Quando a pressão é demais

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Desejam tudo para os filhos, por isso querem que estes sejam os melhores. Há pais que exigem em vez de pedir, que pressionam chamando-lhe ajudar. E há crianças que não aguentam. No dia em que marcou dois gols no mesmo jogo, Miguel saiu do balneário eufórico e foi encontrar com o pai que o esperava na arquibancada. "Viu? O goleiro nem teve chances..." Lembra-se de o pai ter encolhido os ombros, sem mostrar grande entusiasmo. "E os três gols que você perdeu?"

Quando a pressão é demais


Há pais assim, para quem não chega ser bom, é preciso ser o melhor, para quem o segundo lugar é apenas chegar depois do primeiro. Ou, simplesmente, para quem é muito difícil fazer um elogio, não vá o filho pensar ter já alcançado o suficiente. A pressão familiar tem muitas formas e nem todas são evidentes. "Há pequenos comentários, que ditos de forma persistente e, sobretudo, quando estão em causa crianças com o ego mais frágil, são formas terríveis de pressionar... sejam eles sobre a escola ou sobre a maneira de vestir", revela Marta Gautier, psicóloga clínica especializada em competências parentais. O que não deixa margem para dúvidas são os efeitos dessa pressão, não raras vezes a principal origem de estresse e ansiedade juvenis.

Estranha forma de amar- Os pais querem o melhor para os filhos e a preocupação com o seu futuro justifica quase tudo. Dizem que é preciso torná-los fortes, para lutar, preparados para resistir e dar-lhes um curso superior, para triunfarem na vida. Hoje já adulto e ele próprio com filhos pequenos, Miguel vê na atitude do pai em relação ao seu desempenho esportivo também um sinal dos tempos: "Para uma determinada geração os rapazes tinham de ser educados como futuros chefes de família e, para se fazerem 'homens', havia que os endurecer. A pressão foi sempre menor em relação à minha irmã, por exemplo."

Atualmente, "numa sociedade que valoriza o desenvolvimento educacional e profissional em detrimento do desenvolvimento emocional", conforme considera a psicóloga Maria João Santos, "quase tudo passou a estar focado na escola". "Têm boas notas? Então está tudo bem, pensam os progenitores, esquecendo todas as outras dimensões daquela criança." Não que a autora do livro "Os Pais Têm Sempre Razão" defenda a existência de uma fórmula certa para educar. Nesta tarefa de criar um filho, regras absolutas não há, garante, e recomendável mesmo "é que cada família encontre o seu modelo, adequando-o à criança que tem em casa e precisa conhecer".

Ao contrário da teoria, na prática não é fácil distinguir entre um pai preocupado e responsável e um pai demasiado exigente. Nem todos têm a frontalidade de Amy Chua, a chinesa residente nos EUA que recentemente fez arrepiar muitos pedagogos e encarregados de educação quando decidiu revelar, em livro ("Battle Hymn of the Tiger Mom"), a forma como educara as duas filhas, seguindo o modelo tradicional do seu país. Professora de Direito na Universidade de Yale, Amy (considerada pela "Time" uma das 100 personalidades mais influentes de 2011) confessou que chegou a rejeitar um cartão de aniversário feito pela filha de sete anos, argumentando que merecia melhor. Com pulso firme e disciplina sem contemplações, assim cresceram as irmãs, habituadas a ter de apresentar notas excelentes e a serem obrigadas a tocar piano e violino sem pausas sequer para comer ou ir à casa de banho, sem ordem nunca para poderem dormir em casa de amigos ou receberem colegas para brincar. É preciso dizer que Sophia, a filha mais velha desta autêntica "mãe tigre", como Amy Chua ficou conhecida, chegou recentemente à mais prestigiada das Universidades, Harvard, mas cada um julgará por si.

Para João Silvestre este modelo oriental parece "claramente exagerado", embora reconheça na disciplina uma das suas principais filosofias educativas. Pai de dois rapazes - com 11 e 14 anos - admite que é exigente. "Acho que devo sê-lo. Se me trazem um 'Satisfaz Bem', se calhar fico mais preocupado em perceber porque não tiveram uma nota ainda melhor. O importante é chamar-lhes a atenção para o que podem melhorar". Como muitos outros pais e mães em relação aos seus filhos, João sente ter "a obrigação de não os enganar". "Todos vemos que hoje nem para quem é bom há lugar... Eu não lhes digo que têm de ser os melhores, mas o meu papel é zelar para que estejam pelo menos nesse grupo se querem ter mais hipóteses de escolha e maior chance de serem bem sucedidos."

Fernando Glória, professor de educação musical desde 1991, habituou-se a reconhecer em alguns encarregados de educação outra dificuldade - a de aceitarem as limitações dos filhos. Embora ao longo dos anos reconheça ter de lidar mais frequentemente com as consequências da desresponsabilização dos pais e sinta a cada vez maior ausência de regras nas crianças - "muitos ouvem a palavra 'não' pela primeira vez quando chegam à escola" -, identifica facilmente os casos dos alunos pressionados em casa. "Têm um comportamento mais instável e na hora de receberem as avaliações dos testes ficam muito nervosos", partilha o professor. "As notas causam-lhes muita ansiedade. Têm medo da reação dos pais", que, por sua vez, muitas vezes não resistem a ir à escola questionar por que razão os filhos não tiveram melhores notas ou só conseguiram percentagens mais baixas que alguns colegas. "Não digo que seja a maioria dos casos", remata Fernando Glória, "mas acontece, e é pena que eles se preocupem mais com as avaliações do que com o processo de aprendizagem".

Meninos modelo- Para a psicóloga Marta Gautier, "é comum os pais terem dificuldade em aceitar que os filhos não são perfeitos". No fundo, as crianças são o retorno de que se socorrem para "acreditar que estão a fazer tudo bem". A especialista, que escreveu o livro "Não há famílias perfeitas", vai mais longe: "Nesta relação de espelho que acaba por ser esta dos pais com os filhos, é como se o pai ou a mãe resolvessem problemas seus, da sua infância, através deles.

É pelo fato de "verem os filhos como prolongamento de si próprios e não como seres individuais", como diz também Marta Gautier, que projetam neles as suas próprias ambições. Outro palco onde o excesso de expectativas sobre as crianças se manifesta é no mundo esportivo. Muitos pais querem campeões com o seu apelido e sonham com medalhas ou botas de ouro que façam subir as bandeiras na proporção do seu orgulho. Centrados nos resultados, quase se esquecem de valorizar o desporto pelas vantagens da sua prática.

O pesquisador Rui Gomes, autor de alguns trabalhos no âmbito da relação entre pais e filhos no esporte, reconhece que "a pressão parental e o receio por parte dos atletas acerca das avaliações negativas, tanto de pais como treinadores" pode acabar por conduzir ao abandono da prática esportiva. "À medida que o investimento familiar aumenta", escreveu num dos seus trabalhos o professor universitário, "o jovem sente-se mais saturado e esgotado e vê-se 'prisioneiro' no papel de atleta", até, eventualmente, acabar por desistir.

É uma relação de forças que começa ainda antes. Ao tentar perceber como os pais e os jovens identificam o seu papel nesta engrenagem, Rui Gomes concluiu que é comum os filhos fazerem esportes, não tanto por vontade própria, mas por pressão dos pais, que os estimulam por ser saudável, necessário, etc. A questão centra-se depois na forma como a coisa passa a ser vivida. É a maneira como os pais reagem à prestação esportiva dos filhos que condiciona o seu impacto neles, diz o docente, e por sua vez "essa reação varia em virtude da visibilidade social da própria modalidade", sendo certo que pais "demasiado focados nos resultados geram um impacto negativo muito maior".

Não é um universo fácil de desmontar, adianta Rui Gomes, até pela "dificuldade de os pais olharem para o seu comportamento como estando a exercer pressão ou a prejudicar os filhos". Nem é linear que as crianças interpretem certas manifestações como tal, diz o professor universitário, embora recorde casos bem sintomáticos de pressão parental: "Recordo o caso de uma atleta que, já desmotivada em relação à modalidade e com vontade de abandonar, me dizia que não podia desistir porque era a sua vida desportiva que unia a família e, sem isso, os pais divorciar-se-iam. Outro exemplo aconteceu-me ao ver certo jogo, onde um garoto com 12 ou 13 anos esteve extraordinário à baliza. Durante a partida reparei num indivíduo que se manteve muito irritado. Xingava o árbitro e reclamava a torto e a direito. Percebi no final que era o pai do tal rapaz. Achei incrível como é que aquele homem conseguiu olhar para o jogo assim, sem ter ficado contente pelo filho e sem se ter divertido, simplesmente."


Autor: Mafalda G.
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