“Enfeitar a cidade, transformar o urbano com uma arte viva,
popular, da qual as pessoas participem, é a minha intenção.”
Alex Vallauri
Cristo foi crucificado, Maria Antonieta perdeu a cabeça, o muro de Berlim foi derrubado, a Hebe quase morreu e o Corinthians foi para a Libertadores, e o graffiti continua sendo intervenção, arte e denúncia urbana.
Generalizou-se pelo mundo a partir de maio de 1968, quando, no contexto de revolução política e cultural, os muros de Paris foram tomados por inscrições de caráter poético-político. Tornou-se popular e adquiriu forma nas ruas de Nova York. No Brasil, mais fortemente em São Paulo, surgiu na década de 1970. Primeiro através das pichações poéticas e depois com a stencil art (com reprodução seriada). Já nos anos 90, o graffiti ampliou sua presença para as periferias no rastro do movimento hip-hop.
Hoje, está incorporado de tal forma na vida urbana que já faz parte da identidade das cidades. Em São Paulo, todo dia 27 de março, saúda-se o dia do graffiti (não oficializado nacionalmente). A data é celebrada desde 1988, em homenagem a Alex Vallauri, um dos pioneiros da arte de rua no país. O grafiteiro, pintor, artista gráfico, desenhista, cenógrafo e gravador nasceu na Etiópia, mas adotou o Brasil. Criou personagens célebres reproduzidos em stencil por toda a Paulicéia. Quem não se lembra da enigmática botinha preta de couro?
De tanto percorrer a cidade, a botinha perdeu seu solado, foi engolida por uma bocona vermelha que dizia ah! beija-me, passeou com o Cão Fila, visitou o TAKI 183 e acabou indo para a mesa com a Rainha do Frango Assado.
As histórias dos graffitis se entrelaçam, se recriam. Numa paleta de cores, assumem novas formas e matizes. Os muros são o suporte, a morada de todos esses grafismos, ícones, histórias e memórias de uma metrópole. O graffiti é assim. Nasce da necessidade de passar uma mensagem. Caminha em cores por ruas cinzas. Provoca o olhar para a cidade. Em cada símbolo, torna os muros sociais visíveis. É poético. É ácido. É metáfora. É antítese.
Embora autoral, o graffiti é arte intrinsecamente democrática. O desenho fica exposto a toda população sem distinção ou restrição – basta olhar a cidade. A efemeridade lhe insere um sentido de desprendimento. A noção de posse da obra é eliminada. “O graffiti mantém um diálogo muito rico entre os transeuntes e o poder público. Levanta questões sobre de quem é a cidade. Resgata o verdadeiro conceito de público”, explica a grafiteira Ziza de São Paulo.
É sempre muito curioso como as pessoas se relacionam com as imagens. O graffiti ocupa o espaço e interage o tempo inteiro. Desde pautar olhares transgressores e reflexivos até situações engraçadas. Quem nunca, por exemplo, ao indicar um caminho, disse “olha só! pega a primeira esquerda e vira na quarta à direita, na rua onde tem um graffiti bem colorido na esquina”. Ou ficou surpreso ao se deparar com a frase o amor é importante, porra! Ou ainda viu estremecer os pilares da sociedade racista ao ver o graffiti do recorrente saci, com as mãos para o alto, ao lado da inscrição quem ter orgulho de ser negro levanta a mão! E ficou chocado ao ver que, na realidade, um policial apontava uma arma em direção a esse mesmo saci.
“Toda a cultura hip-hop, incluindo o graffiti, é ato resistente numa cidade que sonega direito, sonega a voz. Ela ocupa, traz visibilidade, dá voz. Além disso, o graffiti tem um papel de revitalização – dá vida ao que não tem cor”, diz Paulo Carrano, professor da Faculdade Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador do Observatório Jovem do Rio de Janeiro.
Nesse sentido, o graffiti humaniza e transforma o espaço urbano. Embeleza, ao mesmo tempo em que defronta a cidade e suas contradições, obrigando-a a contemplar sua própria miséria. Projeta imagens dialéticas. Reflete outro lado da organização social da metrópole. Em cada mensagem, a denúncia pelo direito à cidade – o direito fundamental à dignidade dentro desse mosaico social.
O grafiteiro e artista plástico Zezão, por exemplo, procura sempre locações vazias, abandonadas, com backgrounds deteriorados. É conhecido mundialmente por seus graffitis azuis nas galerias subterrâneas. Ele dá cor aos intestinos e vísceras de São Paulo.
“Enxergo minha arte como um curativo da cidade. Esse é o sentido do graffiti para mim. Levar arte para as pessoas que habitam os rincões esquecidos da metrópole. É quase um exorcismo do lugar”, contou.
No Rio de Janeiro, vários coletivos de graffiti, dentre eles o Comando da Selva, se reuniam para decorar o morro. As casas das comunidades cariocas ganhavam cor, desenho, textura e vida num ambiente de desigualdade aparente – fratura exposta da sociedade. “A ação era toda esquematizada pelo fotolog e nos encontrávamos no dia combinado. Mas antes mobilizávamos os moradores. A ideia era sempre promover os mutirões envolvendo a comunidade para se criar a noção de pertencimento do graffiti”, lembra Muleka, grafiteira do coletivo.
Para Mateus Subverso, do coletivo Suatitude (Sindicato Urbano de Atitude), de São Paulo, o graffiti assume um papel chave na externalização da cultura periférica. “Ao ocupar a cidade, ele volta o olhar para a quebrada. Existem os muros invisíveis e os que são bem visíveis – onde está dito, aqui você não entra. O graffiti é a quebra desses muros”.
Ao falar de graffiti, não se pode esquecer sua origem: a rua. Arte transgressora e proibida, contracultura, cultura da periferia. Se, na maioria das vezes, é associado ao movimento hip-hop, não é à toa.
O hip-hop como palavra da periferia, o grafite como expressão gráfica desta palavra. Considerado as artes plásticas do hip-hop, o graffiti possui grande potencialidade de comunicação da quebrada. ”O graffiti pode ser encarado como uma mídia (pintura) e o muro como suporte (veículo). É por meio dele, do break, da poesia do MC e da musicalidade do DJ que a periferia pode espraiar sua mensagem”, enfatiza Mateus.
Fruto da necessidade de afirmação resgata a identidade e valorização da comunidade. Os desenhos, as tags (assinaturas tanto do graffiti quanto da pichação) sempre fazem referências à quebrada. “Temos de entender porque vários jovens começam a escrever nos espaços públicos. Para mim faz parte da construção da identidade. O boom das tags, por exemplo, expressa a elaboração dessa identidade pelo seu local. A tag conter o local da comunidade é muito significativo. É a construção pelo coletivo. Estamos sempre nos vendo e vendo o nosso coletivo”, continua Mateus.
Com grande apelo dentre os jovens, a arte dos muros é, inclusive, mobilização social. Para Satão, do coletivo DF Zulu, de Ceilândia, em Brasília, o graffiti traz uma ideologia para transformação social da comunidade. “Ensina a pensar; ensina que o pensamento vale à pena. É uma cultura que dá alternativas!”.
Existem centenas de projetos sociais que utilizam o graffiti como forma de inclusão, geração de renda, educação e cidadania. Em Brasília, a associação e coletivo DF-Zulu, na ativa há 21 anos, trabalha para a transformação social da comunidade. São mais de 80 jovens envolvidos nas oficinas de break, DJ e graffiti. “O DF-Zulu surgiu em 1989. Dos trabalhos que promovíamos, nasceu o coletivo os3s (Satão, Sowto, Supla). Fomos um dos primeiros grupos de graffiti de Brasília. E a partir de 1993, começamos a trabalhar nas ruas e becos da Ceilândia. A ideia sempre foi trabalhar a transformação nos jovens”, explica Satão.
Em São Paulo, destacam-se o Projeto Quixote, ONG vinculada a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) de Interlagos, a ONG Escola Aprendiz, Rede Ivoz e a Ação Educativa. Todas mantêm iniciativas ligadas ao graffiti como transformação social.
Dentro ou fora da escola, a maioria dos coletivos de graffiti desenvolve ações educativas. Seja na educação formal ou não formal, os grupos procuram criar cotidianamente novos meios e espaços para se debater a arte de rua em sua cultura.
Muitas escolas, sobretudo públicas, oferecem oficinas de graffiti para os alunos. A associação DF-Zulu, por exemplo, trabalha com a revitalização dos muros da escola por meio de atividades de graffiti com os alunos. “A escola faz parte da comunidade, e promover a revitalização gera um retorno à valorização deste espaço. Procuramos transformar a escola em um ambiente que os jovens se sintam bem e empoderados do espaço de aprendizagem. No final, é uma valorização da própria comunidade”, pondera Satão.
Para Guilherme Marin, da Rede IVoz, a escola é um espaço de convivência de alto valor simbólico na comunidade. O graffiti, em sua capacidade de envolver o jovem, devolve o lúdico, a identidade e o respeito à comunidade. “Hoje, a maioria das escolas parecem verdadeiros presídios, perdendo o valor simbólico. A revitalização causa identidade no jovem. O fato do graffiti ser usado em sala de aula devolve e demonstra valor pelo conhecimento gerido pela comunidade. É a valorização da cultura periférica – criada na comunidade”, explica.
Porém, o uso do graffiti como instrumento pedagógico pode ser perigoso, se desvinculado de sua origem e história. O coordenador do Observatório Jovem do Rio de Janeiro, Paulo Carrano, argumenta que dependendo da abordagem em sala de aula, corre-se o risco de descontextualização da cultura hip-hop em que o graffiti está inserido. “O graffiti é um mosaico de ações e sentidos; tem origem e contexto. Se usado na escola, não deve distanciar-se de sua origem”.
“O professor tem que ser um desbravador, levar os alunos à rua, ver o real, observar cores, técnicas, superfícies. Chega de criar ambientes de reprodução”, completa a grafiteira Ziza.
O educador é, muitas vezes, referência para os alunos. Ele inquieta, provoca, cria verdades. Carrano defende que as mensagens colocadas em sala de aula nunca devem ser impostas, mas negociadas. Os debates e atividades em torno do graffiti devem contemplar e valorizar a sua origem – cultura periférica. Uma cultura altiva, consciente de sua condição social e do quanto lhe foi negado.