Rio+20;Não perder o bonde

terça-feira, 8 de maio de 2012

Banda larga pública; construções alternativas; produção não-linear: superação geral do consumismo. Como agir agora, para defender (e transformar) planeta.O livre acesso à banda larga é outro fator muito importante da racionalização do uso da energia. Em cidades como Piraí, no Estado do Rio de Janeiro, a generalização do acesso permite que mais cidadãos resolvam os seus problemas pela internet, e os bits viajam mais rápido e mais barato do que o nosso deslocamento de carro ou de ônibus...

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... além de reduzir o tempo perdido para resolver um problema pessoalmente.

Isto envolve tensões entre as empresas que cobram pedágios sobre a circulação de informações e conhecimento, e as necessidades públicas. Para dar um exemplo, no caso da reconstrução de New Orleans depois do furacão Katrina, “o ímpeto foi construir uma rede de banda larga sem fio em escala metropolitana destinada a assegurar um serviço público gratuito de internet, o que permitiria também assegurar a comunicação necessária para os serviços do governo e de emergência. A empresa Bell South ameaçou processar a cidade se a rede municipal de New Orleans continuasse a ser administrada pela cidade. Em consequência, a rede foi comprada por uma empresa de fora” 1No caso, tecnologias que geram economias sistêmicas no território e para todos, são travadas para assegurar lucros para um grupo. É a economia do pedágio.

A generalização do acesso à banda larga sem fio constitui um fator importante de racionalização do uso de energia, e na realidade de eficiência sistêmica de todos os processos produtivos. Com a economia mundial evoluindo rapidamente para a economia do conhecimento, a livre circulação das informações torna-se essencial. A rua também tem custos, inclusive incomparavelmente superiores aos custos da banda larga, que navega em ondas eletromagnéticas, com pouca infraestrutura necessária, mas ninguém imaginaria cobrar pedágios nas ruas para as pessoas passarem. O fato das ruas serem gratuitas não impede que se instalem comércios e diversos tipos de atividades, estas sim remuneradas. O atraso na criação de uma infraestrutura pública e gratuita sem fio leva a que milhões de pessoas façam viagens inúteis, a que empresas acumulem estoques desnecessários. O uso de motoboys para colher uma assinatura, ilustra bem o quanto interesses privados ou o atraso na compreensão das tecnologias gera custos para todos. A ineficiência gerada tem custos energéticos, e o balanço energético deve ser levado em consideração nas suas diversas dimensões, inclusive de tempo perdido e de mudança climática.

A indústria da construção constitui outra área madura para uma revisão profunda dos seus parâmetros. As chamadas “construções verdes”, ou “arquitetura sustentável”, envolvem desde o tipo de matéria prima, sem esbanjamento de concreto, até a racionalização do transporte dos materiais, para evitar desperdícios, passando pelo aproveitamento de materiais locais – na Costa Rica usa-se bambu para construções muito sólidas – uso muito mais generalizado de vidro para assegurar mais luz natural, painéis duplos nas esquadrias para estabilizar a temperatura ambiente, sistemas naturais de ventilação para reduzir a necessidade de ar condicionado e assim por diante. Estacas de grande profundidade e com tubos embutidos constituem formas de aproveitar a geotermia, economizando sistemas artificiais de aquecimento. Há um despertar universal, disperso ainda e relativamente lento, mas que progride, para uma visão de que a qualidade do que fazemos pode ser tão ou mais importante do que a quantidade, e de que a construção de edifícios de ostentação, buscando impressionar pela riqueza esbanjada, pode impressionar menos do que edifícios simples mas inteligentes. De certa forma, é uma mudança cultural lenta mas profunda que nos leva a perceber as novas oportunidades das tecnologias, ao mesmo tempo que as tragédias ambientais nos estimulam a acelerar o passo.

 

Gerou-se um modelo surrealista e perdulário de consumo, típico das classes média e alta dos Estados Unidos, e uma visão artificial do sucesso, centrada na capacidade de ostentar

 

As ameaças ambientais nos levam a colocar em questão a obsessão consumista de que somos autores e vítimas. Gerou-se um modelo surrealista e perdulário de consumo, típico das classes média e alta dos Estados Unidos, e uma visão artificial do sucesso, centrada na capacidade de ostentar uma casa com garagem para quatro carros, com ar condicionado em cada aposento, e modelos de carro que têm de mudar a cada ano, e roupas que têm de ser descartadas ainda que sejam boas e bonitas, e seios que têm de ser recheados para parecerem o que já não são, e caríssimas roupas de grife pagas não pela utilidade que apresentam mas pelo status que confere a marca, ainda que sejam todas Made in China ou no Bom Retiro. O cidadão moderno de sucesso joga fora em média um quilo de produtos por dia. Compra uma fruta que viajou mil quilômetros para que possa compor uma bela travessa de uvas fora da estação, e impressionar as visitas.

Somos autores, mas também vítimas. As crianças passam horas diárias frente à televisão, grandes empresas de marketing geram publicidade destinada a criar pequenos, e mais tarde grandes consumidores, mas sempre obcecados. O esforço publicitário custa-nos hoje algo como um trilhão de dólares por ano, distribuído na conta de telefone, da TV a cabo, do acesso à internet, e embutido também no preço de cada produto que pagamos, queiramos ou não, vejamos publicidade ou não. Criou-se a indústria do comportamento econômico, que as pessoas não gostam de reconhecer, pois parece fraqueza de espírito comprar algo por influência da publicidade. O ser humano é influenciável, é uma fragilidade, mas também uma das suas grandes qualidades. O assédio comercial é em grande parte responsável por esta deformação impressionante de pessoas que não sabem mais onde colocar as inutilidades que compram, enquanto um bilhão de pessoas no planeta não tem o suficiente para comer. O social e o ambiental são como a mão e a luva, um se articula com o outro.

As embalagens tornaram-se um espelho interessante do consumismo reinante. Um par de meias comprado num shopping obriga o comprador a desfilar com uma imensa bolsa de plástico ou de papel, transformado o comprador em homem-sanduíche da loja, carregando-lhe o nome. Em Toronto, no Canadá, as lojas são obrigadas a cobrar pelos sacos plásticos, uma quantia modesta, dez centavos de dólar, mas foi suficiente para que houvesse uma drástica diminuição do desperdício, sobretudo porque a vendedora é obrigada a perguntar se a pessoa quer uma sacola, para cobrar. Em média desperdiçamos meio quilo de embalagem por pessoa por dia, na classe média. O desperdício de energia envolvido é muito grande, desde o custo energético das embalagens, até o transporte e destino final dos resíduos sólidos. Numerosas empresas que entregam um fogão, por exemplo, são obrigadas a desempacotar e instalar o produto, reutilizando a embalagem par a entrega seguinte, o que por sua vez leva os fabricantes a desenhar embalagens que possam ser reutilizadas. Há espaço para a vida inteligente.

O fio condutor que guia a problemática energética vista pelo lado do uso é a circularidade dos ciclos produtivos. Em vez do sistema linear tradicional, em que extraímos recursos naturais, os transformamos em produtos, consumimos e descartamos em lixões, gerando esgotamento de recursos naturais de um lado, e contaminação de outro, devemos avançar para o processo circular em que os produtos são desenvolvidos de maneira a que possam ser reciclados ou reutilizados, gerando no fim um balanço ambiental neutro em termos de natureza, e minimizando os impactos ambientais em geral. Muitas empresas hoje já montam computadores de forma a que os diversos componentes possam ser facilmente desmontados e reutilizados em outros produtos. O planejamento produtivo, portanto, não se limita ao ciclo de produzir e vender – e ostentar o dinheiro ganho – mas busca organizar a sustentabilidade de um conjunto de sucessivos ciclos produtivos.

 

Está no horizonte uma cidade silenciosa, não mais o ruído histérico de uma moto acelerada. O petróleo será utilizado para tarefas mais nobres que acionar o motor e o ar condicionado de veículos parados

 

Um eixo importante da mudança da matriz energética resulta das recentes transformações tecnológicas nos meios de transporte, com a generalização de carros, motos e bicicletas elétricas. É importante lembrar que as tecnologias já existiam em grande parte, mas que só recentemente a pressão da sociedade por sistemas energéticos limpos, e o custo crescente do petróleo, levou as empresas a dinamizarem a sua reconversão para os veículos elétricos ou híbridos. O ponto frágil ainda são as baterias, onde as tecnologias avançam mais lentamente. Mas no horizonte está a clara possibilidade das pessoas gerarem eletricidade a partir de células fotovoltaicas nos seus telhados, recarregando as baterias. Está no horizonte uma cidade silenciosa, e não mais o ruído histérico de uma moto acelerada. Com isso, o petróleo passará a ser utilizado para tarefas mais nobres do que acionar o motor e o ar condicionado de veículos parados nas grandes avenidas das metrópoles. Há bom senso no horizonte.

Uma dimensão menos visível da economia do uso de energia nas cidades está ligada à própria forma de organização urbana. A extrema desigualdade de renda passou as se refletir na deformação da organização territorial da cidade. Onde há empresas e empregos, gerou-se uma forte atração pelo espaço de moradia, e os terrenos e aluguéis passaram a ser muito caros. A população trabalhadora foi assim buscar espaços onde poderia pagar a moradia, gerando-se uma profunda divisão espacial entre o local de trabalho e o local de moradia, sobretudo nas áreas metropolitanas, com cidades-dormitório que obrigam as pessoas a realizarem diariamente grandes viagens para trabalhar ou resolver os problemas mais simples como um pagamento na prefeitura, ou até para ir ao cinema no fim de semana. Do lado dos ricos, multiplicaram-se os condomínios distantes, luxo cercado e isolado, gerando também viagens para qualquer detalhe do cotidiano. O resultado são milhões de pessoas que precisam se deslocar constantemente, em grandes distâncias, e sobretudo com grandes perdas de tempo e combustível.

 

Cada ato de compra, cada momento de utilização de um produto, requer pensar em duas dimensões: se é bom para nós, sem dúvida, mas também se é bom para o conjunto da dinâmica social

 

A reorganização urbana que desponta, é o bairro com grande dose de auto-suficiência. As tecnologias modernas permitem perfeitamente que a maior parte dos serviços públicos seja disponibilizada localmente, no “espaço-a-pé” do cidadão, no bairro, sem exigir deslocamentos, e sem prejuízo da coerência do sistema que pode ser articulado online em toda a cidade. Não é dispersão, é gestão em rede. Ultrapassando visões estreitas de “zona residencial” e “zona comercial” separadas, hoje se entende que em cada local deve haver diversos serviços privados ou públicos, facilitando a vida das pessoas. A própria ideia de escolas que exigem grandes viagens de carro diariamente é absurda, o normal é as crianças poderem ir a pé ou de bicicleta. O lazer também precisa ser descentralizado, evitando absurdo de uma pessoa que tira o carro da garagem, fixa a bicicleta no suporte, viaja até um parque, libera a bicicleta, e depois refaz o processo para voltar de carro para casa.

Esta organização racional do território, na visão do bairro auto-suficiente numa série de atividades básicas do nosso cotidiano, tem evidentes repercussões não só na economia da energia como na economia de tempo, no resgate do convívio social, no prazer colaborativo de uma vizinha tomar conta da criança de outra na praça ou no parque, enfim, no resgate de uma vida civilizada, organizada no que tem se chamado de economia do bem-estar, ou do bem-viver.

Um fenômeno que tem se expandido rapidamente é a redução das viagens dos produtos que consumimos. Muitas cidades buscam se dotar do chamado “cinturão verde” de horti-fruti-granjeiros, o que permite que a cidade disponha de produtos frescos, e sobretudo que não viajem por grandes distâncias. Cidades como Imperatriz do Maranhão, para dar um exemplo negativo, compram quase tudo no Sudeste do país, com transporte por caminhão, quando grande parte dos produtos poderiam ser desenvolvidos localmente, gerando emprego e renda. Na Inglaterra hoje já é obrigatório os supermercados exibirem a proveniência dos produtos, os “quilómetros rodados” de certa maneira. Em Belo Horizonte a prefeitura mudou o sistema de aquisição de produtos para a merenda escolar: em vez de comprar dos grandes intermediários, fez convênios com pequenos produtores em volta da cidade. Redução de custos energéticos, melhor alimentação nas escolas, melhor controle de agrotóxicos.

O que vimos neste leque de alternativas no uso da energia, – e há muitos outros – é que não basta produzir energia limpa, é preciso organizar o consumo de maneira inteligente. Muitas coisas pode fazer cada família, como reciclar, utilizar restos para compostagem, reformar a sua casa, substituir o chuveiro elétrico e assim por diante. Mas muitas coisas exigem que haja organização do serviço público: para deixarmos o carro em casa precisamos de transporte coletivo, para a reciclagem fazer sentido precisamos de um sistema de recolha condizente e assim por diante. E tanto as empresas como a mídia, e em particular o sistema de publicidade, precisam se reorientar para promover um consumo equilibrado e consciente, resgatando a sua capacidade informativa em vez de martelar visões artificiais de sucesso consumista. Devem informar sobre os produtos, e não empurrar um modo de vida.

Em outros termos, trata-se de uma mudança cultural. Cada ato de compra, cada momento de utilização de um produto, devem nos levar a pensar em duas dimensões: se é bom para nós, sem dúvida, mas também se é bom para o conjunto da dinâmica social. Jogar o óleo que serviu para fritar batatas na pia pode ser mais simples para mim, mas gera sobrecustos para todos. É bem mais barato despejar o óleo num recipiente, enquanto está concentrado, do que limpar rios depois. Somos todos tripulantes, cada um tem de fazer a sua parte. Como a energia é de certa maneira o sangue que alimenta todas as nossas atividades, não há aqui apenas um responsável: as soluções encontram-se no esforço articulado de todos. Não se trata de sacrifícios: trata-se de bom-senso.

Ladislau Dowbor


Autor: Ladislau Dowbor
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