Coisas de Sertãozinho

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Aqui em Sertãozinho da Mantiqueira as coisas caminham como sempre caminharam. Nada muda. Você sai, fica um mês fora, e retorna na certeza de que tudo está do mesmo jeito. Bem, nem sempre do mesmo jeito, pois pelo menos uma coisa ou outra, de tempo em tempo, alvoroça o pequeno povoado, como abelhas quando ameaçadas por alguma presença estranha. Zummmm. Casamentos e nascimentos não empolgam, pois fazem parte do que o povo entende como “natural”.Afinal, a vida aqui é só isso: nascer, crescer...

Coisas de Sertãozinho


...Casar, reproduzir e morrer. Bem, mais ou menos isso, porque a morte agita, e um bocado. Primeira coisa que fico sabendo quando retorno é se houve alguma.

Nem mesmo desço do carro e lá vem o Roque, meu vizinho:

- Tô triste “seu” Rogério.

- O que aconteceu?

- Fulano morreu?

- E quem é fulano?

Pronto. Está armada a confusão. Afinal, como pode alguém não saber quem é fulano? Se todo mundo na cidade sabe quem é, evidente que sou obrigado a saber. Aliás, evidente que o mundo todo, no sentido literal, tem que saber.

- Como num sabe? Irmão de sicrano, filho de beltrano...

- Não sei Roque.

- Sabe sim. Um dia o senhor cumprimentô ele na praça.

Como é sempre desse jeito, a confusão é sempre a mesma.

- Cacete, Roque, eu cumprimento um monte de gente na praça.

A partir dai tenho que ouvir também o de sempre: não respeito os mortos, preciso acabar com essa mania de ficar trancado em casa, preciso fazer amigos, etc.

No passado, quando educadamente eu perguntava pela causa das mortes, a situação ficou ainda mais complicada. Na maioria vezes a idiotice era a causa principal. Um resolveu segurar no cabo de alta tensão para apostar com amigo que não aconteceria nada. Outro resolveu passar com a moto entre duas outras que vinham em sentido contrário (morreram os três). Em comum a presença da “marvada” pinga.

Como eu ria diante dos relatos, a situação já foi pior, bem pior. Ah, mas era mesmo gozado, oras.

- Morreram de pingaida, Roque?

- Num conto mais novidade prô senhor.

Radicalizou e ficou um mês sem falar comigo.

Helena, que cuida de minha casa, igualmente tem um hábito padrão, e que sempre me aguarda: deixa sobre a mesa da sala tudo, absolutamente tudo que quebrou, ou os restos do que acabou durante a minha ausência: rodo, vassoura, caixa de sabão em pó, e até mesmo periquito que morreu no viveiro.

- Pô, Helena, porque não jogou tudo isso fora?

- Procê vê, ué!

Já passou o tempo que eu estranhava, e junto com ele a tentativa de mudar alguma coisa. Nada muda, absolutamente nada muda em Sertãozinho da Mantiqueira. Não vou me desgastar diante dessa muralha de hábitos arraigados. Estou conformado.

Contorno, apenas. Sei que o Roque continuará falando dos mortos. Sei que Helena irá entulhar sempre a mesa da sala com objetos que deveriam estar no lixo. De que adianta ficar indignado com a garçonete do único restaurante me perguntar, sempre, se quero beber alguma coisa, quando já estou terminando a refeição?  Pior, ainda, esperar que ela deduza o que vou querer, lembrando que sempre quero a mesma coisa.

Já passei da fase de ao menos tentar entender. Agora sei que as coisas são como são. O lado bom disso tudo é que, como dizem por aqui, “quero bem” o Roque e a Helena. Também eles me “querem bem”, apesar de me acharem muito “deferente”. Ambos dizem a meu respeito, na aldeia, que “o home tem as mania dele, mais é bão”.

Eita.

 



Autor: Rogério Centofanti
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Existe 4 comentários para esta publicação
domingo, 2/12/2012 por Rogério Centofanti
Sertão e Sertãozinho
Boa noite, Cida. Grato pelo gentil comentário. Bem, são "causos" der roça, né? kkkk Abraço
domingo, 2/12/2012 por Rogério Centofanti
Oi Maristela
Os "retratos" foram escolhidos pelo Celso Mathias.
domingo, 2/12/2012 por Aparecida Mendes
Coisas do Sertão...
Bom dia Rogério! gostei muito da matéria porque se trata de uma realidade vivida também por mim. Fiquei cheia de saudades do meu interior"antigo", (Euclides da Cunha Ba).
sexta-feira, 30/11/2012 por Maristela Bleggi Tomasini
Oi, Rogério!
Gostei dos retratos! Saudade do Roque e da Helena. As ilustrações estão ótimas!
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