Convido vocês para um passeio rápido pelo tempo, começando pela década de 1920. É bom notar que a música dita popular só vai se popularizar de verdade depois do rádio e do disco, que permitiram sua maior divulgação, coisa que não acontece antes de 1922. Além disso, apenas após o fim da I Guerra (1914-1918) é que o século XIX será definitivamente sepultado. É durante os anos 20 que surge, na Europa, uma mulher que nada mais tem a ver com os padrões vitorianos, aquelas lindas peruas apertadas por espartilhos, de longos cabelos, pele muito branca e delicada, preservada por sombrinhas, leques, chapéus e luvas. Chanel vem com tudo e rompe modelos. Ela revoluciona moda e comportamento. Corta o cabelo, bronzeia a pele, costura longos vestidos moles, feitos de jérsei — tecido usado apenas por pescadores do Mediterrâneo. Surge a melindrosa ao som do Foxtrot, do Jazz. Ela usa joias falsas, fuma cigarros em longas piteiras e assume a sedução. É a década das revistas de cunho cultural, direcionadas a uma mulher que começava a se interessar por atividades fora do lar. Louise Brooks ganha o mundo com o cinema, protagonizando Lulu. Anita e Tarsila participam ativamente do movimento de 22. Em 1927, o Brasil cantava Malandrinha, com Francisco Alves, que louva a linda imagem de mulher que o seduz, a mulher que, se ele pudesse, levaria até o altar. Curiosamente, essa mesma mulher ele chama de maladrinha, aquela que não precisa trabalhar.
Na década de 1930, o que nos ocorre de imediato é a depressão econômica que se seguiu ao estouro da bolsa em 29. No Brasil, temos Vargas no governo, sem contar a revolução de 30 que afetou São Paulo, estado onde se concentraram outrora grandes fortunas quatrocentonas do café, e onde despontam então outras grandes novas fortunas advindas da indústria, notadamente construídas por imigrantes árabes e italianos. Neste cenário aparece Amélia, que Mário Lago imortalizou. Amélia é que era mulher de verdade. Sem qualquer vaidade, ela passava fome ao lado do poeta. Segurava todas, a Amélia. Modelo de mulher para machista nenhum botar defeito. Bem, pelo menos aprendeu a não ser mais uma malandrinha.
Os anos 40 chegam com II Guerra mundial já deflagrada. Na Europa, os aliados eram animados por Marlene Dietrich, uma mulher com mais de quarenta anos então, mas não menos marcante como símbolo sexual. Nesta década, talvez fosse significativa a visão feminina que exaltava a deusa da minha rua, valsa composta em 1940, com letra de Jorge Faraj e música de Newton Teixeira. Essa nobre mulher olhava a lua. Seus olhos não eram para a realidade, ou seja, para as poças d’água para as quais os olhos dele, plebeu, se voltam. Pessimista, ele acha que não vale a pena sonhar, pois é pobre, e ela, rica. Ainda nesta década, em 1946, temos Caymmi e sua Marina, morena, a mulher a quem critica por ter se pintado. A música teve diversas gravações e, é bem verdade, ficou conhecida através de Gilberto Gil.
Dá para notar que há modelos em confronto? As mudanças sociais impõem novos paradigmas, inclusive de gênero, pois os femininos mudam. O encantamento dos homens, contudo, permanece, até então, um pouco anacrônico, como se eles sempre procurassem reviver um modelo fadado à superação. Um freudiano radical ia falar que isso tudo se deve a saudades da mãe, mas eu não arriscaria nenhum palpite, pois todo mundo sabe que homem é bicho de duas cabeças.
Os anos 50 trazem grandes mudanças. Surge no imaginário popular a fatal Marilyn Monroe, muito substancial em sua sensualidade explícita. Ela faz biquinho, e parece que, sem querer, vai parar em cima de um ventilador, de onde não consegue abaixar a longa saia plissada que deixa ver suas belas pernas. Ah! Foi Marylin que, em 1949, deixou-se fotografar nua sobre veludo vermelho, foto que serviu para a confecção daquele famoso calendário. A realidade, porém, não é feita de Marilyns. Está mais para a Iracema (1956) e para a Pafunça (1958) de Adoniran Barbosa. Ambas são mulheres narradas a partir de suas incompetências: uma que morre por não saber atravessar a famosa Avenida São João; outra, de frio coração sem amor, sem roupa e sem sopa, que fez dele um vira-lata sem dono. Eu só espero que ele não tenha perdido o trem das 11. Se perdesse, certamente poria a culpa em seu amor de então.
Em 60 começa uma era de mudanças radicais. Não apenas a moda se altera, mas ainda o comportamento. A pílula anticoncepcional prepara o movimento de 1968 na França. O Brasil de 1964 sente-se afrontado por Leila Diniz, que exibe a barriga de grávida na praia, usando um biquíni. A musa dos anos 60, no Brasil, todavia, não pode ser outra senão que a garota de Ipanema, que Vinicus e Tom imortalizaram em 1962. Carros conversíveis, twist, o slack, o maiô de duas peças e minissaia de Mary Quant introduzem mudanças no vestuário e no comportamento. No Brasil, 60 foi a década do biquíni de bolinha amarelinha usado por Ana Maria e ironizada por Celi Campelo, que pedia também que cupido a deixasse em paz. Fica cada vez mais difícil resgatar a mulher deusa do passado, aquela que já foi bonita e graciosa, aquela, que pisava em astros distraída, e imaginá-la, por exemplo, numa festa de arromba.
As mudanças se aceleram. A década de 70 trouxe com ela o fim da Guerra do Vietmann. Jane Fonda era Barbarela. Foram tempos de Guerra Fria e, no Brasil, de Copa do Mundo disputada pela seleção que tinha Pelé, e que arrematou a Jules Rimet no México. Angie é a musa dos Rolling Stones em 1973. Época de exceção, de segurança nacional, de DOPS. A música era censurada no Brasil, e o governo militar não se mostrava simpático para com os movimentos que então surgiam. Jovem Guarda, Novos Baianos, Tropicália. Rita Lee era a mulher irreverente de uma época onde a palavra de ordem era sexo, drogas and rock and roll. O caráter sagrado da mulher, identificada com a santa mãe de Deus, na figura da Virgem Maria, é questionado com Meu Bom José, música lançada em 1972 com Rita Lee e Os Mutantes. Nada nunca mais será como antes.
A população mundial aumenta, os computadores aparecem nos lares, e os anos 80 aceleram a chegada do futuro. Novas tecnologias interferem no trabalho, consome-se mais. Carros e televisores estão agora ao alcance de todos. Não é mais o cinema, mas a televisão que aponta as novas musas, dentre as quais Farra Fawcett, que protagoniza uma das panteras. Surge a executiva, a militar e a militante. É a década da mulher que opta cada vez mais pela carreira em detrimento do lar. Os discursos políticos, antes silenciosos, tornam-se mais veementes. Em Paris, dança-se O Último Tango e o O Império dos Sentidos se impõe. A mulher deve ser nova, além de bonita e, ainda por cima, carinhosa, para que o homem possa gemer sem sentir dor. — Jogo duro, hem, Zé Ramalho? — Blitz, em 1982, reclama que Você não Soube me Amar, Cazuza se encanta com o Bete Balanço em 83, e em 1985 esconde a musa sob Codinome Beija-Flor, a mulher do sexo casual, que é bom enquanto dura. No mesmo ano em Ritchie homenageia Menina Veneno no escuro de seu quarto. É a mulher espetáculo, a mulher evento, pirotécnica, boa de cama, que tem que acontecer e fazer a hora. O Brasil se politiza, quer Diretas Já e conquista sua Constituição em 1988. Cai o Muro de Berlin em um ano depois.
Quanto aos anos 90, tão perto de nós, neles Bill Gates nos presenteia com Windows. Tem início a época da virtualidade. A internet transforma o mundo e tudo acontece em tempo real. O consumo explode, os centros urbanos decaem, os Shoppings tornam-se o núcleo de uma nova onda que possui marcas. Consomem-se não apenas produtos, mas comportamentos. A sexualidade explode e os gêneros começam a ser transcendidos. Em 1995, já se fica pelado em Santos, a musa era a Mina que tinha o cabelo da hora, e que andava na Brasília Amarela, com corpão violão, ela é docinho de coco que deixa o cara doidão, gritando eu te I love you.
Enfim, o milênio é ultrapassado e eis o nosso presente. Quem é, agora, a mulher que aparece na música nossa de cada dia? É a mulher da laje que os pagodeiros não se cansam de exaltar, é a mulher convidada para esquentar a festa no apê. Ela tem gostosuras e é narrada como produto de consumo: é substituível. Há de pegar, de ficar e até algumas de namorar. É cachorra, lacraia e gosta de ficar atoladinha. Eu nem vou falar das mulheres frutas, de moranguinho a jaca, dispensados os abacaxis.
Todas essas mulheres cantadas foram descritas por homens. Seus retratos, associados às mudanças sociais, mostram um feminino que ganha cada vez mais corpo e substância. A contemporaneidade é glandular, assimila o feminino a um objeto que se consome por prazer. Do presente emerge uma mulher que se presta ao gozo objetivo, aqui e agora, imediato, que muito se distancia da imagem inicial, associada à sublimidade, à utopia de uma posse antes apenas sonhada.
Resta saber o que vem por aí. Um pós-romantismo talvez ou a transcendência dos gêneros. Eu não saberia dizer. Contento-me em traçar essa perspectiva sem ajuizar se isso é bom ou ruim, quando é apenas — e disso eu não duvido — o resultado de uma sociedade voltada ao consumo, que coloca preço em tudo, no amor e na dor. Uma sociedade cada vez mais autofágica, cada vez mais competitiva, onde pessoas e produtos disputam lugar na vitrine, e onde tudo é temporário. Uma sociedade que acredita que ninguém é insubstituível, e que tem isso em conta de verdade, não pode esperar outra coisa senão que o telefone faça piririn, piririn, piririn... alguém ligou pra mim!