Réplica ao belo e inspirado texto “Inventando a Velhice”, de Maristela Bleggi Tomasini
Não sabemos que estamos velhos, exceto quando diante de evidências exteriores. Não é diferente com a infância, adolescência e, inclusive, com a chamada vida adulta.
“Isso é conversa para adultos”, “você já é um homenzinho”, “deixe de ser criança”, “não fica bem na sua idade”, e assim por diante.
Para nós, entretanto, a vida é unidade, e não segmentada por essas descontinuidades que nos são apontadas de fora para dentro. É uma linha que caminha pelo tempo. Não evolui e nem involui, não progride e nem regride, uma vez que tais palavras são apenas ideologias, e em nada correspondem aos mecanismos dessa maquininha biológica que somos nós, e que se desgasta com o passar do tempo, a exemplo de toda e qualquer outra maquininha. Algumas mais rapidamente do que outras, mas todas se desgastam.
Lamentamos quando éramos crianças, adolescentes, adultos e, finalmente, velhos. Quando crianças, pelas limitações exteriores que nos impediam de gozarmos os privilégios dos adolescentes. Quando adolescentes, pelas limitações das regalias dos adultos, mas, ao mesmo tempo, do protecionismo dedicado às crianças, e que perdemos. Quando adultos, morríamos de inveja dos adolescentes, e muitos sonharam com a aposentadoria, na esperança de alforria do fardo das terríveis obrigações. O complicado, na velhice, é que não existe a fase posterior como objeto de paixão ou de esperança. É uma fatalidade biológica. Como, porém, a vida intelectual e afetiva não costuma necessariamente sofrer o mesmo desgaste, e é sobre elas que construímos a nossa identidade, essa inevitabilidade tende a gerar um lado desolador. Da vida ativa, afetiva e intelectual, ficamos cada vez mais restritos às duas últimas e, mesmo assim, para os que afortunadamente souberam desenvolvê-las, ou valorizá-las.
Descobri que estava velho em um único episódio. “Corri” para chegar a um ônibus que estava por sair do ponto, quando percebi que, de fato, não corria. Estivesse andando, e a velocidade seria exatamente a mesma, talvez maior. O corpo não correspondia ao impulso imaginado. A cena foi ridícula, mas suficiente para eu perceber que estava diante de uma limitação posta pelo tempo. Fez um mal imenso à vaidade, mas apenas isso.
Contei o ocorrido a um amigo, que se apressou em dizer que isso era devido a minha vida sedentária, além da condição de fumante, seguido de um desses discursos chatos e enfadonhos em favor da vida saudável – “mens sana in corpore sano”, profetizou. Esse atlético amigo está, há cinco anos, sobrevivendo feito um vegetal, acometido por um acidente vascular cerebral arrasador. Eu tirei a minha lição: nada de tentar correr atrás de ônibus. Morrer? Ora, estou vivo aos 63, e poderia ter morrido com um, dez, vinte ou trinta anos. E dai? Afinal, nunca conheci alguém que fosse eterno.
Algumas vezes penso em mim como o rádio a válvula, e que fica sobre o criado mudo, ao lado de minha cama. Teve seu momento de glória, e reuniu pessoas em torno dele para desfrute das radionovelas, noticiários, programas de calouros e música. Foi, em seu tempo, the most da tecnologia.
O meu, entretanto, ainda funciona. Bem verdade que com a troca de alguns componentes, mas ainda funciona. Demora um pouco para produzir efeitos, ao menos até que suas válvulas esquentem, mas funciona. Fora de moda, pois não sintoniza emissões em FM – inexistentes em sua época -, e muito menos em estéreo, obviamente. Sai-se relativamente bem em AM, e não melhor por conta de mudanças técnicas e tecnológicas nas emissoras de rádio. Em compensação, arrasa nas ondas curtas. Sintonizo emissoras de vários cantos do mundo, mas principalmente uma da Alemanha. Como não compreendo o idioma, às vezes suspeito de sinais tardios da segunda guerra, agora chegando, depois de superada a travessia do Atlântico. Quem sabe?
Creio que minha vida, hoje, é como o rádio a válvula. Não capta certas ondas, e não decodifica adequadamente outras. Por outro lado, é imbatível na escuta de longas distâncias, isto é, de coisas que não estão ao alcance fácil e à mão de todo mundo. Ótimo, pois não quero ser como todo mundo, uma vez que continuo, desde o nascimento, sendo uma peça única.
O que não aceito para mim, e que me parece estranho que outros de minha idade aceitem para si, é a nova onda velha. Melhor idade, por exemplo. Como pode alguém sintonizar essa emissora? Seja qual for o seu apelo, tende a tratar a todos como se fossem iguais, visando disciplinar e ditar condutas por faixas etárias, como se fossem faixas de ondas de meu radio a válvula.
Certamente estou velho. Meu corpo lembra-me sempre dessa condição, as atitudes dos outros me servem de espelho e, se não morrer logo, vou ficar ainda mais velho. Nada há que eu possa fazer em relação a isso, como também quando era criança, adolescente e adulto. E dai?
Esse reconhecimento, porém, não me obriga a fazer parte de uma legião de felizes por decreto, por meio de programações estúpidas, às quais não me rendi nem mesmo quando era criança. Resolvido? Não. Apenas consciente das limitações, mas também das ilimitações, ao menos por enquanto.