No par de semanas em que estive na China, visitei Beijing, Chengdu (1600 km para o interior), e Shanghai, realizando conferências em cerca de 10 instituições universitárias, organizações da sociedade civil, e até na escola de formação de quadros do Partido Comunista. Todos interessados em sistemas de gestão descentralizada e inovações institucionais da América Latina. E eu interessado, como é natural, em como funciona a própria China.
Todos sabemos que a dinâmica é poderosa, que se trata da segunda economia do mundo, e no entanto não sabemos como e porque funciona. Segundo as nossas opções ideológicas, achamos que é um exemplo, ou que é um desastre ambiental, ou ainda um desastre social. Outros ainda declaram que é uma ditadura e fazem de conta que é tão simples assim. As simplificações, como sempre, sobrevivem porque simplesmente sabemos muito pouco. Na realidade vi muita coisa interessante em todas as dimensões. E cabe não esquecer que a China tirou 430 milhões de pessoas da miséria entre 1981 e 2000 (ONU, The Inequality Predicament, p. 78), cifra que ultrapassa 500 milhões segundo Lester Brown (Brown, 2011).
Arrisco apenas uma ideia geral, que discuti em vários meios e consultei em vários documentos, e que parece razoavelmente segura: o sistema é politicamente centralizado, no sentido de traçar as orientações gerais. No entanto, a execução, e de forma geral a gestão da economia, do meio ambiente e das políticas sociais estão radicalmente descentralizadas, permitindo uma enorme flexibilidade e pragmatismo nas soluções. E não se trata apenas de descentralizar os encargos, pois os próprios recursos são descentralizados, através de caótico, mas funcional sistema de orçamento central articulado com recursos para-orçamentários locais. (Catherine Wong).
No mais, através de fotos tiradas nesta viagem em junho 2011, trago algumas impressões do cotidiano: antes de tudo, com a imensa pressão populacional e pouca terra fértil, as grandes cidades optaram claramente pela verticalização. Nada dos subúrbios típicos das grandes cidades norte-americanas. A China urbana cresce para cima.
As universidades não escapam a esta lógica, como se vê na foto seguinte. As duas imensas torres geminadas são uma faculdade de administração em Beijing.
Abaixo, típica avenida de Shanghai, bairro residencial novo. O pouco trânsito deve-se a que os meus passeios em horário livre eram muito cedo. Mas a estrutura intermodal de trânsito é típica: duas ou três faixas para automóveis, separação com plantas definindo claramente o espaço onde andam bicicletas e pequenas scooters, todos elétricos, e uma calçada arborizada bastante ampla. O planejamento permite que o espaço não seja (inteiramente) comido por interesses imobiliários, equilibrando o uso do espaço viário, no que hoje se chama de “ruas completas”, e não apenas para carros.
A mobilidade, naturalmente, e um problema central, com cidades ultrapassando 20 milhões de habitantes. Na foto abaixo, de Shanghai, vemos a integração do sistema. À esquerda na foto, a boca de metrô, são 420 quilómetros na cidade, fora as conexões ferroviárias para o interior. A densidade de metrô muda evidentemente todos os parâmetros, pois a grande massa de deslocamentos no triângulo casa-trabalho-escola no mesmo horário todo dia é enxugada, liberando a superfície. É bom lembrar que em São Paulo temos 65 quilômetros, e uma média ridícula de 650 metros por ano nos últimos 16 anos de governo xuxu. Vemos também a faixa exclusiva para bicicletas e motinhos (quase sempre elétricas),faixas para carros,amplo espaço de calçada, e sempre que possível todas as separações com plantas e árvores. A sinalização é clara e precisa.
Uma opção importante que apareceu de forma massiva nas três cidades que visitei, Beijing, Chengdu e Shanghai, é a presença generalizada da bicicleta e da scooter (bem parecido com as nossas “Biz”) elétricas: silenciosas e sem poluição, com uma autonomia entre 50 e 60 quilômetros. No caso das bicicletas, as pessoas ajudam com pedal em caso de subida forte ou rampa. Não exigem complicações de registro de veículos nem capacete.
Os preços são ridículos (entre 800 e 1500 yuan, cerca de 250 a 350 reais). O preço não se deve apenas a baixos salários: é um motor elétrico e uma bateria, o resto é lataria e borracha. Não precisa de tanque de combustível, sistema de distribuição, carburador, pistões, embreagem etc. A não entrada desta tecnologia simples no Brasil para mim é um mistério que só a teoria dos cartéis resolve. A manutenção é igualmente ridícula. A recarga se dá em geral à noite, quando há um superávit de energia. Adeus petróleo: mas se a energia é limpa no uso, na produção ainda é muito carvão. O Brasil teria muitas vantagens neste plano.
A China sofreu recentemente violentas inundações, resultado em parte de fenômenos naturais mais violentos gerados pelo aquecimento global, mas sobretudo pelo desmatamento irresponsável. Em decisão típica da China, de definir rumos a partir do governo central e deixando cada cidade do país aplicar as normas segundo as suas realidades, foram plantadas árvores aos bilhões (ver em particular dados em Lester Brown, World on the Edge). Por toda parte se vêm estas árvores reforçadas por estacas, indicando plantio recente. Encontrei este esforço por onde passei. As cidades estão se tornando verdes.
Ampla calçada com árvores (sempre sustentadas, demonstrando plantio recente), que segue o rio da cidade em Chengdu, que fica à direita da foto, bem diferente por exemplo da beira do Tietê em São Paulo. As próprias calçadas são quando possível em parte feitas com bloquetos furados, o que permite manter a permeabilidade do solo.
A limpeza das cidades é absolutamente impressionante, não se encontra sequer bitucas nas calçadas. Já tinha notado isto em visita anterior anos atrás, até em feira de rua no interior não havia um pedaço de lixo no chão. As lixeiras que sem complicações separam apenas o reciclável e não reciclável, se encontram em grande quantidade, e o que é mais importante, estão limpas e renovadas, o que significa um sistema permanente de manutenção. Claramente, não se trata aqui apenas de infraestrutura e de serviços, mas também de uma cultura da limpeza.
Nos bairros mais tradicionais, uma densa movimentação de mercadinhos, feiras, pequeno comércio de rua, ainda pouco destruído por shoppings. O chinês vive muito na rua nestes bairros. Nos mercadinhos, inúmeros tipos de macarrão, muitíssima verdura, e colado pequenos negócios que vendem scooters elétricas, literalmente a preço de feira.
A riqueza de verduras é impressionante. Extremamente saborosas, e aparecem em grande quantidade em todas as refeições. Aliás, pouquíssima gente gorda, que dirá obesa. A agricultura urbana é muito presente, não se desperdiça um metro que possa ser plantado. Na foto abaixo, parece que estamos no campo, com edifícios presentes por engano, mas a foto foi tirada de uma avenida movimentada.
Na mesma rua, em Shanghai, um típico quiosque de jornais: inúmeros diários, nenhuma publicação do tipo que curiosamente chamamos de “masculina” no Brasil.
No interior da região de Chengdu, uma paisagem bastante típica de cinturões verdes de metrópoles: cultivos extremamente densos, próximos da jardinagem, asseguram uma produtividade muito elevada, típica de pequena propriedade (na realidade direito de uso, na China). A variedade grande de plantios reduz problemas de doenças e melhora a conservação do solo. As fotos mostram policultura de legumes e plantação de uva. Na foto com carro, vemos que aproveitam a terra até a um palmo da estrada. Aqui a idéia de que agricultura moderna e produtiva só seria em grande escala, tão difundida no Brasil pelos ruralistas, simplesmente não faz sentido. Não se esbanja terra. Aliás, os que defendem a liberação de desmatamento em “pequenas propriedades” no Brasil, estão se referindo a quatro módulos, 400 hectares nas regiões mais ameaçadas, dois por dois quilômetros! Só no Brasil para chamar isto de pequena propriedade….Mas voltemos à China.
A foto abaixo apresenta o centro de Shanghai, mistura de prédios ultramodernos com calçadas tranquilas. A linha horizontal no meio da foto é uma calçada elevada que dá a volta em toda a praça, permitindo caminhadas sem stress, e uma bela vista. É muito frequentada.
A beira do rio de Shanghai é aberta, permitindo passeio, apesar do dia de chuva em que visitamos. Na foto seguinte, vemos o lado tradicional da cidade, com arquitetura ainda dos ingleses.
E em seguida o centro moderno do outro lado do rio, com a sua imensa torre de TV. Este horizonte é o cartão de visita da cidade.
Espaços de lazer urbano existem, de forma desigual. Amplas áreas claramente de arborização recente (sempre os suportes para árvores transplantadas). Em torno de monumentos tradicionais, muito água, peixes. Na foto abaixo vemos um parque, o córrego que corre para o rio (no centro da foto, a área verde-claro) não aparece, pois é densamente coberto pelas plantas que filtram a água e a deixam limpa antes que caia no rio pouco adiante. Nas partes abertas, o cuidado com as flores.
A foto a seguir veio totalmente por engano, momento de distração, mas estou incluindo por razões estéticas, e sobretudo porque me encheram de avisos dizendo que na China é tudo plano, por assim dizer. Maldade desta gente.
Moral da história? Com este pequeno relato fotográfico, à margem de uma correria de palestras, pretendi apenas dar imagens, e sobretudo evitar as simplificações ideológicas com as quais frequentemente nos contentamos sobre a China. Aliás, esta em geral não dá muita bola para os nossos julgamentos, pois é imensa e busca os seus equilíbrios internos. No conjunto das discussões, vi muito pragmatismo. E muita preocupação com o ritmo de penetração de um modo de vida ocidental pouco sustentável para o país. Sobre este ponto, aliás, há uma excelente leitura recente, de Chandran Nair, Consumptionomics: Asia’s role in reshaping capitalism and saving the planet. O importante hoje, mais do que julgar a China, é entendê-la.
Impressão geral? Convivem em complexa articulação o ultramoderno em vertiginosa expansão, os bairros tradicionais de classe média intocados mas com intervenção de serviços urbanos, os antigos bairros paupérrimos que estão sendo simplesmente desmantelados e substituídos por prédios, e o imenso interior cada vez mais articulado pelas cidades regionais. Vários séculos se reordenam na dinâmica da modernização. E todo mundo estuda.