MEUS LIVROS, MEUS AMORES

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Prefiro os mais velhos. Aqueles que o tempo já danificou. Cada um tem um cheiro particular, todo seu. Suas páginas quebradiças, manchadas e amareladas fazem lembrar a pele humana, à qual o tempo causa esses mesmos danos. Possuo alguns centenários, de cujo particular encanto sou extremamente ciumenta. Não gosto que sejam folheados por profanos que não sabem respeitar nem sua forma nem tampouco seu conteúdo, muitas vezes anacrônico, ultrapassado, mas nem por isso menos instigante.

MEUS LIVROS, MEUS AMORES

Não sei quando foi que descobri os livros. Para mim, eles sempre existiram, sempre cercaram minha vida. Eu brincava com livros quando criança. Empilhava-os, cheirava-os, encantava-me com a diversidade de suas cores e formas. Observava as figuras, sim; mas eram as letras capitulares, a encantadora regularidade e a monotonia de suas páginas impressas o que me atraia mais. Ainda brinco com eles hoje, uma vez que estão sempre à minha volta, confortando minha existência, dando sentido às horas, tão escassas, que às vezes preciso roubar ao sono. Por isso digo que os livros são, de fato, os meus grandes amores.

Prefiro os mais velhos. Aqueles que o tempo já danificou. Cada um tem um cheiro particular, todo seu. Suas páginas quebradiças, manchadas e amareladas fazem lembrar a pele humana, à qual o tempo causa esses mesmos danos. Possuo alguns centenários, de cujo particular encanto sou extremamente ciumenta. Não gosto que sejam folheados por profanos que não sabem respeitar nem sua forma nem tampouco seu conteúdo, muitas vezes anacrônico, ultrapassado, mas nem por isso menos instigante.

A pós-modernidade alterou o livro. Não apenas eles se tornaram eletrônicos, como ainda, quando impressos, mudaram completamente de aparência. Basta visitar as grandes livrarias que, hoje, funcionam em shoppings. Eu detesto shoppings. No entanto, não se foge deles, e as modernas livrarias que lá estão impressionam pela grandeza. As edições de luxo proliferam: livros enormes, pesados, com mais imagens do que texto. Custam muito caro. O papel é de primeira, as fotos são impressionantes, o luxo é ostensivo, quando não gratuito. Livros que a gente não pode ler na cama nem riscar, sem sentir um pouco de culpa. São livros que servem mais para enfeite, que prometem dar status ao comprador que vai colocá-los em algum lugar bem visível da casa, como elementos de decoração.

Prefiro mil vezes os sebos. E aqueles bem bagunçados, desorganizados, cheios de pó, onde se encontram os melhores vendedores que há, porque a maioria é também leitor. Isso não ocorre nos shoppings, onde quem nos atende procura livros em um terminal de computador. Experimente entrar num sebo e perguntar por alguma obra ou autor. O vendedor, quando não é o próprio dono que nos atende, vai direto à prateleira onde se esconde o nosso livro. Além disso, ele sabe o nome da gente e, muitas vezes, guarda para nós alguma coisa que vai nos interessar, porque conhece nossas preferências, nosso estilo, nossos autores. É tudo muito diferente quando se entra nessas grandes livrarias de shoppings, tão luxuosas, onde só há livros bonitos com cheiro de tinta nova, que esperam por um comprador que se deixe impressionar, acima de tudo, pela forma dos livros, nem sempre pelo seu conteúdo.

Meus livros assustariam qualquer um desses consumidores de obras contemporâneas. Alguns são bonitos, porque são de arte. Melhor dizendo: não há como editar livros de arte sem que suas edições sejam também artísticas. A beleza neles é necessária, integra o tema. Os mais queridos, porém, já perderam uma ou ambas as capas, devem estar cheios de ácaros, foram riscados, sublinhados, anotados por mim. Rolam pela casa ou pelo escritório. Muitos não saem da minha cama, pois gosto de tê-los sempre à mão, pelo efeito terapêutico que têm sobre mim. Como sou onívora, leio de tudo, eles vivem misturados.

Minha biblioteca vai de Teresa de Ávila ao Marques de Sade, tenho almanaques populares, revistas antigas, livros raros e também deliciosos romances policiais, sem contar minha coleção de cartas de amor, escritas por Francisco para Maria durante décadas, e, recentemente, o diário de uma moça que viveu em Porto Alegre, cheio de confidências, cheio de vida, de esperanças e decepções. Vivo em meio a semelhantes riquezas, sim. Convivo com Balzac e os mais de dois mil personagens que protagonizam a Comédia Humana, com Maupassant, o mestre do conto, com Vieira, e seus eternos Sermões distribuídos pelos quinze volumes de uma edição portuguesa da década de 50, adquirida a preço de ocasião, porque todos eles foram salvos de um alagamento. Ficaram feios, mas conservaram o que lhes é essencial: sua legibilidade. Boa parte de meus livros já esperavam pelo meu nascimento; outros eu mesma adquiri ou, como prefiro dizer, vieram até mim.

Divido meu amor com todos eles, embora ame apaixonadamente apenas alguns, que mudaram minha vida. Há livros que, depois de lidos, se incorporam a nós de tal modo que jamais nos livraremos deles. Mudam profundamente nosso vir a ser. Deixam-nos a certeza de que somos a gente mesmo muito por conta deles, por conta do que lemos neles, do efeito que nos causaram.

Ah! Tem os dicionários! Sou apaixonada por dicionários, porque eles são as grandes ferramentas de nossa vida intelectual. Insisto em dizer que jamais vou me esquecer do dia em que descobri, no momento do descarte, os seis pesados volumes de meu Larousse Siècle XX, meu grande hipermercado de palavras francesas, fora referências breves a pessoas, lugares e coisas. Além deste, o meu Petit Larousse, surrado, que não tem mais capa, de 1947, comprado por meu avô Bleggi logo depois do fim da II Guerra, para ver como haviam ficado os mapas da Europa que vinham em anexo. Olhar um dicionário é sempre uma surpresa, uma maneira de distrair-se com as palavras, de encontrá-las e reencontrá-las quando elas estão descomprometidas de um sentido que não seja apenas o seu próprio. Dicionários são ditadores: rigorosos, inflexíveis, mas generosos, verdadeiros déspotas esclarecidos. Gosto de dicionários, de folheá-los ao acaso, e dar com palavras tão estranhas que a gente se pergunta para que servem. Outras conhecemos e empregamos, mas não é raro perceber-se, ao ler o seu sentido, que elas ainda podiam servir para definir outras coisas.

Dicionários nunca são demais. Grandes, pesados, desajeitados às vezes. Com letras econômicas, eles estão sempre ali, prontos a esclarecer. Agora estão renovados com a virtualidade, que abre vaga nas estantes. Aurélios, Houaiss e Michaelis são guardados em nossos computadores. Destino talvez de nossas bibliotecas será o de habitarem essas máquinas. Mesmo assim, nada substitui os livros, que a gente segura nas mãos, livros que a gente risca, anota, cheira, sublinha. Livros e dicionários virtuais não se deixam abrir ao acaso. Não se deixam percorrer sem objetivo, como gosto de fazer. A parte ruim dos livros virtuais é que não temos intimidade com eles. É meio como namorar pela internet. Todavia, livros e revistas em arquivos digitais são uma realidade que tende a persistir e mesmo a suplantar o modo tradicional de editar.

Tem dias que penso no fim de tudo isso que me cerca. Sei que minha biblioteca será desmembrada e sei que, alguns de meus queridos livros, irão parar num carrinho de catador de papel.  Serão vendidos a quilo, quem sabe. Cada vez se dispõe de menos espaço para guardar livros. Ninguém vai manter unidos esses meus livros todos, que nem mesmo guardam, entre si, um sentido comum, a não ser o fato de terem me pertencido. Aprendi a não lamentar isso, pois me dei conta de que minha biblioteca é, na realidade, uma grande coleção de livros, de papéis e de algumas coisas que conferem a tudo isso um sentido, sobretudo, biográfico, que só diz respeito a mim mesma.

É natural, pois, que tudo isso algum dia ― como eu mesma ― enfrente o processo de descarte, até porque, muitos dos mais importantes livros que vieram a ter comigo, só chegaram às minhas mãos justamente porque alguém os lançou ao mundo, não raro, ao lixo. Dessa forma, gosto de pensar que é a força de meu amor que mantém essa coleção, e que isso persistirá só enquanto eu aqui estiver para dar sentido a essas coisas todas que são, talvez, um pouco eu mesma.




Autor: Maristela Bleggi Tomasini
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Existe 15 comentários para esta publicação
terça-feira, 20/11/2012 por Maristela Bleggi Tomasini
Olá, HC-Maia!
Traças, Ácaros & Cia assimilam cultura à sua maneira, sim! E preferem os mais velhos também. Abraço!
terça-feira, 20/11/2012 por hc-maia
"Enaltação à Grandeza dos Livros Idosos".
Gosto muito dos seus textos.Detesto cupins e traças,únicos animais do planeta,possuidores,nos seus tratos digestórios,da Celulase-enzima que danifica a estrutura sagrada dos livros idosos.Seria o caso de se dizer que eles também gostam do que é bom?
segunda-feira, 19/11/2012 por Maristela Bleggi Tomasini
Querida Cida!
Está ótimo mesmo. Interativo. Eu saio das entrelinhas aqui na RVB. Beijos para você!
segunda-feira, 19/11/2012 por Aparecida Mendes (Cida).
Meus livros, meus amores.
Amei o título, amei a leitura, amei o bete papo, amei as rosas, amei TUDO!!! Maristela, beijos Cida.
segunda-feira, 19/11/2012 por Maristela Bleggi Tomasini
Isso está muito divertido!
Celso me arrumando um Monge Templário, e Rogério uma expedição arqueológica...
segunda-feira, 19/11/2012 por Rogerio Centofanti
Babilônia
Celso, ela anda me propondo uma viagem com finalidade arqueológica. Está convencida de que pode encontrar a biblioteca da Babilônia. Sente o drama...
segunda-feira, 19/11/2012 por Celso
Guardiã
Rogério, não seria a Maristela a guardiã do Livro da Regra, aquele escrito por são Bernardo de Claraval?
segunda-feira, 19/11/2012 por Maristela Bleggi Tomasini
Menos, Rogério... Menos
Não é a primeira, mas é a clássica: ilustrada por Doré, comentada por Camerini e editada pela Casa Sonzogno.
domingo, 18/11/2012 por Rogerio Centofanti
Viu, Celso?
Também eu adoro os textos, mas as vezes se faz necessário mostrar o making off, né? Prá você ter ideia, ela tem a primeira edição impressa da Divina Comédia, de Dante.
domingo, 18/11/2012 por Maristela Bleggi Tomasini
Celso! Ilustrações Maravilhosas!
Verdade. Também coleciono escritas pessoais: diários, cartas, anotações, mistérios e segredos. Abraço!
domingo, 18/11/2012 por Maristela Bleggi Tomasini
Rogério!
Ah, Rogério! Só falta você contar agora que eu sei O Nome da Rosa...
sábado, 17/11/2012 por Celso
Manuscritos
Poxa Rogério! Interpreto os textos (deliciosos) da Maristela, apenas pelos textos. Sequer conhecia o desejo dela por uma Leica digital. Como poderia imaginar que ela seria portadora de manuscritos? kkkkkkkkkkkkkkkkk
sábado, 17/11/2012 por Rogerio Centofanti
Velhos?
Mathias. As imagens de livros que você escolheu para ilustrar a crônica da Maristela são muito novas. Ela coleciona manuscritos, e do tempo de Gutemberg. rsrsrsr
sábado, 17/11/2012 por Maristela Bleggi Tomasini
Obrigada, Rosana
Também acho que eles, os livros, nos escolhem. Abraço para você!
sexta-feira, 16/11/2012 por Rosana
Suas palavras, minhas palavras
Que linda crônica, Maristela! Obrigada por traduzir o meu sentimento em relação aos meus livros. É assim mesmo que penso que acontece. Alguns exemplares que tenho, mesmo sendo escolhidos por mim, eles é que me escolheram... como a sua crônica...
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