FOTOS, CÂMERAS, ARTISTAS, TÉCNICOS E APENAS USUÁRIOS
Réplica “Delícias da fotografia”, de Maristela Bleggi Tomasini.
O melhor frango ensopado que comi em minha vida foi feito em um canteiro de obras, dentro de uma velha, amassada, e nada higiênica panela de pressão sem tampa, sobre o fogo de pedaços de pontaletes de eucalipto em desuso, e apoiada sobre dois blocos de cimento. Foi temperado inteiro, com sal, pimenta e cebola, e avermelhado com colorau, em meio à água retirada de uma caçamba. O “chef”? Aroldo, o pedreiro. Isso foi nos anos 70, e até hoje é inesquecível.
Ah, poderá pensar o leitor, inesquecível pela situação sui generis. Não, asseguro. Realmente tinha um sabor inigualável.
Talvez fosse a única especialidade de Aroldo. Não sei. Sorte? É possível. O fato, porém, é que ao menos naquele dia, e naquele prato, Aroldo mostrou-se um mestre na arte culinária.
Maristela Bleggi Tomasini é assim com uma câmera fotográfica nas mãos. Ela não sabe o que fazer com minha objetiva Hasselblad Planar, como talvez Aroldo não soubesse o que fazer com o frango em um fogãohightec, uma vez que o talento de ambos não se expressa pelos recursos adotados, mas pela obra que realizam: Aroldo com sabores, e Maristela com imagens que captura.
Ambos têm técnicas, isto é, habilidades vertidas em resultados. Não podem, porém, ser replicados, reproduzidos, uma vez que donos dessas técnicas, poisconstrutores dessas habilidades.Ainda que cada qual a seu modo, talvez possam, ambos, merecer o nome de artistas. Eles - e não os utensílios - são os recursos que produzem as maravilhas.
Maristela não sabia que fotografava. No passado enviou-me uma foto anexada a e-mail. Era a cena de um campo, talvez de uma pastagem, em meio a uma névoa. Bem composta, bem enquadrada, e dotada do que denomino de momento mágico do “clic”, com distribuição perfeita de cores, tons e semitons.
Perguntei que “equipamento” tinha utilizado e, demonstrando surpresa com a pergunta, disse-me que havia sido o telefone celular. Isso faz alguns anos, quando os celulares começavam a apresentar o recurso de captura de imagens. Viajamos para o Rio de Janeiro, depois, e Maristela continuou extraindo leite de pedras com o tal celular.
Ora, quem faz aquilo tudo com um celular, o que não faz com uma câmera? Comprou a sua primeira. Dessas pequenas e portáteis, comuns, econômicas, mas, de tanto me ouvir falar que os alemães são imbatíveis em lentes, optou por uma que tivesse uma objetiva Carl Zeiss, embora tudo o mais fosse made in japan.
Continuou apresentando resultados dotados de imensa sensibilidade criativa, mas agora com uma qualidade bem superior no produto final. Com mais recursos, da objetiva, pode expandir os limites de sua imaginação, e partiu para os abstratos, os compostos, etc. O que Maristela não disse, em sua crônica, é que domina pinceis e tintas sobre telas. É pintora, e daquelas que aprendeu reproduzindo obras dos grandes clássicos, dos quais é profunda estudiosa. Nessa medida, não apenas seu olhar, mas também o olhar dos clássicos, com os quais aprendeu, tornam-se recursos subjetivos poderosos quando com uma câmara entre os dedos.
Mais tarde, ainda, e surgem novas câmeras. Como eu tinha duas, deixei que escolhesse uma delas. Escolheu com sabedoria. Ficou com a mais barata, menos consagrada, mas que tinha uma objetiva Leica. O que já era bom ficou ainda melhor, certamente. Não satisfeita, e adquiriu uma poderosa Nikon.
Não desdenho de sua Nikon, como afirma na crônica. O fato é que ela mesma fica mais a vontade – e melhores resultados – com a primeira maquininha (com lentes Karl Zeiss) e com a que escolheu como presente pelo fato de ter uma objetiva Leica (alemã).
Ela não sabe o que fazer com minhasHasselblad, Flektogon, Leica, Rollei, Pentacon e Carl Zeiss, pelo fato de serem todas utilizadas apenas no modo “manual”. Não é verdade que não aprenderia a lidar com tudo isso (aberturas, velocidades, campo focal, ISO, etc.). O fato é que esses preciosismos técnicos, para chegar a um resultado artístico, impedem Maristela de fazer o que melhorsabe: capturar a imagem que deseja, do modo que deseja, mas principalmente no momento que deseja. Teria que realizar uma série de cálculos mentais, e isso roubaria o que mais importa em suas fotos: o momento. Nessa medida, minhas objetivas estão para a Maristela como estaria um fogão elétrico – e dotado de termostato – para o Aroldo. São talentosos por inspiração, e não por transpiração física, mental e emocional.
Não sou artista. Dessa forma, compenso minha falta de competência nesse aspecto da vida fazendo uso de recursos materiais, e que funcionam como uma espécie de muleta. Faço fotos como a imensa maioria dos usuários de câmeras, e sobre essa maioria levo a vantagem de um resultado que impressiona pela qualidade de cores e detalhamentos, mas por obra e graça da qualidade das objetivas, enão minhas, na condição de quinto elemento, isto é, de quem realmente faz ou deveria fazer a diferença.
Eu e Maristela temos um conhecido comum, o Edson. Por conta da trajetória de vida, Edson não tem a formação intelectual e artística da Maristela, e talvez não tenha, também, minha formação técnica. Não domina a linguagem cult. Não tem familiaridade com sopinhas de letras. Tem, porém, como Maristela e Aroldo, uma imensa sensibilidade. Um pouco parecido comigo, Edson gosta de objetivas, mas, como Maristela, gosta de criar, e de expressar-se por meio de imagens. Nessa medida, também ele é um artista, pois “fala” conosco por meio de imagens.
Ah, Maristela oculta, também, em sua bela crônica, que seu atual sonho de consumo é uma Leica digital, totalmente made in germany, mas automática.
Como escrevo pouco, e falo pouco de mim, ela pensa que não sei disso tudo.
Coitada....
Imagens meramente ilustrativas;as duas últimas foram produzidas com uma Leica digital.