Interessante uma coisa: público feminino, predominantemente. E um público feminino composto, em boa parte, de respeitáveis matronas de ilibada reputação, ou, para me fazer melhor entender: senhoras que torceriam o nariz para uma literatura declaradamente erótica ou mesmo assumidamente pornô.
A coisa não ficou apenas na venda de livros. Houve também um sensível aumento na procura de objetos eróticos, de pomadas mágicas que prometem aumentar uma coisa e apertar outra, calcinhas comestíveis, chicotes de veludo, algemas e outros objetos muito estranhos para quem não é da tribo.
Como já disse, eu li o livro. Confesso que foi um sacrifício, ao menos para mim. Achei muito chato. Se a maioria gostou, comprou, leu o primeiro e ainda quis ler os outros dois livros que formam a trilogia, isso é com o público. Falo por mim.
Não gostei. Não tive absolutamente nenhuma identidade, especialmente com o personagem feminino. Já conheço a história da princesa pobre e do príncipe encantado podre de rico. A mocinha fica toda emocionada quando vê o bonitão. Ah! Ela era virgem! Com 21 anos! Dá para acreditar? Conto de fadas, pensei, só que pós-moderno, porque o príncipe encantado aqui não é daqueles que beija na boca o cadáver da princesinha ou que coleciona sapatinhos de cristal... O desvio do cara é outro. Ele é sádico. E desses que tem um quarto montado com todo o instrumental básico, uma coisa tipo SexShop Privé, um verdadeiro kit da maldade.
Há também algumas coisas que eu não esperava encontrar em um livro, e que são referências expressas a marcas de produtos. Marca de computador, de celular, do tênis que a personagem principal usa. Fica parecendo comercial, se não for mesmo. Há um exagero absurdo em relação a números, à fortuna do magnata, bem como ao poder exercido por ele.
O príncipe era mesmo tudo: jovem, bonito, sarado, olhos belíssimos, cabelos bem tratados, enfim, a perfeição encarnada. O único problema da criatura era o fato de ser sádico de carteirinha, porém, politicamente correto. Sério! A coisa funcionava — fiquei pasma! — na base de contratos. Claro, fora do enredo do livro, seriam contratos absurdos, porque visavam a negociar a própria integridade física dos contratantes, no caso da moça, que deveria estar ciente do que se tratava e ainda permitir-se ser espancada. Absurdo? Ah! Para os personagens, não. Porque estava contratualmente previsto que, se ela dissesse uma só palavra, ele pararia, na mesma hora, de machucá-la. E tudo com cláusula de sigilo absoluto.
Acho que o enredo é fraco. Simplesmente não convence.
O que explicaria tanto sucesso então?
Há peculiaridades. A Cinderela pós-moderna, por exemplo, até podia ser virgem, mas não era nenhuma mulher fatal. A narrativa não a faz gostosa. É uma moça simples, que usa roupas comuns, e tem problemas como qualquer mulher, tipo o cabelo que não fica no lugar. Embora às vésperas de formar-se em literatura, não é sofisticada, nem mesmo muito culta. Trabalha em um emprego comum, no comércio. É desajeitada. Ela tropeça, cai e até vomita depois de beber demais. Ela é retratada muito comumente, sem que exista, no livro, menção às suas características físicas, como é normal em romances escritos por homens, que descrevem as mulheres em detalhes, inclusive e principalmente os anatômicos. É moça, jovem, de uma beleza que nada tem de incomum.
O personagem masculino, no entanto, é mostrado de perto, a ponto de ser, penso eu, deformado pelo exagero em todos os aspectos. É bonito demais, é rico demais, é inteligente demais, é culto demais, é sofisticado demais. Ele possui até mesmo um helicóptero que ele próprio pilota com total segurança. É dono de um avião, mora na cobertura que fica no alto de um arranha-céu envidraçado, bem acima das nuvens, com direito a obras de arte raras e preciosas espalhadas pelo imenso apartamento, onde há até mesmo um piano, que ele toca, naturalmente, e toca muito bem. Tudo porque, além de executivo frio e mandão, ele possui um lado sensível. Enfim, tudo são exageros e mais exageros. A narrativa é chata, repetitiva. Nem mesmo as cenas sádicas são interessantes, porque, afinal, não são para valer, ora! Nesse sentido, o velho Marques de Sade continua insuperável em seu realismo absolutamente existencial.
O que, então, o raio deste livro traz de novo? Por que faz tanto sucesso? Será que não há nele algo diferente?
Acho que há, sim.
A narrativa das cenas eróticas acontece do ponto de vista feminino. E isso é incomum na literatura.
As mulheres costumam ser narradas pelos homens, praticamente desde sempre. Além disso, em literatura erótica, os escritores sempre insistem em descrever os mínimos detalhes de sua anatomia e isso do ponto de vista do desejo deles, homens. Do ponto de vista do desejo das mulheres, dificilmente se acha uma narrativa longa, detalhada e constante. Nesse livro, todavia, ela acontece, sim.
A personagem feminina conta tudo o que sente, compartilha cada arrepio, cada palmada, cada passada de mão que leva. E nos deixa saber o quanto ele morre de tesão por ela. Ela ainda conta que sente de vontade de tocar em Christian Gray, coisa contratualmente proibida, pois ele não gosta. Vai entender!
Outro recurso interessante são as referências que a personagem feminina faz à sua deusa interior. Em algumas passagens, ela deixa claro que faz uma coisa e pensa outra, que não diz, descrevendo o que lhe vai por dentro. Isso não é incomum. Nós mulheres até que agimos assim, quando percebemos que a franqueza teria um efeito desconcertante em certas situações. Em outras palavras: saia justa. Isso todo mundo entende...
E o sucesso? Bem o sucesso do livro entre as mulheres é maior que entre os homens. Não encontrei nenhum homem que tenha lido o livro! Ou que admitisse tê-lo feito. Será?
Já as mulheres, elas leem e acham ótimo. De dez, nove gostam e querem ler o resto, completando a trilogia; uma não gosta. E este um por cento que, como eu, não gosta, é sempre do tipo intelectual, ou seja, chatas, que não dariam gritinhos se vissem Christian Grey pelado, por exemplo. Aliás, no que me toca, ele é muito magrinho, sem barba, sem barriga e não ronca. ― Fiquei pensando então porque elas gostaram tanto? Será que pela simples razão de se depararem com um erotismo narrado do ponto de vista feminino? Será que a paixão serviria de desculpa, justificando o tal ditado do entre quatro paredes vale tudo, desde que — na época do politicamente correto — as coisas sejam previamente ajustadas?
Ficou-me a impressão de que, sim. Como se o livro e todas aquelas cenas eróticas, perdessem vulgaridade, na medida em que a protagonista fosse valorizada pela virgindade, pelo dinheiro, pelo poder. Fosse uma prostituta, e as práticas sadomasoquistas talvez não fossem aprovadas por tantas senhoras leitoras, reconhecidamente acima de qualquer suspeita. Como se a conduta sádica do personagem se tornasse tolerável e, além disso, justificável e compreensível.
Isso me leva a refletir que existe um papel assinado à mulher, uma representação do feminino que persiste, lá no fundo do imaginário cor de rosa, ainda... Acreditar no Príncipe Encantado, que continua príncipe, que continua encantado, só que agora, no terceiro milênio, foi revelado sexualmente pela própria princesa por quem se apaixonou. Mulheres continuam sonhando serem feitas princesas. Para mim, isso explica o sucesso do livro entre tantas e tantas no mundo inteiro.