Até agora, a abertura mais contundente e visível foi a revitalização do trabalho por conta própria. Ampliaram-se as atividades em que ele pode ser exercido (um processo nada espetacular, porque abrangem ofícios específicos e negócios muito pequenos, não profissões). Um número notável de novas licenças para exercer as distintas possibilidades de trabalho privado foi concedido, ainda que, de início, tenha-se estabelecido um forte sistema de impostos – que lança dúvidas sobre a capacidade dos aspirantes para cumprir os compromissos fiscais.
A alternativa de trabalho independente, proibida e estigmatizada por muitos anos, cumpre diversos papéis – entre eles, absorver uma parte dos empregados estatais e governamentais que se tornarão “disponíveis”, segundo a retórica cubana. Calcula-se que o número de demissões chegará a mais de um milhão, quando o processo tiver terminado – embora, por enquanto, o processo tenha sido desacelerado, diante da evidência de que a sociedade e a economia não têm suficientes opções para tantas pessoas.
Ao mesmo tempo, o trabalho por conta própria é uma tentativa de dar impulso – leve, porém necessário – à descentralização das estruturas econômicas de um modelo em que, até hoje, a presença do Estado foi como o da essência divida: brilhou em toda parte, mesmo que nem sempre visível ou tangível. No mercado de trabalho, e claro, a presença estatal e governamental era absoluta e hegemônica. Sofreu deserções, é certo, a partir da crise de 1990. Os salários oficiais tornaram-se insuficientes para os gastos do empregado médio. Muitas pessoas em idade de trabalho preferiram passar à atividade do “invento” – termo cubano que engloba as mais dissimuladas estratégias de sobrevivência.
Entre os “novos negócios” a que acorreram os cubanos sob condições legais recentemente aprovadas, dois setores exerceram grande atração: a gastronomia e a venda de produtos agrícolas em todos os pontos da cidade. A avalanche de cafeterias, pequenos restaurantes e vendedores de rua ou ambulantes (que necessitam de investimento inicial mínimo ou nulo) introduziram um ambiente de criatividade e mobilidade. Ele vai dando ao entorno urbano uma imagem de feira de milagres, em que cada um vende o que pode e como pode. Centenas de cafeterias (é de se perguntar: haverá clientes para tantas, num país em que a maioria dos salários apenas garante a subsistência?) brotam em cada esquina; em pórticos; em locais rústicos. Surgem quase sempre sem a menor sofisticação, e com uma característica: os alimentos são consumidos em pé, nas calçadas, transmitindo uma imagem de improvisação e pobreza que é às vezes dolorosa.
Enquanto isso, os vendedores de hortaliças e alguns outros produtos agrícolas optaram por postos ainda mais frágeis e pior montados, ou mesmo por vender nas calçadas, nas próprias caixas de madeira em que os produtos foram transportados e armazenados. Sem requintes de sofisticação, com a convicção de que a procura supera em muito a oferta e sem intenção de atrair pela qualidade, apresentação ou preço, estes pontos de venda, mais que uma imagem de pobreza e improviso, trazem à cidade ares rurais e nostálgicos, de que Havana havia se afastado há muitas décadas.
Além destes dois ramos, surgiu à luz, oficialmente aceito, o negócio de venda de CDs ou DVDs gravados com música, filmes e seriados de TV, pirateados das formas mais diversas e imaginativas. A cópia – ação original que alimenta o negócio – é ilegal. Mas o comércio do material copiado é um ofício permitido e fiscalizado. Balcões rústicos, colocados em pórticos e calçadas, oferecem ao comprador as últimas produções do cinema norte-americano e as mais recentes gravações das estrelas do espetáculo – que inclusive atraem turistas estrangeiros de passagem pela cidade.
A busca de soluções individuais, por meio da montagem destes pequenos negócios, sem que haja muitos regulamentos arquitetônicos ou urbanísticos que os controlem, vai dando à capital cubana uma imagem de feira sem limites, de cidade em que o rural se mescla com o urbano, a novidade com a improvisação. Enfim, Havana muda porque tinha de mudar… e um dos preços que paga é o de sua deteriorada beleza.
Leonardo Padura é escritor e jornalista cubano e professor de Literatura Latino-americana, na Universidade de Havana. Seus romances foram traduzidos para mais de quinze idiomas. Sua obra mais recente, O homem que amava os cães tem como personagens centrais Leon Trotsky e seu assassino, Ramón Mercader. Agraciado pelo governo espanhol com dupla nacionalidade, prefere continuar vivendo em Havana.