O problema não é a complexidade, mas a democracia. O que os políticos mais temem nesses momentos é que os substituamos que roubemos deles esse poder delegado que mantêm, por um mecanismo controlado de eleições entre opções enquadradas nos limites do sistema, e legitimadas pela mídia. Um referendo, mesmo que não seja uma forma perfeita de decisão popular, abre um leque de possibilidades. Mas persistem uma arrogância elitista e uma repulsa à vontade popular, por mais que seja dissimuladas. Porque ainda que cidadãos se equivocassem, teriam direito a este erro. Já passou o tempo dos que nos salvavam porque não sabíamos o que fazer.
Na realidade, não se trata de salvar o povo, mas de salvar o euro, como se fossem a mesma coisa. Por que tanto interesse? E de quem? Porque dez dos 27 membros da União Européia vivem sem o euro e algumas de suas economias (Reino Unido, Suécia, Polônia) são muito mais sólidas que a média da União Européia? Defender o euro até o último grego é a primeira linha de defesa para uma moeda que está condenada porque expressa economias divergentes e que não têm um estado que a respalde.
Com Portugal e Irlanda na UTI, a Espanha na corda bamba, e uma Itália em permanente crise política e endividada até o pescoço de seu ex-líder, a defesa franco-germânica do euro tem outras explicações. São muito diferentes da história de terror que nos contam, sobre a catástrofe financeira que implicaria, com efeitos devastadores em nosso cotidiano – como se a vida dependesse da bolsa de valores.
A primeira razão é obvia: salvar os bancos, principalmente os alemães e franceses, que emprestaram sem garantias para a Grécia e aos demais PIGS (Portugal, Itália, Grécia e Espanha) mediante a manipulação de contas praticada, pelo menos no caso da Grécia, pela consultoria da Goldman Sachs (certamente, deve ser simples coincidência que Draghi, o novo presidente do Banco Central Europeu também foi empregado da Goldman Sachs).
De início, já aceitam que precisarão esquecer 50% da dívida da Grécia, ainda que não esteja claro quem acabará pagando. Mas os outros 50% têm que ser tirados do sangue, suor e lágrimas dos gregos, para que o não pagamento não acabe impune. Se a Grécia repudiasse a dívida – como fez a Islândia, que hoje vai tão bem, um dracma desvalorizado em 60% faria com que fosse impagável o resto da dívida. Mais ainda, o efeito do contágio em mercados financeiros levaria ao não-pagamento de grande parte da dívida soberana, levando à quebra dos bancos que se aproveitaram do euro para emprestar sem garantias.
Ou seja, trata-se de salvar alguns bancos concretos e, em termos mais amplos, evitar uma nova crise do sistema financeiro. Quebram os países para que os bancos não quebrem. Mas por que se faz isso? No fim, os Merkozy [referência a Ângela Merkel e Nicolas Sarkozy] não são funcionários dos bancos. Têm seus interesses políticos, nacionais e pessoais. A Alemanha necessita realmente que o euro seja a moeda européia e que seus sócios não possam desvalorizá-la. Porque o modelo de crescimento alemão é, na realidade, o mesmo que o chinês: crescer por meio de exportações favorecidas por uma moeda subvalorizada; e reduzir salários (houve redução de 2% em termos reais, nos últimos cinco anos). Se houvesse um euro-marco forte, a Alemanha perderia mercados na Europa perderia competitividade em relação a exportações espanholas ou italianas.
Mas há outra dimensão político-pessoal. Tanto Merkel quanto Sarkozy precisam estabelecer sua liderança européia por razões de política interna e por projeto de grandeza nacional que é preciso disfarçar, para não despertar velhos fantasmas. E as outras elites políticas européias? O sentimento de serem europeus, em um mundo em mudanças desde a América do Norte até a Ásia, dá-lhes a impressão de ser algo mais que produtos aldeãos do aparato de partido que tanto desprezam.
E nós em tudo isso? Certamente, a bagunça financeira que o advento do euro-peseta ocasionará (não há erro no tempo do verbo) causará problemas de transição na economia e em nossos bolsos – a depender de como se realize a transição. Mas a soberania de política econômica seria recuperada, a realidade monetária e financeira se ajustaria à economia real, a competitividade aumentaria com a conquista de mercados externos e internos, haveria uma explosão de turismo, que seria uma pechincha. Seria possível reativar a economia emitindo moeda. Aumentaria, portanto, o emprego. Porque o essencial é crescer, não flagelar-se. Claro: haveria inflação. Mas é a melhor receita para reduzir a dívida, incluindo a das hipotecas.
E o sonho europeu? Ele pode ser construído com as pessoas, amando-nos uns aos outros, em vez de ver quem para a conta. Quando pensar em euro, pense fraude. Quando pensar em Europa, pense amigos.