Não sei quando foi que descobri os livros. Para mim,
eles sempre existiram, sempre cercaram minha vida. Eu brincava com livros
quando criança. Empilhava-os, cheirava-os, encantava-me com a diversidade de
suas cores e formas. Observava as figuras, sim; mas eram as letras capitulares,
a encantadora regularidade e a monotonia de suas páginas impressas o que me
atraia mais. Ainda brinco com eles hoje, uma vez que estão sempre à minha
volta, confortando minha existência, dando sentido às horas, tão escassas, que
às vezes preciso roubar ao sono. Por isso digo que os livros são, de fato, os
meus grandes amores.
Prefiro os mais velhos. Aqueles que o tempo já
danificou. Cada um tem um cheiro particular, todo seu. Suas páginas
quebradiças, manchadas e amareladas fazem lembrar a pele humana, à qual o tempo
causa esses mesmos danos. Possuo alguns centenários, de cujo particular encanto
sou extremamente ciumenta. Não gosto que sejam folheados por profanos que não
sabem respeitar nem sua forma nem tampouco seu conteúdo, muitas vezes
anacrônico, ultrapassado, mas nem por isso menos instigante.
A pós-modernidade alterou o livro. Não apenas eles se
tornaram eletrônicos, como ainda, quando impressos, mudaram completamente de
aparência. Basta visitar as grandes livrarias que, hoje, funcionam em
shoppings. Eu detesto shoppings. No entanto, não se foge deles, e as modernas
livrarias que lá estão impressionam pela grandeza. As edições de luxo
proliferam: livros enormes, pesados, com mais imagens do que texto. Custam
muito caro. O papel é de primeira, as fotos são impressionantes, o luxo é
ostensivo, quando não gratuito. Livros que a gente não pode ler na cama nem
riscar, sem sentir um pouco de culpa. São livros que servem mais para enfeite,
que prometem dar status ao comprador que vai colocá-los em algum lugar bem
visível da casa, como elementos de decoração.
Prefiro mil vezes os sebos. E aqueles bem bagunçados,
desorganizados, cheios de pó, onde se encontram os melhores vendedores que há,
porque a maioria é também leitor. Isso não ocorre nos shoppings, onde quem nos
atende procura livros em um terminal de computador. Experimente entrar num sebo
e perguntar por alguma obra ou autor. O vendedor, quando não é o próprio dono
que nos atende, vai direto à prateleira onde se esconde o nosso livro. Além
disso, ele sabe o nome da gente e, muitas vezes, guarda para nós alguma coisa
que vai nos interessar, porque conhece nossas preferências, nosso estilo,
nossos autores. É tudo muito diferente quando se entra nessas grandes livrarias
de shoppings, tão luxuosas, onde só há livros bonitos com cheiro de tinta nova,
que esperam por um comprador que se deixe impressionar, acima de tudo, pela
forma dos livros, nem sempre pelo seu conteúdo.
Meus livros assustariam qualquer um desses consumidores
de obras contemporâneas. Alguns são bonitos, porque são de arte. Melhor
dizendo: não há como editar livros de arte sem que suas edições sejam também
artísticas. A beleza neles é necessária, integra o tema. Os mais queridos,
porém, já perderam uma ou ambas as capas, devem estar cheios de ácaros, foram
riscados, sublinhados, anotados por mim. Rolam pela casa ou pelo escritório.
Muitos não saem da minha cama, pois gosto de tê-los sempre à mão, pelo efeito
terapêutico que têm sobre mim. Como sou onívora, leio de tudo, eles vivem
misturados.
Minha biblioteca vai de Teresa de Ávila ao Marques de
Sade, tenho almanaques populares, revistas antigas, livros raros e também
deliciosos romances policiais, sem contar minha coleção de cartas de amor,
escritas por Francisco para Maria durante décadas, e, recentemente, o diário de
uma moça que viveu em Porto Alegre, cheio de confidências, cheio de vida, de
esperanças e decepções. Vivo em meio a semelhantes riquezas, sim. Convivo com
Balzac e os mais de dois mil personagens que protagonizam a Comédia Humana, com
Maupassant, o mestre do conto, com Vieira, e seus eternos Sermões distribuídos
pelos quinze volumes de uma edição portuguesa da década de 50, adquirida a
preço de ocasião, porque todos eles foram salvos de um alagamento. Ficaram
feios, mas conservaram o que lhes é essencial: sua legibilidade. Boa parte de
meus livros já esperavam pelo meu nascimento; outros eu mesma adquiri ou, como
prefiro dizer, vieram até mim.
Divido meu amor com todos eles, embora ame
apaixonadamente apenas alguns, que mudaram minha vida. Há livros que, depois de
lidos, se incorporam a nós de tal modo que jamais nos livraremos deles. Mudam
profundamente nosso vir a ser. Deixam-nos a certeza de que somos a gente mesmo
muito por conta deles, por conta do que lemos neles, do efeito que nos
causaram.
Ah! Tem os dicionários! Sou apaixonada por dicionários,
porque eles são as grandes ferramentas de nossa vida intelectual. Insisto em
dizer que jamais vou me esquecer do dia em que descobri, no momento do descarte,
os seis pesados volumes de meu Larousse Siècle XX, meu grande hipermercado de
palavras francesas, fora referências breves a pessoas, lugares e coisas. Além
deste, o meu Petit Larousse, surrado, que não tem mais capa, de 1947, comprado
por meu avô Bleggi logo depois do fim da II Guerra, para ver como haviam ficado
os mapas da Europa que vinham em anexo. Olhar um dicionário é sempre uma
surpresa, uma maneira de distrair-se com as palavras, de encontrá-las e
reencontrá-las quando elas estão descomprometidas de um sentido que não seja
apenas o seu próprio. Dicionários são ditadores: rigorosos, inflexíveis, mas
generosos, verdadeiros déspotas esclarecidos. Gosto de dicionários, de
folheá-los ao acaso, e dar com palavras tão estranhas que a gente se pergunta para
que servem. Outras conhecemos e empregamos, mas não é raro perceber-se, ao ler
o seu sentido, que elas ainda podiam servir para definir outras coisas.
Dicionários nunca são demais. Grandes, pesados,
desajeitados às vezes. Com letras econômicas, eles estão sempre ali, prontos a
esclarecer. Agora estão renovados com a virtualidade, que abre vaga nas
estantes. Aurélios, Houaiss e Michaelis são guardados em nossos computadores.
Destino talvez de nossas bibliotecas será o de habitarem essas máquinas. Mesmo assim,
nada substitui os livros, que a gente segura nas mãos, livros que a gente
risca, anota, cheira, sublinha. Livros e dicionários virtuais não se deixam
abrir ao acaso. Não se deixam percorrer sem objetivo, como gosto de fazer. A
parte ruim dos livros virtuais é que não temos intimidade com eles. É meio como
namorar pela internet. Todavia, livros e revistas em arquivos digitais são uma
realidade que tende a persistir e mesmo a suplantar o modo tradicional de
editar.
Tem dias que penso no fim de tudo isso que me cerca.
Sei que minha biblioteca será desmembrada e sei que, alguns de meus queridos
livros, irão parar num carrinho de catador de papel. Serão vendidos a quilo, quem sabe. Cada vez
se dispõe de menos espaço para guardar livros. Ninguém vai manter unidos esses
meus livros todos, que nem mesmo guardam, entre si, um sentido comum, a não ser
o fato de terem me pertencido. Aprendi a não lamentar isso, pois me dei conta
de que minha biblioteca é, na realidade, uma grande coleção de livros, de
papéis e de algumas coisas que conferem a tudo isso um sentido, sobretudo,
biográfico, que só diz respeito a mim mesma.
É natural, pois, que tudo isso algum dia ― como eu mesma ― enfrente o processo de descarte, até porque, muitos dos mais importantes livros que vieram a ter comigo, só chegaram às minhas mãos justamente porque alguém os lançou ao mundo, não raro, ao lixo. Dessa forma, gosto de pensar que é a força de meu amor que mantém essa coleção, e que isso persistirá só enquanto eu aqui estiver para dar sentido a essas coisas todas que são, talvez, um pouco eu mesma.