Muitas vezes, vindo de uma mulher, o ‘não’ sequer é levado em conta como ‘não’. Brincadeiras e piadas conhecidas por todos, reforçam a máxima de que quando uma mulher diz não, na verdade ela quer dizer sim. Cada vez que esta ideia é encorajada e considerada enquanto prática e verdade, Eloá é novamente assassinada. Quantas vezes, numa balada, nós mulheres temos de dizer ‘não’ para o mesmo homem antes de sermos finalmente entendidas e deixadas em paz? Quantas vezes as adolescentes não repetem a afirmação de terem beijado um rapaz ‘só para que ele fosse embora’? Quantas vezes mulheres aceitam transar sem camisinha por não conseguirem dizer ‘não’ e condicionarem o sexo à proteção?”
Passou praticamente despercebido, nesse furor, um crime do pior tipo possível. No município de Queimadas, na Paraíba, o sobrinho do prefeito e alguns amigos planejaram um estupro coletivo como presente de aniversário a um amigo. Uma história de horror com requintes de crueldade. No fim das contas foram seis mulheres estupradas e, entre elas, duas assassinadas por reconhecerem os agressores – mascarados simulando um assalto.
“Confesso que é muito difícil de imaginar uma cena dessas. Na verdade, creio que a mente se fecha para os detalhes macabros, não queremos imaginar as mulheres amordaçadas e amarradas tendo suas roupas arrancadas e sendo penetradas, machucadas, humilhadas e espancadas por vários homens, um atrás do outro, a rir de seu desespero e medo e relinchando de prazer. Pois foi isso o que dez homens fizeram a mulheres que eram suas amigas e vizinhas!” (Isabela e Michele, assassinadas após o estupro, por terem reconhecido seus vizinhos -- os agressores)
“O fato de que a sociedade trata os estupradores como psicopatas, monstros e indivíduos que não pertencem à sociedade é, no mínimo, hipócrita. Os homens que violam e violentam os corpos das mulheres estão apenas reproduzindo os padrões disseminados pela sociedade. Padrões que colocam os nossos corpos como mercadorias, objetos de desejo, sem que nós sejamos protagonistas desse desejo. (…) Então, um homem ganha de aniversário um estupro coletivo e as mesmas pessoas que corroboram com essas relações sociais distorcidas se chocam, acusam, apontam dedos, desejam a morte desses homens. Sem perceber que esses homens trataram aquelas mulheres como elas são retratadas cotidianamente, como objetos. Já passou da hora de refletirmos que a culpa é do estuprador e não da vítima, e que é também dos que perpetuam o imaginário da mulher objeto. Um imaginário doente, violento e que nos agride todos os dias.”
“Vivemos numa sociedade que ensina mulheres e cobra delas que não sejam estupradas, ao invés de dizer aos homens: não estupre! O estupro é um crime de poder e humilhação, de violação máxima do corpo. Sabemos de tudo isso. Porém, é espantoso que dez pessoas decidam promover um estupro coletivo. Todos que sabiam e estiveram presentes participaram de um crime com grandes requintes de crueldade e misoginia.”
“Dois aspectos do caso me chamaram muita atenção: dos homens que não não participaram de forma efetiva, nada fizeram, não as defenderam, não denunciaram. A outra coisa foi que duas mulheres que também estavam na festa foram separadas das outras e não foram tocadas. Essas eram as namoradas dos dois mandantes do crime. Essas duas características aparentemente menores do crime é que revelam o tipo de misoginia perversa que se esconde dentro da sociedade. Os homens que não participaram ativamente do crime, de alguma maneira entenderam que aquilo não era nada demais. É um direito dos homens estuprarem mulheres. E as esposas dos criminosos não foram violadas pois, afinal, já eram propriedade de alguém. As outras não foram poupadas pois afinal, não existia nenhum homem que zelasse pela segurança desse ‘bem’.”
“De vez em quando, especialmente quando acontecem casos de violência e crueldade quase indescritíveis contra a mulher, ressurge a frase: “toda mulher tem uma história de horror pra contar”. Acontece que eu não tenho. (…) Isso quer dizer o quê? Que sou especial? Ou que as outras mulheres inventam e se vitimizam? Não. Não. Não. Isso quer dizer que é possível. Que não são “os homens” que estupram “as mulheres”, que não há uma lei natural que determine que “isso sempre aconteceu e sempre vai acontecer”. Isso quer dizer que não é um fenômeno imutável sobre o qual devemos lamentar em voz baixa e rezar para que não aconteça com ninguém que a gente conhece. Não. Não. Não.”
Para completar a trilogia do horror, uma menina de 12 anos foi estuprada dentro de um ônibus no Rio de Janeiro, com outras passageiras dentro, cobrador e motorista. Sem precisar se esconder, sem precisar de nada além de uma arma. O agressor não fez reféns, não ameaçou ninguém exceto a criança. Entrou e saiu. Assim.
Esses três crimes tem algo em comum: são crimes de gênero contra mulheres. São resultado de uma cultura machista que objetifica a mulher. Somos um corpo, nestes termos, e não seres humanos, pessoas. Na época do sequestro e assassinato de Eloá Pimentel, a sobrevivente Nayara deu declarações comentando que, no cativeiro, Lindemberg a chamava de “Barbie”. Nada mais ilustrativo do que uma boneca pra evidenciar, novamente, esta relação.
Esta semana eu caminhava na rua e passei em frente a uma feira sendo desmontada. Muitos homens e poucas mulheres. A rua não estava vazia mas também não estava cheia. No bairro da Vila Madalena, em São Paulo. Um dos trabalhadores da feira, ao me ver passar, exclamou em (bem) alto e bom som: “Parabéns, hein, princesa, assim sim…”. Ele devia estar a uns três metros de mim, se muito. Eu já me aproximava do meu destino, uma farmácia que fica bem na frente do local onde fui assediada. Não tive dúvidas e, em silêncio, mostrei o dedo do meio pra ele com uma expressão no rosto que provavelmente denotava todo o ódio que qualquer vítima de qualquer tipo de assédio sente. Ele se surpreendeu: “Nossa, que é isso…”, disse. Eu juntei minha raiva e gritei mais alto, para a feira toda escutar: “Não estou aqui pra você ficar olhando, caralho”. Assim, com palavrão e tudo. Entrei na farmácia. Quando saí ninguém ousou nem olhar pra mim.
Sei que nem sempre é o mais sensato a fazer. Naquela circunstância, considerei que era apropriado. O risco de uma ação violenta, sei muito bem, não depende da minha reação, nem da roupa que eu uso e, aparentemente, nem da rua estar vazia ou não. Os crimes de gênero que mencionei no início do texto têm testemunhas, aconteceram na luz do dia e dois tiveram homens conhecidos como agressores. Não há nada que me convença de que eu posso provocar ou deixar de provocar um acontecimento destes. Nem vocês.
“’Não é de se espantar’, diz Cook, ‘que nós mulheres culpemos umas às outras, considerando que fomos criadas para nos culparem enquanto mulheres’. Agnew-Davies concorda e acrescenta que este foco obsessivo na vítima resulta na invisibilidade do agressor. ‘Para as mulheres é muito mais frequente sobrevivermos com a idéia de que podemos prevenir um estupro mudando nosso comportamento do que vivermos com a imprevisibilidade e admitirmos pra nós mesmas que o agressor será muito mais provavelmente alguém que aconhecemos e amamos do que um estranho’.” (de Julie Bindel, no The Guardian, leia aqui a tradução).
O assédio na rua, conhecido de todas as mulheres brasileiras (ou quase todas), não chega perto do sofrimento dos estupros e assassinatos que tomaram a mídia. Mas tem em comum com eles, no pano de fundo, a ideia corrente de que nós mulheres somos apenas corpos sem desejo próprio e, pior, disponíveis.
PS: poucos dias depois de ter escrito este texto, uma mulher foi assassinada por reagir a uma cantada na rua durante o carnaval no Rio. Tremo de indignação, como diria Che, num mundo como este.