É bem diferente, porém, quando me vejo frente a frente com gente maluca. Na mesma hora, numa fração de segundos, tudo muda. Coisa engraçada! É um alívio poder sentir-se à vontade. Sabe-se que o outro nos entende, que percebe nossa forma de sentir e de estar no mundo. Assim foi conhecer o Roque pessoalmente. De ouvir falar, já sabia dele. Era o louco que vivia numa pequena cidade do interior de São Paulo.
Não é difícil imaginar uma cidadezinha de mil habitantes, com ruas estreitas, calçadas que mal dão passagem a duas pessoas caminhando lado a lado, fachadas a um metro do meio fio, com portas e janelas que se abrem direto para a rua. Casas pequenas, coloridas, coladas uma na outra, que desenham a paisagem em subidas íngremes seguidas de descidas abruptas, mais uma pracinha com bancos brancos, árvores, uma imagem de santa, uma igreja, banheiros públicos, lojinhas, muitos cachorros que andam soltos por ali, coçando-se, e que nos olham como a mesma pasmaceira que plasma as coisas da província: lenta, muito lenta, vagarosa, densa. Os falares são cantados, e as frases terminam assim, sem ponto. Forte. Todos falam muito alto, e a voz das mulheres é estridente e cantada como a fala das maritacas. Os homens são rouquenhos. Tudo é muito respeitável, como deve ser. Tudo é muito óbvio, menos o Roque.
Roque fala de si na terceira pessoa. Bebe muito. Como louco que vive em liberdade — espécie de bode expiatório — ele reclama e detém a prerrogativa do discurso, sendo-lhe dado o direito de falar o que bem entende do jeito que bem entende. Conhece cada um dos habitantes do lugar, sua história, suas emoções, seus bens, seus males. É o senhor da memória. Sabe causos, lendas, ditos populares; sabe segredos de vivos e mortos. Nada lhe escapa. Sua relação com os habitantes locais, no entanto, é singular. Simbiótica, eu diria. Roque ganha tudo aquilo de que necessita para viver, e recusa-se terminantemente a exercer qualquer ofício. Muitos são os que tentam reconduzi-lo aos caminhos da razão, mas Roque, muito embora compreenda perfeitamente bem o que esperam dele, continua sendo simplesmente Roque. Não aceita horários, disciplina ou tarefas. Aceita comida, dinheiro, presentes, mas não admite que isso lhe seja, de qualquer forma, cobrado. É independente, livre, e senhor de si.
Quando encontrei Roque pela primeira vez ele estava sóbrio. Na verdade, sempre está, mesmo quando bebe. Manteve-se solene na minha presença, mas notei que me observava e que analisava minhas reações. Dele eu sabia que era o louco da cidade, assim mesmo: oficialmente, como só pode acontecer na província, onde a rotina, quem sabe, já se torna por si mesma uma camisa de força mais eficiente que os medicamentos dados aos loucos metropolitanos. Ele, de mim, sabia que era Maristela, gaúcha, que viria à cidade, inclusive para conhecê-lo. As apresentações foram formalizadas. Falamos pouco. Seu aperto de mão era quente e forte. Entre os presentes, a conversa ia pelos entretantos, e eu me esforçava por parecer atenta. Percebi que Roque me olhava firme. Um olhar doce, meigo, capaz de perceber o outro a fundo. Acho que foi nesse instante que entendi a trágica loucura do Roque; como ele, por certo, minha trágica racionalidade. Ele bebe; eu escrevo. Ambas as condutas nos expõe a incontinências, e é preciso saber escapar a patrulhas, refinar-se na arte dos olhares, no requinte dos comportamentos.
Por vezes, triste, diz simplesmente que “tem dia que é noite” e, quando a gente lhe pergunta se está tudo bem, diz que “tá ruim, mas tá bom”, quando não afirma o contrário.
Terminadas as apresentações e o correto preenchimento do espaço com as palavras de praxe e as despedidas de ofício, Roque foi embora. Seguiu-se o jantar. A noite encontrou a casa sossegada, com todos se acomodando à presença da hóspede que, aos poucos, se habituava à paisagem, ao ritmo, aos sons dentre os quais se destacava o sino da igreja que assinava horas e meias horas, uma por uma, dia e noite. De repente, batidas fortes e insistentes na porta da rua anunciavam que alguém quebrava protocolos. Era o Roque.
Muitos anos podem se passar, mas nada me fará esquecer do que vi então. Ele se apresentava vestido a caráter. Por cima de calças muito largas, usava uma camisa enorme, cuja estampa era o rosto de John Lennon. Na cabeça, por baixo do chapéu de abas moles, trazia uma peruca de tranças, ao estilo rastafári, com cachos que caiam por sobre os ombros e iam até a metade das costas. Usava ainda um casaco mais curto por cima de tudo. Calçava chinelos. Nas mãos, uma mala de couro marrom, modelo antigo, de conteúdo misterioso, que ele trouxera ali para mostrar-me. Fiquei tão comovida quanto surpresa com aquela singular aparição. No mesmo instante tive a mais absoluta certeza de que me encontrava, não na presença de um louco, mas diante de O Louco, arquétipo que habita nosso imaginário desde sempre. Eis um desses raros instantes da vida onde a humilde realidade recua diante da fantasia. Fiquei olhando para aquela figura alegre, que gesticulava teatralmente na pequena sala, rodopiando, como se dançasse, antes de me explicar, com cuidado, que ali estava seu tesouro.
Ocorreu-me então que os conteúdos da loucura sempre se materializam de alguma forma. Roque caracterizou-se para visitar-me, trazendo-me o que tinha de mais seu: mistérios que cabiam dentro de uma mala. Andarilhos percorrem o mundo com sua trouxa, fragmentos de coisas, pessoas, emoções, achados. Roque viera até ali para revelar-se.
Sentei-me no chão da sala e, atenta, vi ser aberto o único fecho de pressão que ainda mantinha firme pelo menos um dos lados da tampa da pequena mala de couro marrom. Dentro dela, objetos curiosos, documentos, uma carteira de trabalho, fotos, poeira, papéis amassados guardados dentro de sacos plásticos. Tenho certeza de que cada um daqueles elementos é o elo mágico onde se prende alguma história. Fascinada, queria saber de tudo, quando meus olhos bateram em cheio numa letra bonita, desenhada com rebuscadas guirlandas muito delicadas. O traço fino denunciava uma escrita feminina. Eram cartas. Cartas de amor.
Há alguns anos, a saúde do Roque piorara de tal forma, que os moradores da cidade decidiram promover sua internação num manicômio. Longe da bebida, ainda que não recuperasse aquilo que se entende por plena lucidez, certamente daria férias ao organismo ressentido dos efeitos do álcool. Foi onde conheceu a autora das cartas. Pelo que entendi, ambos tiveram algum tipo de envolvimento sobre o qual Roque nada me falou. Limitou-se apenas a me deixar ler uma das cartas, onde ela se despedia dele, ao que parece, para sempre. Dizia que estivera disposta a amá-lo e a dedicar-se inteiramente a esse amor. Contudo, entendera que Roque não era homem de prender-se a nenhuma mulher, que ele pertencia ao mundo e à sua liberdade. Dizia ainda que ele não seria nunca capaz de ligar-se a uma pessoa, porque estava bem longe disso, entregue à sina delirante que o fazia andar pelo mundo, ainda que este mundo se encontrasse restrito às ruas da pequena cidade onde vive. Era uma carta de amor, sim; mas era, sobretudo, um tributo à loucura entendida por ela como rival, como uma concorrente que lhe roubasse toda e qualquer possibilidade de ter Roque pelo coração. Não tive mais chance de fuçar na misteriosa mala do Roque, descobrindo nela outros segredos.
Era uma carta de amor, sim; mas era, sobretudo, um tributo à loucura entendida por ela como rival, como uma concorrente que lhe roubasse toda e qualquer possibilidade de ter Roque pelo coração.
Numa de minhas idas à sua cidade, Roque foi esperar-me no aeroporto, lugar onde jamais estivera antes, ainda que Guarulhos não fique a mais de 200 km de onde mora. Em momento algum o tamanho e a imponência do lugar afetaram-lhe a serenidade. Seguia com olhos atentos e muito escuros o ir e vir das escadas rolantes, ponderando sobre as facilidades que um engenho como aquele poderia oferecer se fosse possível tê-lo no mato, lugar onde se entrega à prática de caçar peixes, como diz. Quando sentiu sede, mostrou alguma surpresa com a gratuidade da água, que podia ser sorvida diretamente dos bebedouros automáticos com que facilmente aprendeu a lidar. Na saída, observava os carros que obedeciam ao comando das sinaleiras. Perguntou se ninguém cuidava, e pareceu-lhe estranho que os motoristas fossem obedientes, ainda que ali não houvesse nenhum policial fardado, ostentando sua autoridade. Tenho para mim que Roque repudia qualquer coisa que exerça função de controle. Leva a liberdade ao extremo, e talvez não seja errado afirmar que é dela própria um refém.
Dentre as coisas das quais mais gosta está o rio e sua cachoeira, o mato e música em geral. Roque possui um refinado sentido musical. Conhece bem melodias, letras, cantores, e é capaz de improvisar e cantar com ritmo. Seu vocabulário, naturalmente, é pobre, dada sua condição social e cultural. No entanto, seu pensamento é rico, e ele produz notáveis figuras de linguagem para falar de si, dos outros, da natureza, das coisas. Da mesma forma, ele profetiza com esses seus ditos, especialmente quando exclama seu “ô lasquera!” ou mesmo quando se queixa de alguém que quer lhe “comer o talo”. Por vezes, triste, diz simplesmente que “tem dia que é noite” e, quando a gente lhe pergunta se está tudo bem, diz que “tá ruim, mas tá bom”, quando não afirma o contrário.
Roque gosta de ouvir rádio. Pediu-me um, mas deixou bem claro que o presente só seria bem vindo com garantia do fornecimento de pilhas. Ele está certo. Sem