Religião, milagre e democracia
O primeiro choque é portanto estético. A diretora Jessica Hausner possui uma maneira muito particular de filmar, com seus planos sempre fixos, alguns zooms e tilts anacrônicos, artificiais, e uma fotografia tão dura e pontual que lembra os filmes do finlandês Aki Kaurismaki. Isto sem falar na preferência por evitar de vez em quando o som direto, deixando a uma boa metade dos personagens a tarefa de dublarem a si mesmos posteriormente, provocando uma estranheza que imerge o espectador num distanciamento crítico, fundamental à continuação do filme. Afinal, este está longe de ser um filme melodramático, usando a tal “graça divina” para cenas de beleza e de emoção. A religião e a fé nunca foram tratadas de maneira tão rigorosamente cerebral.
Chegamos a Christine, e à apresentação insistente do milagre esperado. Ela está em Lourdes, zona de peregrinação famosa na França, onde teriam ocorrido curas improváveis no passado. Todos os visitantes do local têm uma relação de amor e ódio com este Deus nada democrático: Por que outras pessoas foram curadas, e não eu? Quais são os critérios divinos? Com muita retórica e com as contradições lógicas indispensáveis a um discurso religioso, um padre encarrega-se de explicar que “as razões de Deus são misteriosas”, que a doença “não é uma punição, afinal, muitas pessoas se descobrem ainda mais felizes durante a enfermidade”. Ou seja, uma verdadeira afronta aos doentes que são obrigados a interpretarem seus calvários como um sinal da bênção divina. Tanto a ausência quanto a presença de milagre são interpretados pelos religiosos como prova da existência e do amor divinos: quando Deus cura os doentes, é porque os ama e está presente, quando não os cura, é porque os ama e quer que aprendam a valorizar a alma.
Curiosamente, a protagonista não é particularmente religiosa, carismática, bondosa. Ela não se destaca dentro os outros peregrinos, e entretanto é ela que, subitamente, levanta de sua cama, anda até o banheiro e escova seus cabelos. O milagre é mostrado como uma banalidade, sem música, sem iluminação particular, dividido apenas com o espectador. A direção prefere deixar as sonoridades de uma Ave Maria piedosa às cenas da esperança alheia, do espetáculo midiático e comercial em torno desta busca da graça. O milagre em si é mostrado como uma proeza puramente biológica e física, algo que já constitui uma afronta à ideia de transformação coroada por luz, amor e por uma presença divina – que aliás nunca aparece à agraciada.
O mais interessante em Lourdes é retirar a sacralização da discussão sobre a fé. As ajudantes dos enfermos são moças paqueradoras e sem vocação religiosa, as freiras são mulheres frustradas, as mães dos doentes são pessoas que invejam profundamente todos os outros ao redor, e odeiam qualquer melhora no quadro clínico alheio. A cena final, simples e excelente, reúne numa mesma festa todos os medos, olhares de desprezo, todas as pessoas que encaram Christine como um animal de circo desde do milagre. Trata-se de um momento duro, de hipocrisias, na qual ela ganha o “troféu de melhor peregrina”. E tantas expectativas, tantos olharem semeiam o medo dela: “E se a paralisia voltar?”.
Lourdes é um tratado de um pessimismo atroz, de uma intelectualidade rara à questão da fé e da religião, sem jamais insultar ou parodiar os religiosos. É um projeto voluntariamente estranho, frio, distante, em torno do tema central, bem resumido nos pôsteres: “Nada questiona mais a fé do que um milagre.” Nada provoca mais a ira, a raiva, a incompreensão e a indignação do que a seletiva e silenciosa graça divina.
Filme franco-austríaco dirigido por Jessica Hausner.
Com Sylvie Testud, Léa Seydoux, Bruno Todeschini, Elina Löwensohn.